domingo, 10 de março de 2013

Chávez e os novos militares

Mauro Santayana*


A morte, prematura, de Hugo Chávez, deixa uma certeza: a Venezuela não voltará a ser o país que foi antes de sua presença no Palácio de Miraflores. Como anotou o New York Times, o presidente não construiu autoestradas nem grandes edifícios, mas legou a seu povo uma nova forma de ver e sentir o país. E esse povo não voltará a aceitar as regras antigas de submissão social.  Chávez não era  predestinado ao poder, como tantos outros líderes militares latino-americanos, que viam as Forças Armadas como “a última aristocracia. A definição é do poeta argentino Leopoldo Lugones, ao discursar no centenário da Batalha de Ayacucho, travada em 1826 no Alto Peru, que expulsou os espanhóis de nosso continente.
Os militares, principalmente os argentinos e chilenos, sempre se sentiram herdeiros daqueles nascidos na América do Sul, que participavam dos exércitos espanhóis e se uniram a Bolívar e a San Martin para fazer a independência. Mas isso não impediu que se submetessem aos interesses externos, quando isso interessava às oligarquias internas de que, por origem familiar, procediam.

O homem que morreu terça-feira foi um soldado comum, jogador de beisebol, que se insurgiu contra a desigualdade social em seu país e, depois de frustrado golpe de Estado, elegeu-se seu presidente. Sua ascensão ao poder e seu prestígio popular podem surpreender os que não conhecem a história nestes últimos 20 anos na América Latina. Mas nada houve de insólito em sua vida e destino.



Os exércitos da América Latina não são os mesmos. A origem de classe dos oficiais — embora haja ainda alguns com sobrenomes históricos — mudou bastante, depois dos regimes ditatoriais que, patrocinados pelos Estados Unidos, infelicitaram os nossos povos. Não é difícil hoje encontrar oficiais superiores filhos de famílias bem modestas e mesmo pobres.  A memória das dificuldades na infância os faz diferentes, dispostos a apoiar governantes que almejam vencer as desigualdades históricas.

Chávez nasceu no mesmo ano, duro para os brasileiros, em que morreu Vargas. A Venezuela, em 1954, estava sob o mando de Marcos Perez Jimenez, o mais corrupto de todos os seus governantes, e que chegara ao poder em um dos tradicionais golpes de Estado. Jimenez usou o dinheiro dos royalties do petróleo — como certos comentaristas brasileiros preferiam que Chávez tivesse feito — para financiar o “desenvolvimento” dos empresários associados ao capitalismo internacional e participar, pessoalmente,   de todos os negócios, mediante as propinas conhecidas. Derrubado em 1958, Perez Jimenez fugiu para os Estados Unidos, com 200 milhões de dólares, que seriam hoje mais de 2 bilhões. A pedido de Caracas, foi extraditado, julgado e condenado, e passou cinco anos preso. Em liberdade, asilou-se em Madri, sob a proteção direta de Franco, e ali morreu em 2001.

Ao contrário do que dizem seus inimigos, Chávez manteve as instituições democráticas. Ao voltar ao poder, depois do frustrado golpe contra seu mandato, ele poderia ter usado de  repressão violenta contra os responsáveis, mas não o fez. Manteve as instituições e governou de acordo com os marcos democráticos da Constituição de 1999, aprovada por uma assembleia nacional e referendada pelo voto direto dos cidadãos.

“Yo no soy um hombre, soy un pueblo”, dissera o colombiano Jorge Eliécer Gaytán, cujo assassinato, provavelmente com a participação da CIA, levantou o povo de Bogotá em 9 de abril de 1948, e serviu de inspiração a Fidel Castro, que se encontrava na cidade. Naqueles dias, a OEA, mais do que hoje submissa a Washington, realizava ali sua assembleia anual.

Chávez, como personalidade invulgar, não terá substitutos. Coube-lhe ensinar o povo a ver com clareza o seu país e os seus direitos, e assim, cumprir o próprio destino. Ele repetiu a retórica de Jorge Eliécer Gaytán, ao dizer — já resignado com a ideia da morte — que ele já não era ele mesmo, mas, sim, o seu povo. E que, em seu povo, ele continuaria a dirigir a “revolução bolivariana”. 

Talvez a mais expressiva homenagem a Chávez tenha partido de Sean Penn, o grande astro do cinema norte-americano. “O povo norte-americano perdeu um grande amigo, que nunca soube que tinha”, disse o excepcional ator de All the King’s Men. Os cineastas Oliver Stone e Michael Moore também manifestaram o mesmo pesar. 

O grande dirigente político não foi exceção na América, mas a expressão, que se renova em cada geração, em homens da mesma estatura, na luta permanente  pela igualdade, liberdade e soberania nacional de nossos povos. E não adianta matá-los, como fizeram a Allende, nem levá-los ao suicídio, como ocorreu a Vargas. O povo, que há neles, é a forja dos novos combatentes.

Em tempo: o Brasil está presente nos funerais com uma numerosa delegação, chefiada pela presidente Dilma Rousseff. E não poderia ter sido de outra forma. Em seu tempo, Chávez, mais do que um aliado político e parceiro econômico do Brasil, foi um grande e bom amigo de nossa gente.
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* Jornalista.
Fonte: Jornal do Brasil, 08/03/2013
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