sexta-feira, 22 de março de 2013

A dignidade da VIDA

AP / AP
Marco Bellocchio: um enredo para tratar do livre arbítrio, das relações humanas 
e da incomunicabilidade entre os homens
Marco Bellocchio teve uma formação católica rígida, que o afligiu desde pequeno, pela "intolerância diante das questões complexas do mundo". "Como meus pais estavam sempre ocupados [o pai era advogado e a mãe, professora] , entregaram a minha educação e a de meus sete irmãos inteiramente às escolas católicas'', contou o italiano de 73 anos, um cineasta assumidamente laico. Bellocchio não emprega a palavra ateu, por não gostar do ranço de século XIX que ela traz. "Algumas impressões religiosas que trazemos da nossa infância são impossíveis de apagar, por impregnarem nossas almas para sempre. Ainda assim, consegui construir uma relação de troca e, ao mesmo tempo, de confronto com a Igreja'', disse o diretor, às voltas, em seu novo filme, com um tema delicado no universo católico: a eutanásia. 

Vencedor do prêmio da crítica na última edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, "A Bela Que Dorme'' foge das respostas fáceis e evita tomar partido, limitando-se (no melhor sentido da palavra) a reafirmar a dignidade da vida. "No coração da trama está a liberdade, sem a qual a vida não faz sentido. Pelo menos para mim'', afirmou Bellocchio, um dos mais respeitados cineastas em atividade na Itália. São 28 longas-metragens na bagagem, incluindo "De Punhos Cerrados'' (1965), "O Processo do Desejo'' (1991), "A Hora da Religião" e "Vincere'' (2009), ganhador de oito prêmios David di Donatello, o Oscar italiano.

Selecionado para os últimos festivais de Veneza e de Toronto, o filme, com estreia nacional marcada para o dia 5, baseia-se no drama verídico e controverso de Eluana Englaro. Depois de um acidente de carro, ela entrou em estado vegetativo, no qual permaneceu por 17 anos - até seu pai, Beppino Englaro, travar uma batalha judicial solicitando a remoção do tubo de alimentação que a mantinha viva. Amplamente divulgado pela mídia italiana, o que reacendeu o debate sobre a eutanásia, o caso se estendeu de 1999 até 2009, quando foi finalmente concedido o direito de retirar o suporte artificial de vida de Eluana, decisão bastante criticada pela Igreja Católica.

"Como o episódio mexeu muito comigo e com minha filha adolescente [Elena Bellocchio], pela atitude reacionária do povo italiano, sabia que tinha uma história poderosa nas mãos, capaz de levantar questões morais e religiosas'', disse Bellocchio, em entrevista ao Valor, concedida em Toronto. Mas o diretor preferiu "deixar o assunto esfriar'', guardando-o na gaveta, antes de levá-lo às telas. "O intervalo de mais de dois anos foi fundamental para me dar o distanciamento necessário para revisitar o caso de uma maneira descontaminada. Obviamente, eu tenho a minha opinião. Como artista, no entanto, minha obrigação é estender os meus horizontes e respeitar a posição dos outros. Sem isso, não haveria questionamento, o que é o meu maior objetivo.''

Para não se prender à situação de Eluana, Bellocchio desenvolveu tramas que gravitam ao redor do caso da mulher em coma, numa clínica de Udine. As histórias se desenrolam alternadamente durante os últimos seis dias de vida de Eluana (que morreu aos 38 anos), criando uma paisagem propícia para o espectador refletir sobre o significado da vida.

"Enquanto o ser humano for capaz de pensar e decidir, é importante seguir seu desejo, seja ele de manter sua vida ou de acabar com ela"
Um senador (Toni Servillo) enfrenta o dilema de votar a favor de projeto de lei, na qual ele não acredita, enquanto sua filha (Alba Rohrwacher), ativista do Pró-Vida, protesta diante da clínica de Eluana - ao mesmo tempo em que se apaixona por rapaz defensor da eutanásia. Também integram a narrativa um médico (Pier Giorgio Bellocchio) que tenta impedir uma paciente viciada (Maya Sansa) de cometer suicídio e uma atriz rica (Isabelle Huppert), espera por um milagre: o de ver a filha, para quem instalou uma UTI em casa, despertar de um coma. "Cada trama traz um pouco da minha educação católica, da minha visão política, dos meus valores e de tudo que aprendi na vida.'' A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Quando percebeu que precisaria criar histórias paralelas para reviver a tragédia de Eluana Englaro?
Marco Bellocchio: Assim que comecei a pensar na estrutura da história. Embora eu sentisse uma obrigação de reviver a polêmica, não queria mergulhar muito no aspecto de notícia, justamente para não repetir o circo que a mídia fez. Sabia que muitos aspectos controversos precisariam ser relembrados, como o embate entre grupos ligados à Igreja Católica e contrários à eutanásia e os ativistas do Pró-Vida e também a crise constitucional que o caso provocou na Itália (o então primeiro-ministro Silvio Berlusconi tentou emitir decreto para manter Eluana nos aparelhos - medida recusada pelo presidente da República, Giorgio Napolitano). Tudo isso deveria emoldurar o quadro, mas não podia ser a obra em si.

Valor: É por isso que o sr. não considera "A Bela Que Dorme'' um filme sobre a eutanásia?
Bellocchio: Exatamente. Graças às múltiplas narrativas, pude mostrar os diferentes pontos de vista. Minha escolha me deu mais liberdade para explorar questões como o livre arbítrio, as relações humanas e a incomunicabilidade entre os homens. Procurei seguir os passos desses personagens sem julgar quem estava certo ou errado. A eutanásia sempre causará muito barulho. Mesmo na Europa, a maioria dos países não a aceita, a não ser na Holanda e na Suíça, em circunstâncias especiais.

Valor: Até que ponto conseguiu ser imparcial ao abordar um caso que lhe despertou tanta revolta?
Bellocchio Não sou ingênuo. Por mais que tenha tentado abordar o tema sem preconceitos, não existe obra absolutamente neutra. O importante é estar aberto a opiniões contrárias. Ainda que não tenha me convertido ao catolicismo, espero ter representado a crença de seus seguidores com respeito. Não os abomino por sua fé e procuro olhá-los com curiosidade e interesse.

Divulgação / Divulgação 
Numa das histórias paralelas ao drama de Eluana Englaro, 
a personagem de Isabelle Huppert (foto) angustia-se à espera 
do milagre que desperte a filha de um coma
 
Valor: Por ter sido criado como católico, qual a sua relação hoje com a igreja?
Bellocchio: Não me interesso mais pelas questões da Igreja. Acho que já contei as histórias que queria. A trajetória de Eluana foi o que me tocou, independentemente de ela envolver o mundo católico. Isso foi apenas uma consequência. Pela educação que recebi, conheço muito bem esse ambiente, o que só facilitou chegar ao retrato que tive de pintar. Tenho de admitir que, como a religião não é mais uma imposição na minha vida, como foi na infância e adolescência, tenho hoje boas relações com alguns católicos. Talvez seja por isso que incluí a história de amor, à la Romeu e Julieta, entre a jovem do Pró-Vida e o defensor da eutanásia. O fato de eles estarem em lados opostos não impede o romance.

Valor: O caso de Eluana não foi uma unanimidade nem dentro da Igreja Católica, certo?
Bellocchio: Não foi mesmo. Havia posições diferentes entre os membros da Igreja. De um lado, estavam os intransigentes, que queriam que a vida de Eluana fosse mantida a todo custo. Outros, porém, tinham uma cabeça mais aberta, aceitando a ideia de deixá-la morrer. Foi por isso que eu quis incluir no filme, na sentença final sobre o caso, as últimas palavras do papa João Paulo II, morto em 2005. Segundo comunicado do Vaticano, seis horas antes de entrar em coma, ele teria dito: "Deixe-me partir para a casa do Pai", o que, em outras palavras, significa "deixe-me morrer em paz". No ano passado, quando o arcebispo de Milão Carlo Maria Martini morreu, após sofrer muito tempo com a doença de Parkinson, ele também disse algo parecido.

Valor: Qual sua opinião sobre a eutanásia?
Bellocchio: Enquanto o ser humano for capaz de pensar e decidir, é importante seguir seu desejo, seja ele de manter sua vida ou de acabar com ela. Para mim, esse seria o critério. Não concordo quando alguém da família quer tomar essa decisão no seu lugar, quando você ainda pode escolher o seu destino, apesar de doente. Há casos, em vários países do mundo, inclusive na Itália, em que os médicos e as enfermeiras parecem ajudar o paciente a morrer, quando já não estão mais no controle de suas vidas. Isso é incorreto. Quem pensam que são? Quem lhes deu esse poder?

Valor: E no caso de Eluana, especificamente?
Bellocchio: Minha posição é igual à do pai da paciente. Na época, senti uma grande solidariedade por ele, quando o vi lutando para deixar a filha morrer em paz, enquanto o resto do mundo se metia no que não era chamado e prolongava o sofrimento do pai e da filha. Nos casos em que não há volta, cientificamente falando, sou a favor de que um membro da família tome a decisão de interromper a vida artificial do paciente. Uma vida que já não é vida.

Valor: O título é desconcertante, à medida que remete ao mundo dos contos de fada, apesar da dura realidade de que o filme trata. Isso foi proposital?
Bellocchio: Adoro a ideia de pista falsa que ele representa. Para mim, título bom é aquele com duplo sentido, que deixa uma porta aberta para algo mais. Obviamente, há a imediata associação com o universo de "A Bela Adormecida'', evocando uma aura de fantasia. De fato, Eluana dorme. No seu caso, infelizmente, nenhum príncipe será capaz de acordá-la. Mas isso não impede o despertar para a vida de outros personagens da trama, como o senador e sua filha. Há aqueles que só acordam depois de um tranco que a vida lhes dá.
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Reportagem por Elaine Guerini - de Toronto.
Leia mais em:
http://www.valor.com.br/cultura/3055658/dignidade-da-vida#ixzz2OI3HuW29

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