J.C.Guimarães*
Em “Indignação”, Philip Roth cria um universo surpreendente para tratar
de dois assuntos polêmicos, bastante conhecidos da geração de meados do
século passado, nos Estados Unidos: a Guerra da Coreia e a tensão sexual
entre jovens e adultos
John Casti, matemático e fundador do X-Center, em Viena, estuda
eventos extremos. Em livro recentemente traduzido no Brasil, “O Colapso
de Tudo”, o cientista numera sete princípios da complexidade, entre
eles o chamado Efeito Borboleta: “A ideia básica é que os sistemas
complexos são patologicamente sensíveis a mudanças minúsculas em seu
estado inicial”. Um exemplo aleatório,
inacreditável e verdadeiro: George W. Bush se reelegeu presidente dos
Estados Unidos, em 2004, porque uma funcionária do processo eleitoral
americano, Theresa Le Port, aumentou o tamanho da tipografia na cédula
eleitoral.
Imagino que esta seja uma maneira nada convencional de começar a
estudar um romance; no caso, “Indignação”, do americano Philip Roth,
traduzido por Jório Dauster. As últimas palavras do protagonista,
Marcus Messner, justificam essa opção, ao referir-se à “forma terrível e
incompreensível pela qual nossas escolhas mais banais, fortuitas e até
cômicas conduzem a resultados tão desproporcionais”. A cadeia de eventos
que conduzem o drama à tragédia, no caso de Messner, é desencadeada por
um gesto erótico de extrema banalidade: a masturbação — é certo:
executada em local inapropriado —, com que a namorada satisfaz uma
ereção súbita do herói. “Por um rápido toque de mão de Olívia, minha
recompensa seria a Coreia”, diz, e temos outro caso de efeito borboleta,
só que agora dentro da ficção.
Um ato de amor — privado e insignificante — num extremo, e a morte
numa guerra — consequência gigantesca —, no outro. Esta é uma associação
aparentemente absurda, e compreender a lógica desse absurdo foi a
tarefa que se propôs Philip Roth, com esse romance magistral, uma das
melhores novidades literárias com as quais tive contato, no ano que
passou. Roth, escritor americano de origem judaica, nasceu em 1933 e
tornou-se um dos mais premiados autores dos Estados Unidos, tendo
amealhado, entre outros, o Pulitzer de 1997, e o Príncipe das Astúrias
de 2012. Tem 14 títulos publicados no Brasil. Em “Indignação” trata de
dois assuntos polêmicos, bastante conhecidos da geração de meados do
século passado, naquele país: a Guerra da Coreia e a tensão sexual entre
jovens e adultos. O auge desse conflito de valores culturais, opondo
rebeldes a conservadores, explodiria 15 anos mais tarde, durante a luta
pelos direitos civis no contexto político da Grande Sociedade, de
Lyndon Johnson. Para tratar daqueles assuntos, com a propriedade de uma
testemunha, é que Roth cria o universo inteiramente novo e surpreendente
de “Indignação”.
O enredo da obra é o seguinte: Marcus Messner é um jovem judeu filho
de açougueiros, único rebento de um pai atemorizado pela ideia de
perdê-lo, em função de algum descuido, “a menor coisinha”. O drama se
passa entre 1951 e 1952, nos Estados Unidos, durante a guerra
mencionada, e o histórico da família, em conflitos dessa natureza, é
negativo. Compreensível, o temor paterno vira obsessão, e é com o
objetivo de livrar-se desse tormento doméstico que o rapaz entra na
universidade: “Estava ansioso para me tornar adulto e independente,
exatamente aquilo que vinha causando terror em meu pai”. Ao migrar de
Newark, nos arredores de Nova York, para a provinciana Winesburg, na
área rural de Ohio, ele se depara com os valores predominantes da
direção e das confrarias de estudantes, que tentam cooptá-lo: “Quase
toda a vida social dos cerca de mil e duzentos alunos da universidade se
passava atrás das pesadas portas com ferragens negras das
fraternidades”. Espírito livre e independente, Messner é incapaz de
adaptar-se a essa situação, cuja única recompensa é a paixão contraída
pela colega de turma Olívia Hutton, primeira e única experiência erótica
de sua curta existência: “Jamais me sentira tão vulnerável ao repartido
dos cabelos de qualquer pessoa”. Como ele próprio, Olívia é uma
estudante solitária e acima da média. De ato em ato, e de negativa em
negativa, Messner acaba se enrolando e termina expulso. Ao ser expulso é
convocado pelo exército. Convocado, morre na guerra da qual tentou,
desesperadamente, escapar.
De um risco improvável o personagem termina aniquilado: “Memória em
cima de memória — nada mais do que memória”. “Indignação” é a lembrança
de um morto — a exemplo do melancólico Brás Cubas.
O romance de Roth organiza-se em cima de quatro núcleos dramáticos: a
família, constituída de pai e mãe; a universidade, representada pelo
diretor de alunos Howes D. Caudwell e pelo presidente Albin Lentz; as
confrarias, sobressaindo os colegas Sonny Cottler, o endiabrado Bertram
Flusser e Elvyn Ayers Jr.; por último o amor, Olívia Hutton. A guerra é
a sombra que paira do primeiro ao último parágrafo; sombra que é o
simulacro da morte, empestando de sangue a vida de Messner desde a
adolescência até o campo de batalha. Grande ironia, o eviscerador de
galinhas terminará fatiado por uma baioneta, aos 19 anos de idade,
cumprindo as premonições do pai. É até possível que a causa primeira e
insignificante deste destino desproporcional, ao menos em termos gerais e
não da universidade, seja o medo paterno, incorporado pelo herói, a
quem a rivalidade com os comunistas o destinava. Seu terror foi o terror
de uma geração inteira de jovens norte-americanos.
O pai é um sujeito simples e trabalhador, tendo ensinado a Messner o
ofício sangrento. Mas a relação de amor entre os dois termina em ódio,
em função da paranoia que toma conta do velho açougueiro. Por medo, este
começa a perseguir o filho e ameaçar a sua liberdade, transformando-se
no símbolo de uma autoridade renegada que Messner, todavia, volta a
reencontrar encarnado no poderoso e velho Caudwell, em Winesburg. A
guerra particular de Messner é contra a autoridade e tudo o que ela
significa de repressão aos instintos vitais do homem. As únicas
referências positivas na vida do estudante são as duas figuras femininas
do romance: a mãe — “Era tudo, menos frágil e submissa” — e a namorada,
Olívia, com quem finalmente perde a virgindade. Sua mãe não gosta de
Olívia e tem sobre a família do velho Messner as mesmas reservas do
filho racional agora tentado pelos sentimentos, dando-lhe o conselho
memorável: “Não seja como eles. Você tem que ser maior que seus
sentimentos. Não sou eu que exige isso de você; é a vida que exige. Se
não, você vai ser levado de roldão pelos seus sentimentos. Eles vão te
levar até o mar e você não será mais visto. Os sentimentos podem ser o
maior problema na vida”.
Roth participa de uma tradição romanesca que vai de si mesmo a García
Márquez, deste a Machado de Assis e de Machado a Flaubert: uma tradição
que exalta a mulher como figura de fibra superior e mais heroica do que
o homem, frágil e mesquinho.
Estou de acordo com isso. Porém, tenho opiniões sobre Olívia que
talvez não sejam facilmente partilhadas pelos demais leitores de Roth,
sobretudo mulheres. A mais importante: ela simboliza em primeira ordem o
desejo masculino insatisfeito no mundo real, onde é recriminado. Qual
desejo? Ser compreendido pelas mulheres em sua ânsia insaciável por
sexo. Ela declara a Messner após a primeira experiência com ele:
“Eu-queria-te-dar-o-que-você-queria. Será que é muito difícil entender
essas palavras?”. A pergunta sobre a dificuldade de entender é
principalmente dirigida ao leitor (ou melhor, leitora), e não poderia
jamais ser a especulação de uma mulher, tampouco Olívia criação de uma
romancista. Só poderia ser concebida por um homem; nesse caso Philip
Roth, sensualista inveterado tanto quanto J.M. Coetzee (“Desonra”) e
Sérgio Sant’Anna (“O Livro de Praga”).
Mas a sondagem da psicologia feminina não fica a dever: o que as
excita, ao menos de um ponto de vista masculino, é o poder — o carrão de
Elvyn Ayers Jr., dentro do qual Messner e Olívia iniciam sua aventura
amorosa — e, pelo menos em 1950, os limites, proibições e tabus que
impediam as moças de reestabelecer os vínculos familiares perdidos. Ou
seja: nada a ver com as tentações da carne, como para os homens, antes
com a segurança e estabilidade pessoal e da prole.
Olívia é, porém, exuberante demais e comporta outra interpretação
fundamental, ao lado de seu amante: a vítima do modelo educacional e da
moral repressiva capitaneados por Caudwell, que atinge a medula da
sociedade — a família. Afinal: “Seu pai é um cirurgião de Cleveland e
ilustre ex-aluno da Winesburg, por isso a recebemos a pedido do doutor
Hutton. Não deu certo nem para o doutor Hutton nem para a universidade, e
muito menos para Olívia”. Trata-se de uma confissão inconsciente de
Caudwell. No mesmo capítulo, o que dirá Messner? Que “Eu próprio havia
sido tragado pela insipidez não apenas dos costumes de Winesburg, mas da
retidão que tiranizava minha vida, a retidão sufocante que, eu estava
pronto a concluir, levara Olívia à loucura”. Vale lembrar, a pobre moça
corta os pulsos duas vezes e termina num sanatório.
Outro efeito colateral, e desta vez coletivo, dessa educação
repressiva, é implacavelmente diagnosticado: a catarse desenfreada dos
estudantes que culmina no Grande Ataque às Calcinhas Brancas, no
epílogo: “Vez por outra, uma voz masculina profunda, articulando o
pensamento de todos aqueles que não eram mais capazes de obedecer ao
sistema prevalecente de disciplina moral, urrava abertamente: ‘Queremos
as garotas!’”. A conformidade perturbadora dos estudantes termina
explodindo de maneira irracional, culminando naquelas consequências
desproporcionais, aludidas no começo. Messner, devido ao ato
libidinoso, ao desacato da autoridade e à fraude, é expulso de roldão,
junto com colegas insubordinados.
De Philip Roth eu li “O Animal Agonizante”, romance mais intimista e,
a meu ver, menos interessante do que “Indignação”. De qualquer modo
permite estabelecer uma tendência do autor: a de colocar seus
personagens em choque contra os valores institucionalizados da família e
da sociedade. Outra vez deparamos com o tema da liberdade sexual, e
outra vez nos vemos dentro de uma narrativa parcialmente histórica,
colidindo duas ideologias por intermédio da ação individual. Ignoro se
por isso Roth — autor de pelo menos 30 obras literárias — pode ser
definido como escritor emersoniano. Mas não tenho dúvida em classificar
“Indignação” nessa categoria.
Emerson era gnóstico e Messner, apesar do sangue judeu, ateu
convicto. Mesmo assim foi capaz de sugerir irresistivelmente a
manifestação do mal em dois colegas: Sony Cotller, figura luciferiana, e
Merty Ziegler, bem próximo de Judas ao aceitar o suborno de Messner
para substituí-lo nos serviços religiosos da Winesburg, ao custo de um
dólar e cinquenta centavos: “Esse Zigler era um erro, eu tinha certeza —
o erro final”.
No
longo e tenso diálogo ocorrido no primeiro encontro com o diretor
Caudwell — quando o conselho da mãe cede ao impulso e ele manda o
diretor “se foder”—, nesse encontro Messner evoca Bertrand Russel para
fundamentar sua recusa em aceitar as regras impostas pela instituição,
dizendo que pretende viver em conformidade com o ideário contido no
ensaio “Por que não sou um cristão”, do filósofo inglês. As altercações
do diretor se voltam todas para a preferência religiosa, o
relacionamento social e o convívio familiar de Messner, permitindo
acompanhar como a moral puritana se infiltra na intimidade das pessoas,
até dominá-las completamente. Trata-se do diálogo mais absurdo do mundo,
no qual o diretor de alunos faz perguntas que poderiam ser feitas a si
mesmo diante do espelho para cair em contradição. É um capítulo de alto
humorismo, de onde aliás se extrai o título “Indignation”. Caudwell não
admite as “dificuldades de socialização” e “isolamento” de seu aluno,
seguro o bastante para afirmar a própria independência: “Não tenho
interesse pela vida nas fraternidades”. Então, apesar de Russel, a
idiossincrasia de Messner reverbera a do próprio Emerson, quando este
proclama que “quem deseja ser um homem tem de ser um dissidente”.
Messner é a perfeita encarnação do dissidente: individualista
consumado, não liga para “fraternidades” — latu sensu, partidos, clubes,
grupos, associações, igrejas — e só se interessa pelo conhecimento.
“Meu único interesse são os estudos”, declara provocativamente o jovem
que “não tem medo de ficar sozinho”; o jovem que não faz o tipo da
sociedade e que ridiculariza sua moral hipócrita. Essas outras palavras
de Emerson poderiam seguramente constituir o credo de Marcus Messner:
“Por toda parte a sociedade está em conspiração contra a virilidade de
cada um de seus membros. A sociedade é uma companhia por ações, na qual
os sócios concordam, para melhor assegurar o pão de cada acionista, em
renunciar à liberdade e à cultura de quem dela desfruta. A virtude de
maior demanda é a conformidade. A autoconfiança é causa de aversão. À
sociedade não aprazem realidades e criadores, mas nomes e costumes”.
John Casti, citado no começo deste ensaio, faz lembrar, como os
antropólogos, que as relações sociais caracterizam, por si só, um
sistema complexo e altamente organizado. Sustentam-se por meio de
ritos, valores e tabus assimilados pelos indivíduos e materializados em
instituições de diversas naturezas. Essas relações são ultrassensíveis
aos comportamentos dissonantes, ao escândalo — escândalo que muitas
vezes é só uma maneira diversa de encarar o mundo, como a de Messner,
infelizmente resultando em tragédia familiar. O panorama final de
“Indignação” reflete a nulidade das associações humanas — creio que sem
chegar ao extremismo niilista — com a combinação explosiva das religiões
institucionalizadas. Para Roth — cuja única crença possível parece ser
no individualismo — não é daí que emergem os indivíduos moralmente sãos.
Por fim, um dos baratos de “Indignação” é nos fazer querer descobrir
se a Winesburg existe de verdade ou não (ou existiu). O leitor cai na
cilada de uma “Nota histórica” que conclui o romance, no qual a
instituição de ensino é mencionada com todas as letras. Tudo leva a crer
que tal nota é uma artifício ficcional, uma vez que não há indícios da
existência de tal universidade no Estado de Ohio, onde se passa a
história. Se, portanto, procede a sugestão de que Roth a criou,
“Indignação” poderia ser caracterizado como romance hiperrealista,
porque engana muito bem — tão bem quanto uma pintura de seu conterrâneo
Robert Bechtle. Passaria aos desavisados por romance histórico sem
sê-lo, na verdade: ao menos porque nenhuma criatura em cena foi uma vez
de carne e osso — nem mesmo os famigerados Albin Lentz e Hawes D.
Caudwell. E, no entanto, acreditamos que essas pessoas são reais como a
rebelde Jenie Wyatt, ao que parece outra saborosa invenção do escritor,
em “O Animal Agonizante”. Quem nos criou deve admirar o criador dessas
criaturas.
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* Crítico literário.
Fonte: http://www.revistabula.com/170-indignacao-de-philip-roth/10/03/2013
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