Fernando Luis Schüler*
Kwame Anthony Appiah in his New York apartment, 2002.
(AP Photo / Jerry McCrea)
Kwame
Appiah é um escritor de origem ganesa, nascido em Londres, hoje
professor de filosofia em Princeton. Recentemente publicou, no Brasil, o
seu O Código de Honra: como ocorrem as revoluções morais. Ele mostra
como os padrões éticos e a noção do que é direito tem evoluído ao longo
do tempo. Até meados do século 19, os duelos eram prática comum. Uma
completa irracionalidade que em certo momento foi superada. O mesmo
ocorreu com o costume chinês de amarrar os pés das mulheres. O maior
exemplo foi a superação da escravidão. Eram práticas que compunham o
código moral da sua época e foram vencidas pelo uso da palavra e pela
ação de pessoas que se anteciparam no tempo.
Refletia sobre isto observando a reverberação do périplo de Yoani Sánchez pelo país, em meio a nosso tórrido verão. Yoani é uma cronista do cotidiano, com um texto intimista, autorreflexivo, que de algum modo me lembra excelentes cronistas brasileiros, como Martha Medeiros e Zuenir Ventura. Não me refiro a eventuais opiniões políticas, questão sem relevância aqui. Ela torna-se uma escritora política uma vez que é impossível, em um regime totalitário, separar o cotidiano da política.
Appiah escreve sobre os “códigos de garantia do acesso ao respeito”. Em Cuba, o acesso ao respeito é dado pela adesão do indivíduo ao partido e ao Estado. As autocracias são todas diferentes e iguais ao mesmo tempo, e também foi assim, em boa medida, nos regimes militares do Cone Sul. Cada época produz seus próprios códigos. À época da escravidão, o acesso ao respeito era dado pela raça. O grande líder abolicionista afro-americano Frederick Douglass dizia que a escravidão seria derrotada quando deixasse de ser respeitável, dentro e fora dos Estados Unidos. Ele foi à Inglaterra, como um dissidente, palavra que não se usava na época. Não tinha um blog, mas um jornal. Nos termos de Appiah, ele ajudou a criar um novo código “não hierárquico” de respeito, fundado na igualdade. E por isso liderou uma revolução moral, no seu tempo, essencial para que o presidente Lincoln fizesse a sua parte.
Intuo que a repercussão internacional não só de Yoani, mas também de Berta Soler e das Damas de Blanco, seja o sintoma de uma revolução moral do nosso tempo. Não me refiro apenas ao processo de democratização de Cuba, mas à silenciosa mutação ética que fará qualquer regime ditatorial cada vez menos digno de respeito, independentemente de sua coloração ideológica. No momento em que escrevo este artigo, o jornalista Calixto Martínez encontra-se preso em Havana, depois de cumprir uma greve de fome de 33 dias. Ele está longe de ser o único. Torço para que seu destino não seja o de Guillermo Fariñas, ou do operário negro Orlando Zapata, cuja greve de fome durou 83 dias, morto em 2010. Vejo essas pessoas como quem decide, a um dado momento, dizer “não”. Fazem isto com o recurso do autoflagelo, ou simplesmente à frente de um velho computador, escrevendo. Elas recusam a “igualdade na obediência”, sinalizam a mudança do código. Hoje são como fantasmas, dos quais todos fogem, mas suspeito que um dia serão lembradas por isso.
A flexibilização da lei migratória cubana, caso prossiga, irá acelerar o fim do regime. O processo da liberdade é como uma ladeira escorregadia. Depois de uma temporada na França ou no Brasil, os cidadãos dificilmente aceitarão voltar a seu país e não ter o direito de acessar a internet. Se o fizerem, desejarão opinar sobre os mais variados assuntos, inclusive assuntos políticos. Em seguida, desejarão formar associações e partidos para defender suas ideias. Por fim, desejarão votar. O mesmo que Douglass exigia para os escravos americanos libertos em 1865. O mesmo sentimento que varreu o Brasil no início dos anos 80, e logo varreria a Europa do Leste no final da década. A história vai varrendo seus barbarismos.
O fato é que a revolução tecnológica tem tornado cada vez mais difícil a vida dos agressores “em série” de direitos. Há um big brother global observando-os cada vez mais de perto. Esses insuportáveis dissidentes serão o seu pesadelo, cada vez mais os expondo a um conhecido castigo: a vergonha. Vergonha que se estende aos que observam de longe, fazendo de conta que nada percebem.
Refletia sobre isto observando a reverberação do périplo de Yoani Sánchez pelo país, em meio a nosso tórrido verão. Yoani é uma cronista do cotidiano, com um texto intimista, autorreflexivo, que de algum modo me lembra excelentes cronistas brasileiros, como Martha Medeiros e Zuenir Ventura. Não me refiro a eventuais opiniões políticas, questão sem relevância aqui. Ela torna-se uma escritora política uma vez que é impossível, em um regime totalitário, separar o cotidiano da política.
Appiah escreve sobre os “códigos de garantia do acesso ao respeito”. Em Cuba, o acesso ao respeito é dado pela adesão do indivíduo ao partido e ao Estado. As autocracias são todas diferentes e iguais ao mesmo tempo, e também foi assim, em boa medida, nos regimes militares do Cone Sul. Cada época produz seus próprios códigos. À época da escravidão, o acesso ao respeito era dado pela raça. O grande líder abolicionista afro-americano Frederick Douglass dizia que a escravidão seria derrotada quando deixasse de ser respeitável, dentro e fora dos Estados Unidos. Ele foi à Inglaterra, como um dissidente, palavra que não se usava na época. Não tinha um blog, mas um jornal. Nos termos de Appiah, ele ajudou a criar um novo código “não hierárquico” de respeito, fundado na igualdade. E por isso liderou uma revolução moral, no seu tempo, essencial para que o presidente Lincoln fizesse a sua parte.
Intuo que a repercussão internacional não só de Yoani, mas também de Berta Soler e das Damas de Blanco, seja o sintoma de uma revolução moral do nosso tempo. Não me refiro apenas ao processo de democratização de Cuba, mas à silenciosa mutação ética que fará qualquer regime ditatorial cada vez menos digno de respeito, independentemente de sua coloração ideológica. No momento em que escrevo este artigo, o jornalista Calixto Martínez encontra-se preso em Havana, depois de cumprir uma greve de fome de 33 dias. Ele está longe de ser o único. Torço para que seu destino não seja o de Guillermo Fariñas, ou do operário negro Orlando Zapata, cuja greve de fome durou 83 dias, morto em 2010. Vejo essas pessoas como quem decide, a um dado momento, dizer “não”. Fazem isto com o recurso do autoflagelo, ou simplesmente à frente de um velho computador, escrevendo. Elas recusam a “igualdade na obediência”, sinalizam a mudança do código. Hoje são como fantasmas, dos quais todos fogem, mas suspeito que um dia serão lembradas por isso.
A flexibilização da lei migratória cubana, caso prossiga, irá acelerar o fim do regime. O processo da liberdade é como uma ladeira escorregadia. Depois de uma temporada na França ou no Brasil, os cidadãos dificilmente aceitarão voltar a seu país e não ter o direito de acessar a internet. Se o fizerem, desejarão opinar sobre os mais variados assuntos, inclusive assuntos políticos. Em seguida, desejarão formar associações e partidos para defender suas ideias. Por fim, desejarão votar. O mesmo que Douglass exigia para os escravos americanos libertos em 1865. O mesmo sentimento que varreu o Brasil no início dos anos 80, e logo varreria a Europa do Leste no final da década. A história vai varrendo seus barbarismos.
O fato é que a revolução tecnológica tem tornado cada vez mais difícil a vida dos agressores “em série” de direitos. Há um big brother global observando-os cada vez mais de perto. Esses insuportáveis dissidentes serão o seu pesadelo, cada vez mais os expondo a um conhecido castigo: a vergonha. Vergonha que se estende aos que observam de longe, fazendo de conta que nada percebem.
---------------
*Doutor em Filosofia pela UFRGS
Fonte: ZH on line, 03/03/2013
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário