Na humildade franciscana e na força evangelizadora dos jesuítas, a estrada do novo pontífice
Christian Carvalho Cruz
Chega-se à igreja de São Damião, em Assis, na Itália, a
pé. Uma longa, sinuosa e quieta descida entre os olivais, rumo ao fuori
muri da cidade. A subida de volta à parte alta, para quem quiser
continuar caminhando, pode ser extenuante. Ali o jovem Giovanni
Bernadone, mais tarde São Francisco, ouviu do Cristo no crucifixo a
frase que nessa semana ressoou na cabeça dos católicos com a escolha do
novo papa: "Francisco, vai e reconstrói a minha Igreja, que está em
ruínas". Francisco foi. E na quarta-feira tornou-se papa, personificado
na figura do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio. Ao sair Sumo
Pontífice do conclave, Bergoglio escolheu ser chamado de Francisco,
talvez apontando, na escolha do nome, a direção dos ventos em seu
papado. Ele pediu que rezassem por ele. Foi de ônibus. Pagou a conta do
hotel. Dispensou as vestes opulentas. Manteve a cruz meio tosca de prata
que lhe acompanha desde Buenos Aires. Chamou-se de bispo de Roma, não
de papa. Além de "aos irmãos", no masculino, dirigiu-se "às irmãs". Para
boa parte dos analistas, sinais claros de uma nova reconstrução da
Igreja.
Osservatore Romano/Reuters
Em Roma, Bergoglio volta ao hotel onde se hospedou como cardeal para pagar a conta pessoalmente
Bergoglio é jesuíta, e aí reside a outra parte da explicação, a de
como a tal reconstrução pode se dar para além da humildade franciscana.
"É com a tradicional força evangelizadora dos jesuítas, pioneiros que
sempre buscaram caminhos novos e carregam dentro de si a espiritualidade
de servir", diz o padre espanhol Jesus Hortal*, também membro da
Companhia de Jesus e professor de Direito Canônico da PUC-Rio. Na
entrevista a seguir, Hortal destrincha o significado dos gestos, das
palavras e das origens de Francisco, diferenciando-o não só do alemão
Bento XVI, tímido e formal, como também do espetaculoso polonês João
Paulo II. "Será o papa da linguagem do povo, da proximidade, da
familiaridade. Isso vai ficar bastante claro na Jornada Mundial da
Juventude, no Rio, em julho", ele aposta. E lembrando o caminho até a
Igreja de São Damião em Assis, resume: "Este é um papa que anda a pé".
Papa jesuíta
"Nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de
Loyola, a base fundamental da Companhia de Jesus, a última meditação
proposta se chama meditação para alcançar o amor. Ele pede para, em
tudo, amar e servir à Sua Divina Majestade. É claro que se refere
diretamente a Deus. A atitude primordial de um jesuíta, portanto, é amar
e servir. E isso se pode estender a todos os campos da vida. Por isso
temos uma atitude de serviço e a enxergamos também nos primeiros sinais
enviados pelo papa Francisco. Além disso, na Bula Regimini Militantis
Ecclesiae, documento aprovado pelo papa Paulo III criando a Companhia de
Jesus em 1540, fala-se expressamente que ela está para servir a Igreja
sob a bandeira de Cristo. Essa espiritualidade de serviço dos jesuítas é
historicamente muito clara.
Os pioneiros
"Os jesuítas sempre tiveram duas características marcantes no
apostolado. Primeiro, a ênfase no aspecto intelectual. Os primeiros dez
jesuítas eram estudantes da Universidade de Paris. Segundo, sempre foram
pioneiros. Não se contentavam com aquilo que faziam, iam sempre
buscando coisas novas, caminhos novos. Nesse sentido, outro São
Francisco, que possivelmente também inspirou o papa, é São Francisco
Xavier, pioneiro no anúncio do evangelho entre populações não cristãs. E
pioneiro no modo de fazê-lo, porque não parou nos domínios territoriais
portugueses. Foi à Índia, ao Japão, sim, mas foi além. Saiu da órbita
da coroa portuguesa e chegou a lugares onde não havia um soldado
português sequer. Queria entrar na China, apresentada pelos japoneses
como uma civilização superior, mas não conseguiu. Morreu quando esperava
o transporte para lá. Esse conceito de pioneirismo, de buscar novos
rumos, está muito entranhado nos jesuítas. No Concílio de Trento do
século 16, por exemplo, convocado para reformar a Igreja Católica, o
papa Paulo III enviou dois jesuítas como legados seus. Depois, na
implementação das determinações do concílio, coube aos jesuítas o
fortalecimento das comunidades católicas na Alemanha, então ameaçadas
pela Reforma Protestante. Os colégios jesuítas que começaram a se
espalhar se tornaram baluartes contra o luteranismo. Mas não creio que o
papa Francisco vá mudar estruturas internas da burocracia do Vaticano
só porque os jesuítas são tradicionalmente organizados e disciplinados.
Bergoglio vai mexer nisso porque é um traço pessoal dele. A imagem dos
jesuítas como soldados, hoje, é algo mais simbólico.
Simplicidade
"Quando foi à Basílica de Santa Maria Maior na quinta-feira, em vez
do carro oficial, Francisco preferiu carro comum. Eu não me espantaria
com um novo estilo de papa. Eu admiraria. Na quarta, quando apareceu
pela primeira vez na sacada da Basílica de São Pedro, o que mais chamou a
atenção foi a ausência do mantelete vermelho, aquele traje de arminho
que todos os papas sempre usaram. Francisco vestia somente a batina
branca, uma cruz peitoral muito simples, de prata, que ele já tinha como
bispo de Buenos Aires, e não a de ouro dos papas. Também só colocou a
estola para dar a bênção. Em nenhuma parte do Vaticano aparece o brasão
do novo papa. Todos os papas tiveram brasão, os bispos sempre tiveram,
embora não seja mais algo obrigatório há bastante tempo. O fato é que,
ao não adotar um brasão, ele está dizendo que não quer ser um senhor, um
nobre de armas.
Chamar-se de Bispo de Roma
"Este é um ponto fundamental do ponto de vista teológico, inclusive.
Tem a ver com a doutrina do Conselho do Vaticano II sobre a
colegialidade episcopal. Isso também está numa das epístolas de Santo
Inácio de Antioquia, mártir do século 2º lançado às feras em Roma.
Quando estava sendo levado preso, de Antioquia (atual Síria) para Roma,
ele endereçou cartas às diversas igrejas das localidades por onde ia
passando. E na que escreveu aos romanos disse que a Igreja de Roma é a
que preside, na caridade e no amor, a comunhão de todas as igrejas. A
epístola de Santo Inácio de Antioquia aos romanos é considerada um
documento histórico fundamental a respeito da igualdade de todas as
igrejas. Roma, portanto, não é superior, é irmã. Ao se referir a si
mesmo como bispo de Roma, Francisco não se pôs à parte ou acima dos
outros bispos. Colocou-se entre eles, dando força à importância da
colegialidade episcopal.
O nome Francisco
"São Francisco de Assis foi ao Egito e tentou pregar o Cristianismo
de um jeito absolutamente manso, humilde, tranquilo. Durante as
Cruzadas, imagine! Normalmente seria morto. Mas não, deixaram-no falar e
regressar. A escolha do nome Francisco pelo cardeal Bergoglio é também
claro sinal de diálogo com outras religiões. O que ele já fez muito como
arcebispo de Buenos Aires, especialmente com os judeus. Há tempos ele
mantém esse canal aberto.
Movimentos conservadores
"Em relação aos diversos movimentos conservadores dentro da Igreja,
como Comunhão e Libertação, Focolares e Opus Dei, não sabemos exatamente
o que há ali. São tensões, ambições individuais, diferenças
doutrinárias. Não temos todos os dados para saber o que o papa vai
fazer. Outra coisa, porém, essa sim bem mais clara, é o problema no
Banco do Vaticano e o descontentamento de cardeais com a falta de
transparência. Não é um banco qualquer. É onde estão os bens
eclesiásticos, o dinheiro das dioceses. Tem a finalidade fundamental do
exercício da caridade, ajudar as pessoas. Por isso deve ser administrado
com muito cuidado e transparência. Vai haver uma ação clara de
Bergoglio sobre isso, não tenho dúvida.
Geografia católica
"Evidentemente, América Latina, Portugal e Espanha, que formam um
bloco que move o catolicismo, o chamado catolicismo ibérico, têm um peso
muito grande. Mais da metade dos católicos do mundo inteiro estão nesse
bloco. Então, os problemas enfrentados nesses países precisam ser
identificados e tratados. Há uma secularização muito forte na Espanha,
na França e na Argentina também. A Argentina não tem essa proliferação
de grupos pentecostais como ocorre no Brasil, porém muitos argentinos
têm assumido uma atitude laicista, de querer trancar a Igreja na
sacristia. Não é o laicismo enquanto laicismo o problema. É a descrença.
No Brasil, o grupo religioso que mais cresceu não foi o dos
pentecostais. Foi o grupo que diz não ter religião nenhuma. Isso é muito
forte. Na Europa também: grande parte da população afirma que não tem
preocupações religiosas. Pois o papa Francisco se põe como um anunciador
do Evangelho, aprofundando a linha iniciada por Bento XVI, que fundou
um Pontifício Conselho para a Evangelização. A postura do novo papa de
proximidade com o povo vai ser fundamental. Hoje recebi um e-mail de
minha sobrinha que vive na Espanha dizendo, impressionada: ‘Este papa é
como nós, anda a pé’. Isso diz um bocado dele.
Política latino-americana
"Não é possível colar a mesma etiqueta em todos os governos da
região. Cristina Kirchner é diferente de Rafael Correa. Evo Morales é
diferente de Dilma Rousseff. Contudo, o que for relacionado à justiça
social e igualdade encontrará eco no papa. Ele sempre foi muito claro em
seu apoio e serviço aos mais necessitados. Mas, se você chamar ‘de
esquerda’ ações contra a vida, como apoio ao aborto e às pesquisas com
células embrionárias, por exemplo, é claro que ele se posicionará
contra. A defesa da vida é bandeira irremovível da Igreja Católica.
Celibato, ordenação de mulheres
"Há coisas muito heterogêneas aí. Algumas a igreja acha que não devem
mudar, exatamente porque a Igreja não está acima do Evangelho, está a
serviço do Evangelho. Por exemplo, a questão do divórcio aparece muito
clara na palavra de Cristo: ‘O que Deus uniu o homem não separa’. A
Igreja não pode ir contra um princípio do Evangelho. Outra questão é a
aplicação de tal princípio em casos práticos. Pode-se pensar em como
lidar com esses temas, numa eventual mudança de atitude. Na doutrina,
porém, não se mexe. Bergoglio sempre assumiu posições firmes nesse
ponto. Por outro lado, celibato sacerdotal não tem a ver com isso, não é
dogma de fé. É outra questão, e o papa Francisco pode modificar alguma
coisa a esse respeito. A não ordenação de mulheres é um pouco mais
discutível, porque houve uma carta do papa Paulo VI e depois de João
Paulo II que trataram a questão como algo bastante definitivo, embora
não como dogma de fé. Eu diria que alguma base para se mexer aí existe,
mas não muito grande.
Ditadura argentina
"Estava neste momento lendo as declarações do argentino Adolfo Pérez
Esquivel, ativista de direitos humanos e Prêmio Nobel da Paz que se
notabilizou na luta contra a ditadura. Ele diz expressamente: ‘Houve
bispos que foram cúmplices da ditadura, mas Bergoglio não’. Essa
polêmica envolvendo Bergoglio com a ditadura argentina se originou por
causa de dois padres que tinham sido jesuítas e foram presos. Logo
acusaram Bergoglio, na época provincial jesuíta na Argentina, de ter
informado os militares de que aqueles padres não eram mais jesuítas.
Porém, não há a mínima prova disso. Ao contrário, ele se esforçou para
libertar presos políticos em muitos casos. Essa acusação me parece uma
coisa totalmente sem cabimento.
Jornada Mundial da Juventude
"Será uma invasão de argentinos no Rio de Janeiro (risos). Vai ter um
feitio muito popular, de proximidade entre o papa e os jovens. Ele deve
se valer de palavras e gestos para aproximar a Igreja do povo, num
estilo muito diferente do de Bento XVI, que foi um papa mais comedido,
de educação alemã, mais formal. Bento XVI não despertava o entusiasmo
das multidões. Lembro-me da frase que as pessoas citavam como sendo
muito típica dos alemães, para avaliar o papado dele: ‘Tem que haver
ordem! Tem que haver ordem!’ João Paulo II, sim, era mais do espetáculo.
O papa Francisco não será nem uma coisa nem outra. Será o papa da
linguagem do povo, da proximidade, da familiaridade. Não com espetáculo
ou grandes explosões de entusiasmo, mas com atos e palavras que façam as
pessoas se sentirem unidas. Essa atitude de colocar-se no meio, de
deixar as formalidades de lado e mostrar que está na Igreja junto com
todos, será muito significativa."
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* JESUS HORTAL É PADRE JESUÍTA, DOUTORADO EM DIREITO CANÔNICO PELA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE GREGORIANA, DE ROMA. LECIONA NA PUC-RIO
Fonte: Estadão on line, 16/03/2013
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