Marco Bellocchio teve uma formação católica rígida, que o afligiu
desde pequeno, pela "intolerância diante das questões complexas do
mundo". "Como meus pais estavam sempre ocupados [o pai era advogado e a
mãe, professora] , entregaram a minha educação e a de meus sete irmãos inteiramente às
escolas católicas'', contou o italiano de 73 anos, um cineasta
assumidamente laico. Bellocchio não emprega a palavra ateu, por não
gostar do ranço de século XIX que ela traz. "Algumas impressões
religiosas que trazemos da nossa infância são impossíveis de apagar, por
impregnarem nossas almas para sempre. Ainda assim, consegui construir
uma relação de troca e, ao mesmo tempo, de confronto com a Igreja'',
disse o diretor, às voltas, em seu novo filme, com um tema delicado no
universo católico: a eutanásia.
Vencedor do prêmio da crítica na última edição da Mostra
Internacional de Cinema de São Paulo, "A Bela Que Dorme'' foge das
respostas fáceis e evita tomar partido, limitando-se (no melhor sentido
da palavra) a reafirmar a dignidade da vida. "No coração da trama está a
liberdade, sem a qual a vida não faz sentido. Pelo menos para mim'',
afirmou Bellocchio, um dos mais respeitados cineastas em atividade na
Itália. São 28 longas-metragens na bagagem, incluindo "De Punhos
Cerrados'' (1965), "O Processo do Desejo'' (1991), "A Hora da Religião" e
"Vincere'' (2009), ganhador de oito prêmios David di Donatello, o Oscar
italiano.
Selecionado para os últimos festivais de Veneza e de Toronto, o
filme, com estreia nacional marcada para o dia 5, baseia-se no drama
verídico e controverso de Eluana Englaro. Depois de um acidente de
carro, ela entrou em estado vegetativo, no qual permaneceu por 17 anos -
até seu pai, Beppino Englaro, travar uma batalha judicial solicitando a
remoção do tubo de alimentação que a mantinha viva. Amplamente
divulgado pela mídia italiana, o que reacendeu o debate sobre a
eutanásia, o caso se estendeu de 1999 até 2009, quando foi finalmente
concedido o direito de retirar o suporte artificial de vida de Eluana,
decisão bastante criticada pela Igreja Católica.
"Como o episódio mexeu muito comigo e com minha filha
adolescente [Elena Bellocchio], pela atitude reacionária do povo
italiano, sabia que tinha uma história poderosa nas mãos, capaz de
levantar questões morais e religiosas'', disse Bellocchio, em entrevista
ao Valor, concedida em Toronto. Mas o
diretor preferiu "deixar o assunto esfriar'', guardando-o na gaveta,
antes de levá-lo às telas. "O intervalo de mais de dois anos foi
fundamental para me dar o distanciamento necessário para revisitar o
caso de uma maneira descontaminada. Obviamente, eu tenho a minha
opinião. Como artista, no entanto, minha obrigação é estender os meus
horizontes e respeitar a posição dos outros. Sem isso, não haveria
questionamento, o que é o meu maior objetivo.''
Para não se prender à situação de Eluana, Bellocchio desenvolveu
tramas que gravitam ao redor do caso da mulher em coma, numa clínica de
Udine. As histórias se desenrolam alternadamente durante os últimos seis
dias de vida de Eluana (que morreu aos 38 anos), criando uma paisagem
propícia para o espectador refletir sobre o significado da vida.
"Enquanto o ser humano for capaz de pensar e
decidir, é importante seguir seu desejo, seja ele de manter sua vida ou
de acabar com ela"
Um senador (Toni Servillo) enfrenta o dilema de votar a favor de
projeto de lei, na qual ele não acredita, enquanto sua filha (Alba
Rohrwacher), ativista do Pró-Vida, protesta diante da clínica de Eluana -
ao mesmo tempo em que se apaixona por rapaz defensor da eutanásia.
Também integram a narrativa um médico (Pier Giorgio Bellocchio) que
tenta impedir uma paciente viciada (Maya Sansa) de cometer suicídio e
uma atriz rica (Isabelle Huppert), espera por um milagre: o de ver a
filha, para quem instalou uma UTI em casa, despertar de um coma. "Cada
trama traz um pouco da minha educação católica, da minha visão política,
dos meus valores e de tudo que aprendi na vida.'' A seguir, os
principais trechos da entrevista.
Valor: Quando percebeu que precisaria criar histórias paralelas para reviver a tragédia de Eluana Englaro?
Marco Bellocchio: Assim que comecei a pensar na
estrutura da história. Embora eu sentisse uma obrigação de reviver a
polêmica, não queria mergulhar muito no aspecto de notícia, justamente
para não repetir o circo que a mídia fez. Sabia que muitos aspectos
controversos precisariam ser relembrados, como o embate entre grupos
ligados à Igreja Católica e contrários à eutanásia e os ativistas do
Pró-Vida e também a crise constitucional que o caso provocou na Itália
(o então primeiro-ministro Silvio Berlusconi tentou emitir decreto para
manter Eluana nos aparelhos - medida recusada pelo presidente da
República, Giorgio Napolitano). Tudo isso deveria emoldurar o quadro,
mas não podia ser a obra em si.
Valor: É por isso que o sr. não considera "A Bela Que Dorme'' um filme sobre a eutanásia?
Bellocchio: Exatamente. Graças às múltiplas
narrativas, pude mostrar os diferentes pontos de vista. Minha escolha me
deu mais liberdade para explorar questões como o livre arbítrio, as
relações humanas e a incomunicabilidade entre os homens. Procurei seguir
os passos desses personagens sem julgar quem estava certo ou errado. A
eutanásia sempre causará muito barulho. Mesmo na Europa, a maioria dos
países não a aceita, a não ser na Holanda e na Suíça, em circunstâncias
especiais.
Valor: Até que ponto conseguiu ser imparcial ao abordar um caso que lhe despertou tanta revolta?
Bellocchio Não sou ingênuo. Por mais que tenha
tentado abordar o tema sem preconceitos, não existe obra absolutamente
neutra. O importante é estar aberto a opiniões contrárias. Ainda que não
tenha me convertido ao catolicismo, espero ter representado a crença de
seus seguidores com respeito. Não os abomino por sua fé e procuro
olhá-los com curiosidade e interesse.
Valor: Por ter sido criado como católico, qual a sua relação hoje com a igreja?
Bellocchio: Não me interesso mais pelas questões da
Igreja. Acho que já contei as histórias que queria. A trajetória de
Eluana foi o que me tocou, independentemente de ela envolver o mundo
católico. Isso foi apenas uma consequência. Pela educação que recebi,
conheço muito bem esse ambiente, o que só facilitou chegar ao retrato
que tive de pintar. Tenho de admitir que, como a religião não é mais uma
imposição na minha vida, como foi na infância e adolescência, tenho
hoje boas relações com alguns católicos. Talvez seja por isso que incluí
a história de amor, à la Romeu e Julieta, entre a jovem do Pró-Vida e o
defensor da eutanásia. O fato de eles estarem em lados opostos não
impede o romance.
Valor: O caso de Eluana não foi uma unanimidade nem dentro da Igreja Católica, certo?
Bellocchio: Não foi mesmo. Havia posições diferentes
entre os membros da Igreja. De um lado, estavam os intransigentes, que
queriam que a vida de Eluana fosse mantida a todo custo. Outros, porém,
tinham uma cabeça mais aberta, aceitando a ideia de deixá-la morrer. Foi
por isso que eu quis incluir no filme, na sentença final sobre o caso,
as últimas palavras do papa João Paulo II, morto em 2005. Segundo
comunicado do Vaticano, seis horas antes de entrar em coma, ele teria
dito: "Deixe-me partir para a casa do Pai", o que, em outras palavras,
significa "deixe-me morrer em paz". No ano passado, quando o arcebispo
de Milão Carlo Maria Martini morreu, após sofrer muito tempo com a
doença de Parkinson, ele também disse algo parecido.
Valor: Qual sua opinião sobre a eutanásia?
Bellocchio: Enquanto o ser humano for capaz de
pensar e decidir, é importante seguir seu desejo, seja ele de manter sua
vida ou de acabar com ela. Para mim, esse seria o critério. Não
concordo quando alguém da família quer tomar essa decisão no seu lugar,
quando você ainda pode escolher o seu destino, apesar de doente. Há
casos, em vários países do mundo, inclusive na Itália, em que os médicos
e as enfermeiras parecem ajudar o paciente a morrer, quando já não
estão mais no controle de suas vidas. Isso é incorreto. Quem pensam que
são? Quem lhes deu esse poder?
Valor: E no caso de Eluana, especificamente?
Bellocchio: Minha posição é igual à do pai da
paciente. Na época, senti uma grande solidariedade por ele, quando o vi
lutando para deixar a filha morrer em paz, enquanto o resto do mundo se
metia no que não era chamado e prolongava o sofrimento do pai e da
filha. Nos casos em que não há volta, cientificamente falando, sou a
favor de que um membro da família tome a decisão de interromper a vida
artificial do paciente. Uma vida que já não é vida.
Valor: O título é desconcertante, à medida que
remete ao mundo dos contos de fada, apesar da dura realidade de que o
filme trata. Isso foi proposital?
Bellocchio: Adoro a ideia de pista falsa que ele
representa. Para mim, título bom é aquele com duplo sentido, que deixa
uma porta aberta para algo mais. Obviamente, há a imediata associação
com o universo de "A Bela Adormecida'', evocando uma aura de fantasia.
De fato, Eluana dorme. No seu caso, infelizmente, nenhum príncipe será
capaz de acordá-la. Mas isso não impede o despertar para a vida de
outros personagens da trama, como o senador e sua filha. Há aqueles que
só acordam depois de um tranco que a vida lhes dá.
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