Editorial*
Argentino Francisco é surpresa e promessa de renovação na Igreja
Católica, mas deve fixar linha dura com pedofilia e outros desvios
A eleição que converteu o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio no
papa Francisco atesta como a intransparência da Igreja Católica torna
imprevisível o resultado de um conclave como o que terminou ontem no
Vaticano.
Embora conste que o arcebispo de Buenos Aires tenha sido bem votado no
anterior, que elegeu o agora papa emérito Bento 16, seu nome não
figurava nas recentes listas de favoritos.
As correntes dentro da igreja são diáfanas como o Espírito Santo e podem
se anular ou combinar de forma surpreendente, numa escolha em que a
personalidade do ungido tem preponderância.
Além de surpresa, a eleição de Francisco acarreta evidente simbolismo.
Primeiro papa extraeuropeu em muitos séculos, também o primeiro oriundo
da América Latina (que concentra cerca de 40% do total de fiéis), com
sua sagração a igreja revigora o epíteto de católica -ou seja,
universal.
Não passou despercebida a seleção do nome, prerrogativa do escolhido.
Francisco de Assis (1182-1226) é o mais exemplar dos santos católicos,
devoto ardente da simplicidade e da natureza. Insinua-se não somente uma
nova série de papas, mas um novo começo, talvez, para a igreja.
Parece ter sido fecundo o gesto inusitado da renúncia de Bento 16.
Marcado pelo enrijecimento dogmático, seu papado coincidiu com grave
crise no âmago da instituição. Constatou-se que a pedofilia era prática
disseminada em inúmeras paróquias. Verificou-se que diversos prelados
ajudaram a acobertá-la.
Para arremate, um vazamento de documentos sigilosos do Vaticano sugere
que a Cúria romana está infestada de desmandos, desde financeiros até
sexuais, como numa paródia da corte medieval que ela certa vez foi.
Embora não haja dúvida quanto às razões de saúde alegadas por Bento 16,
ficou implícita uma confissão de impotência, desde logo gerencial, e o
desejo de apressar uma renovação.
Por ironia, um papa ultraconservador pode ter deflagrado uma das
periódicas revisões internas que propiciaram à igreja sua existência
milenar e a força de uma continuidade que católicos e não católicos
respeitam.
Passou o tempo das dissensões ideológicas, depois que a teologia de
esquerda foi extirpada pelo papa João Paulo 2º. Com alguma variação de
grau, os cardeais são conservadores. As divergências parecem incidir
mais em pormenores de ética sexual do que em questões socioeconômicas.
O desafio à frente de Francisco é claro. O novo papa terá, antes de mais
nada, de esclarecer aspectos de seu comportamento durante a ditadura
militar argentina (1976-1983), a respeito do qual pesam acusações de
conivência.
Terá, ao mesmo tempo, de retomar o controle sobre uma Cúria indócil -e
traçar clara diretriz que ponha termo ao acobertamento de abusos
sexuais.
Para uma segunda fase ficaria o problema maior, expresso não apenas no
avanço de outras religiões e do secularismo, mas na distância crescente
entre dogmas obsoletos e o sentimento de uma porção, talvez já
majoritária, de católicos.
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* Editorial da Folha de São Paulo, 14/03/2013
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