domingo, 17 de março de 2013

Donde vem a alegria?*

 
O maior desejo de Jesus é que tenhamos um coração alegre e que ninguém possa arrebatar-nos essa alegria (Jo 16, 22). É essa, precisamente, a intenção da oração de súplica: «Até agora não pedistes nada em meu nome: pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja completa» (Jo 16,24). É também a razão da vinda de Jesus. Vem para trazer a vida e a alegria: «Eu vim para que as ovelhas tenham vida e a tenham em abundância» (Jo 10,10). 

(...)

A tristeza, ou a penitência que a exprime, é sinal de que Jesus não está ou deixou de estar presente. É por isso que Jesus deixa de jejuar depois da Ressurreição, como atestam os relatos da Ressurreição: impressiona verificar como o pão é partido e comido, uma e outra vez (Lc 24, 30.35; Jo 9, 13). O Esposo regressou e o discípulo de Jesus tem, por isso, o direito de receber, neste mundo, o cêntuplo prometido (Mc 10, 30). E porque não?! De acordo com as palavras de Jesus, os nossos nomes estão inscritos no céu, para nossa maior alegria (Lc 10, 20). 

A pergunta, no entanto, deve ser feita - mesmo que quiséssemos evitá-la, ela impor-se-ia, inevitavelmente: Donde vem essa alegria? Que ligação existe entre ela e a alegria que o mundo pode dar? É difícil responder, se ainda não experimentámos a alegria dada por Jesus. Por isso, as opiniões são bastante divergentes, mesmo entre os teólogos de profissão, Uns insistem no facto de que a alegria deste mundo é já um reflexo e um gosto antecipado da alegria futura do Reino. Querem dizer com isto que a alegria deste mundo não pode ser ignorada e que tem a sua importância. Contém já a alegria futura. Outros, pelo contrário, põem o acento na necessidade de renunciar às alegrias passageiras deste mundo, de olhos fixos na alegria que há de vir. Encontramos as duas tendências na história da espiritualidade. Alguns insistem na continuidade entre o que agora é e o que será no Além, mas de uma maneira muito melhor; outros sublinham a passagem para a luz e a rutura provocada por essa passagem. Para estes, não existe denominador comum entre a alegria deste mundo e a alegria de Jesus. 

Neste campo, nem sempre é preciso chegar a uma síntese teológica perfeitamente satisfatória. Basta saber viver com as nossas alegrias simples e procurar cada vez mais recebê-las das mãos de Jesus e através do Espírito Santo. Se o conseguirmos, qualquer coisa transformará pouco a pouco a nossa alegria, um tanto mundana e egoísta na sua origem. Assim que Jesus entra em cada uma das nossas alegrias, já não podemos senão crescer na alegria. Mesmo que isso raramente aconteça sem ferida ou' laceração': são esses os sinais de uma vida em crescimento e, portanto, também de uma alegria cada vez mais profunda e que se eleva cada vez mais alto. 

Esta tensão entre o hoje e o amanhã, o presente e o passado, o que vem e o que fica, também se encontra no Evangelho. Este fala-nos constantemente da alegria.No entanto, não escapamos à sensação de que a alegria atual é sempre limitada e deque tudo tem um fim. A alegria perfeita e completa de que fala Jesus não se identifica com as alegrias do mundo. É como se não pudéssemos passar destas à alegria futura sem que qualquer coisa de perturbador aconteça, mesmo à escala planetária. O Reino de Jesus não é realmente deste mundo (Jo 18, 36), embora a semente já tenha sido semeada e germine de modo misterioso. 

(...)

A relação entre Jesus e a nossa alegria neste mundo não é fácil de detetar. Se queremos seguir Jesus pelo caminho da sua alegria, sentimos sempre a grande tentação de nos afastarmos dEle e de procurarmos as nossas pequenas alegrias transitórias e limitadas, correndo assim o risco de perdermos para sempre a verdadeira alegria. É como se a alegria de Jesus avançasse em espiral rumo a um ponto central. Supõe-se que nós seguimos a curva dessa espiral tão fielmente quanto possível. Mas, ao mesmo tempo, somos continuamente tentados a esquivar-nos, a sair da espiral e continuar absolutamente sozinhos. Nesse caso, é enorme o risco de nos afastarmos do Reino de Deus, no centro da espiral, e de nos perdermos, temporária ou definitivamente, nas nossas insignificantes alegrias humanas. Aqui surge de novo a questão: devemos, então, renunciar à alegria para seguir Jesus? E, se sim, em que medida? Ou pelo contrário: a penitência e a mortificação não significam passar pelo caminho de Jesus, a fim de alcançar a alegria perfeita, a alegria em plenitude (Jo 15,11)? Assim como existe um amor levado ao extremo, que passa pela morte de Jesus (Jo 13, 1), não poderia haver uma alegria levada ao extremo, através dessa mesma morte e Ressurreição? 

Antes de continuarmos; sublinhemos, por um momento, que a alegria verdadeira não é, antes de mais, um sentimento de exaltação. Não convém confundir a alegria corri as suas diversas expressões a todos os níveis: existe o prazer, o conforto, a alegria intelectual e artística, a alegria do trabalho bem feito ou do empreendimento conseguido; há, sobretudo, as. alegrias incontáveis das relações humanas, incluindo a alegria do amor, que deve acompanhar o homem ao longo de toda a sua vida. E, no entanto, todas essas experiências não passam de formas exteriores da alegria. Quanto mais importantes forem essas formas, mais profundas as suas raízes. A alegria verdadeira situa-se a uma grande profundidade, e deveríamos cavar profundamente em nós até fazê-la jorrar. É esse sem dúvida o sentido da expressão que costumamos usar quando queremos exprimir uma grande felicidade: Estou profundamente feliz. É por isso que qualquer. grande felicidade é também silenciosa. Não se pode exprimir. É indizível. Raramente aflora à superfície e nós seríamos incapazes de ostentá-la. Somos habitados por essa alegria na própria raiz do nosso ser. 

A alegria é o terreno de cultura onde toda a vida lança raízes para ter condições de existir. Não poderíamos viver sem alegria, ou melhor: não poderíamos sobreviver. A alegria brota mais particularmente em momentos existenciais extraordinários, quando nos é dado fazer a experiência da nossa realidade profunda, da beleza ou da vida. Pensemos na alegria que pode ocasionar uma obra de arte: A thing of beauty is a joy for ever (uma coisa bela é uma alegria perene). No prazer artístico, brota a verdadeira alegria, porque, precisamente, graças à arte, desco brimos melhor o ser das pessoas e das coisas e, de certo modo, tocamo-las. Há nisto qualquer coisa que não podemos observar pela via ordinária dos sentidos. A realidade profunda dos outros é 'algo habitualmente inexprimível. Mas a alegria que experimentamos no contacto com um ser é sempre sinal de que nos é dado comungar profundamente com ele.
Esta alegria vai crescendo à medida que cresce o nosso ser. Porque a alegria é a característica dum ser vivo e em crescimento, dum ser que se desenvolve num «ser-mais». A alegria, portanto, vai sempre ligada à dinâmica das pessoas e das coisas. Contém um ritmo que, para o nosso próprio desenvolvimento, é importante nós abraçarmos. A alegria que jaz na fonte do nosso ser impele-nos, também, cada vez mais longe. É próprio dela
fazer-nos crescer no ser. SÓ a alegria é capaz disso.

Ali, onde a vida está a crescer, brota sempre uma nova alegria. O exemplo mais evidente é a alegria ligada à paternidade e maternidade, a partir da conceção, cujo prazer é sinal duma alegria e dum amor que vêm de algo mais alto do que o humano. Em tudo aquilo em que o homem participa da criação, desponta uma alegria nova e desconhecida. É assim que a alegria também está ligada ao 'processo de crescimento espiritual. Sobretudo quando alguém pode acolher uma vida nova da parte de Deus. É assim a alegria profunda do arrependimento, quando Deus nos recria no seu amor misericordioso. Um dos momentos existenciais mais intensos da nossa vida é, sem dúvida,·quando somos tocados pela graça e pela misericórdia de Deus, a fim de vivermos novamente nEle. É esse, também, o caso da amizade, quando nos sentimos aceites por outro com o nosso ser mais profundo, que ainda se encontra provisoriamente escondido a nossos olhos mas que já é reconhecido pelo amor dum outro. Na verdadeira amizade, o encontro nunca encerra qualquer ameaça. Estamos autorizados a ser plenamente nós mesmos, mais profundamente do que aquilo que se vê por fora. Por isso é que nós dizemos que a amizade «nos faz bem», querendo com isto significar que ela nos sustenta e nos ajuda a desenvolver o melhor de nós mesmos. 

A alegria é, pois, uma característica do ser, na medida em que este cresce e alarga as suas fronteiras. De certo modo, a nossa alegria precede sempre um pouco a situação em que nos encontramos presentemente. É um apelo e um desafio. É alegria na medida em que aceitamos estar já situados mais longe, num outro, ou em Deus, mais longe do que onde nos encontramos de momento. Mas à medida que a alegria nos faz entrar na espiral da felicidade, existe também o perigo de nos desviarmos e nos perdermos numa outra felicidade. Encontramos frequentemente, nas pegadas da alegria, encruzilhadas em que há a possibilidade de nos esquivarmos para uma felicidade estreita e limitada, na qual, com o tempo, corremos o risco de nos enredar. Esta alegria imediata não vem necessariamente do maligno. Não. Mas também já não é a nossa alegria habitual, a alegria que responde ao nosso ritmo profundo, neste momento. Embora preciosa, afasta-nos da nossa dinâmica interior. Poderíamos estar mais longe, mais perto. já da alegria absoluta, no centro da espiral. Porque viver é crescer, e crescer sempre mais. Viver é desenvolver-se; uma vida que deixa de se desenvolver já está morta. É por isso que a verdadeira vida exige sempre alguma dilaceração, a fim de entrar num renascimento cada vez mais profundo. Dilaceração que se assemelha às dores e à alegria do parto. 

A única ascese que se pode impor à alegria abrange o seu ritmo. É o movimento da espiral que vai abandonando cada vez mais os círculos exteriores, a fim de se dirigir para o seu centro mais íntimo. A ascese da alegria é, portanto, a própria alegria. A verdadeira alegria - como o verdadeiro amor - leva em si a sua própria purificação. Para purificar uma alegria não convém nunca restringi-la desde fora. Basta seguir-lhe as pegadas, abraçar a espiral. Impossível, então, escaparmos à purificação: ela está na própria alegria. Para salvar a verdadeira alegria, precisamos sempre de nos desprender do que não passa de uma sua expressão provisória. Temos de estar dispostos, a cada momento, a abandonar um pobre gozo limitado, para cavarmos até chegarmos a uma alegria mais profunda, até à alegria extrema, que coincide sempre com o amor extremo. 

Só se pode falar de ascese ou de penitência tendo em vista a alegria. A penitência nunca deve agredir a nossa alegria, como se toda a alegria devesse ser suspeita e não pudesse ser vivida senão com má consciência; como se toda a alegria tivesse de ser expurgada ou restringida desde fora. A ascese não é mais do que entregar-se à vida verdadeira e à alegria profunda que nos habitam. Nesse sentido, ela não é de modo algum um agere contra, um «agir contra», mas antes um agere secundum, um «agir conforme» à alegria, em harmonia com o nosso ser profundo; ou, se quisermos ainda acentuar a dinâmica particular da alegria, a as­cese não pode ser senão um agere ultra, um «ir mais além», um ultrapassar a alegria provisória e limitada que só foi concedida para ontem e hoje e que amanhã será completamente nova. 

É por isso que a verdadeira ascese tem pouco que ver com a força de vontade e não deve nunca levar à crispação. Muito pelo contrário. A ascese é um abandono descontraído e submisso, perante a alegria que nos habita, uma paragem e uma abertura . que permite à vida desenrolar-se sem obstáculo e quase sem dificuldade. É a libertação e o nascimento dum homem novo. A ascese recorda assim surpreendentemente aquilo a que chamam parto sem dor. (...)

Todo o discípulo de Jesus, em quem a vida de Jesus deve crescer constantemente, encontra-se, como esta mulher que dá à luz, entregue à dor e à alegria do crescimento. Vive dessa alegria, isto é, a partir da medida perfeita da estatura adulta de Jesus Cristo, para a qual ele tende. É por isso que a sua ascese é sempre alegre, e a única medida da sua ascese tem de procurar-se na alegria que lhe é dada pelo Espírito Santo. Não diz S. Bento na sua Regra que toda a ascese e mortificação extraordinárias não têm valor senão na medida em que se puderem oferecer a Deus com a alegria que procede do Espírito Santo? (R.B. 49,6). Importa, pois, que todo o discípulo de Jesus abrace a sua alegria. Há duas maneiras de lesar a alegria, ao mesmo tempo que a vida de Deus em si: ou apontando para mais além da alegria que se recebeu efetivamente; ou ficando aquém da alegria que nos está destinada. 

No primeiro caso, queremos fazer. um esforço, mesmo privados de alegria. É o exemplo típico de uma má ascese: uma ascese que não é orientada pelo impulso do Espírito Santo, de que a alegria é o fruto sensível. Uma ascese assim resulta nula e não aceite aos olhos de Deus. Não passa de um esforço pagão, na maioria das vezes misturado de presunção e orgulho. Podem detetar-se aqui tendências masoquistas, que encontram a sua satisfação em práticas de penitências suspeitas. Nada disto tem algo a ver com a graça. No melhor dos casos, pode ser indício de boa vontade, que Deus, aliás, não deixa sem recompensa, mas de que não tem em absoluto qualquer necessidade. Uma ascese pagã leva-nos a apontar para além do que nos foi dado como medida da graça na alegria do Espírito. Com o tempo, poderia extinguir essa alegria e embotar perigosamente a nossa sensibilidade espiritual.

Mas acontece mais frequentemente ficarmos aquém da alegria que nos é dada e, com isto, fazermos agravo à graça e à vida de Jesus em nós. Por medo do sofrimento que acompanha sempre todo o processo de crescimento, ficamos apegados à nossa felicidadezinha limitada. Esta pode parecer-se a uma alegria realmente espiritual: alguma consolação na oração, algum sucesso no apostolado. Porque também é possível apegar-se a uma alegria espiritual ao ponto de já não nos permitir avançar rumo a uma alegria mais profunda. Por isso, é bom orar de vez em quando, a fim de descobrirmos em nós essa alegria profunda, ou melhor ainda, para que ela algum dia se apodere de nós. Sempre que a ascese se encontra plenamente em consonância com a alegria, torna-se livre, feliz e irradiante. Já não será preciso, então, apegar-se a qualquer felicidadezinha passageira. A própria alegria de Jesus se apegará a nós e nos levará, através de toda a mortificação, até à ressurreição e à vida nova.
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* Título do blog. Imagem da Internet.
A. Louf, Ao ritmo do Absoluto, A.O., Braga 1999, 125-135
Seleção de Teresa Messias, professora na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa

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