Lorenzo Lotto (det.)
Fazemos muitas coisas «religiosamente», como se
fossem sagradas ou, por outras palavras, com a intensidade dos santos.
Fazemos religiosamente a nossa contabilidade, visitamos religiosamente
as nossas mães, vamos aos jogos de futebol dos filhos religiosamente,
passeamos o cão religiosamente, confessamos os nossos pecados
religiosamente e praticamos a nossa religião religiosamente – o que
significa que fazemos as coisas que devemos fazer e que as fazemos
continuamente. E fazemo-las muito bem. E fazemo-las mais frequentemente
que qualquer outra pessoa. Na verdade, fazemo-las tão bem que
começámos a acreditar que é o próprio ato de as fazermos que nos torna
santos.
Ser-se justo, por outro lado, é fazer aquilo que
é conforme a Deus: ser-se decente, comprometer-se com o que está acima
e para além dos ornamentos da religião, lutar pela essência da
religião que, a acreditarmos no que Jesus ensina, é claramente a
aceitação sem reserva , o abraço sem medida e sem limites daquilo que
não é abarcável.
Jesus mostra-nos que a atitude mais religiosa
pode ser a amorosa aceitação daqueles que têm dificuldade em fazer o
que é «religioso» e «certo», por muito socialmente correto e por muito
respeitável que seja, por muito corretos que eles próprios gostassem de
ser.
E é aqui que começamos a ficar um bocado
nervosos. E é aqui que começa a conversa incoerente: com essa atitude
«libertina», relaxada de estar na vida, o que aconteceria aos padrões
morais? Que aconteceria à fibra moral da nação? Que aconteceria à
vizinhança? Que aconteceria à família, à igreja, à cidade, ao
escritório, à escola, se tolerássemos os desvios, se não os
travássemos, se não exigíssemos comportamentos morais bons,
respeitáveis? Na verdade, é precisamente esse o problema dos nossos
dias, ou não? É a palavra começada por «L». Temos sido «liberais».
Tornamo-nos laxistas. Decaímos. Ou melhor: eles decaíram. Nós não. E,
assim, a nova religião, que, na verdade, é apenas uma extensão da
anterior, revestida de indignação e de gritos amargos anunciando a
condenação, está a instalar-se. A forma de ser castigadora,
autoritária, conservadora – na verdade, reacionária – é agora um lugar
comum. Queremos penas de prisão agravadas para quem comete uma primeira
infração. Queremos uma abordagem sem perdão – do género: «um terceiro
crime, e serás preso e guardado para sempre» ou «deita-se fora a chave»
– para os reincidentes que cometeram pequenos delitos, mais
prejudiciais para si próprios que para os outros. Não estamos
interessados em proteger o inocente; queremos matar os assassinos.
Queremos os dissidentes silenciados. Queremos os não-conformistas
excomungados. Queremos os rebeldes reduzidos a nada. Queremos lei e
ordem.
Estamos tão concentrados na religião que
esquecemos a retidão. Não conseguimos entender pessoas como Helen
Prejeans, que acompanham os condenados às nossas cadeiras elétricas.
Não temos paciência para advogados astutos que fazem apelos das
sentenças de pessoas que os nossos jornais já condenaram. Deploramos os
juízes que dão sentenças razoáveis a pessoas decentes que deram por si
em situações indecentes. Duvidamos daqueles que se dão com pessoas de
quem suspeitamos. Olhamos, algo perplexos, para todas aquelas pessoas
que tratam amorosamente aqueles que nós ainda não conseguimos amar,
porque continuamos a ser mais religiosos do que retos. Que me importa o
comportamento de Jesus com os ladrões? Que me importa o comportamento
de Jesus com os cobradores de impostos? Que me importa o comportamento
de Jesus com as mulheres apanhadas em adultério? Na verdade, que me
importa um Evangelho enigmaticamente cheio do inaceitável, do suspeito,
do desonesto, e de gente fraca – os leprosos, os samaritanos e as
mulheres?
Obviamente, não é que não haja lugar para a
responsabilidade. O que não há, de facto, é lugar para a condenação dos
outros, quando enfrentamos os nossos próprios pecados. O problema é
que, simplesmente, já não há lugar para apedrejar, enquanto não formos
suficientemente puros para o fazer.
Na história da mulher apanhada em adultério,
Jesus foi confrontado com uma pecadora cujo castigo estava claramente
definido na Lei. A pergunta que o fariseu fez, relativa ao que se
deveria fazer com ela, tinha uma resposta muito fácil. Jesus, se fosse
religioso, devia tê-la condenado. Mas Jesus, o justo, não o fez.
E então, o que se passou? O que é que a Quaresma
– o espírito de arrependimento – tem a ver com isto? Para entendermos
aquilo a que nos chama este Evangelho, temos de pensar para além da Lei e
do pecado. Temos de pensar, também, nos fariseus, nos saduceus e em
Jesus.
Os saduceus eram os ultraconservadores, a casta
clerical, os ultraortodoxos do Judaísmo. Descobriam a plenitude da
religião na Lei, e no seu papel em preservá-la. Os fariseus eram os
liberais do poder instalado. Amavam suficientemente a Lei para permitir
que ela se desenvolvesse e se difundisse a toda a comunidade de Israel.
O problema é que Jesus não era nem saduceu nem
fariseu, não era um conservador nem um liberal. O facto é que Jesus era
demasiado liberal até para os liberais. Jesus não deixava que a Lei se
tornasse uma barreira entre Ele e a pessoa à sua frente. Jesus era um
radical. Jesus amava. Jesus era um radical que amava.
E, nesta história, a mensagem de Jesus é clara:
tenham cuidado para que o pecado não vos consuma. Não, não o vosso… o
dos outros! O facto é que – ter-nos-emos já esquecido, tal como os
fariseus do Evangelho? – os nossos pecados são mais do que o suficiente
para termos muito que combater.
Certamente que este Evangelho vai muito além do
que dizer-nos que nós também pecámos, coisa que sabemos muito bem, nas
profundezas dos nossos próprios corações escurecidos. Talvez nos diga
que, na verdade, se o mundo se está a deteriorar, a culpa, afinal de
contas, pode não ser dos outros. Provavelmente, o que se está a
desintegrar agora é a quantidade de amor e de atenção que são precisas
para que o mundo seja de novo lançado numa existência santa, saudável,
feliz, que nenhuma forma de poder ou de medo o podem levar a alcançar.
Ainda mais importante, a mensagem evangélica é,
agora, mais necessária do que nunca, neste mundo cheio de sentenças
pesadas, excomunhões e evasões sociais. Se nós estivermos,
pessoalmente, sem pecado, então, força! Há imensa gente por esse mundo
fora a lutar, a tentar, a magoar-se e a cair. Sintam-se livres para lhe
dar caça. Para dar cabo delas. Excluam-nas. Atirem-nas pela borda
fora. Riam-se da sua vergonha. Força! Atirem a primeira pedra!
Isso é que seria realmente um pecado.
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Joan Chittister
In O sopro da vida interior, ed. Paulinas
Fonte: http://www.snpcultura.org/Jesus_o_pecado_o_perdao.html 26.07.12
In O sopro da vida interior, ed. Paulinas
Fonte: http://www.snpcultura.org/Jesus_o_pecado_o_perdao.html 26.07.12
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