quinta-feira, 14 de março de 2013

Um novo papa

Editorial*

Argentino Francisco é surpresa e promessa de renovação na Igreja Católica, mas deve fixar linha dura com pedofilia e outros desvios 

A eleição que converteu o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio no papa Francisco atesta como a intransparência da Igreja Católica torna imprevisível o resultado de um conclave como o que terminou ontem no Vaticano.

Embora conste que o arcebispo de Buenos Aires tenha sido bem votado no anterior, que elegeu o agora papa emérito Bento 16, seu nome não figurava nas recentes listas de favoritos.

As correntes dentro da igreja são diáfanas como o Espírito Santo e podem se anular ou combinar de forma surpreendente, numa escolha em que a personalidade do ungido tem preponderância.

Além de surpresa, a eleição de Francisco acarreta evidente simbolismo. Primeiro papa extraeuropeu em muitos séculos, também o primeiro oriundo da América Latina (que concentra cerca de 40% do total de fiéis), com sua sagração a igreja revigora o epíteto de católica -ou seja, universal.

Não passou despercebida a seleção do nome, prerrogativa do escolhido. Francisco de Assis (1182-1226) é o mais exemplar dos santos católicos, devoto ardente da simplicidade e da natureza. Insinua-se não somente uma nova série de papas, mas um novo começo, talvez, para a igreja.

Parece ter sido fecundo o gesto inusitado da renúncia de Bento 16.

Marcado pelo enrijecimento dogmático, seu papado coincidiu com grave crise no âmago da instituição. Constatou-se que a pedofilia era prática disseminada em inúmeras paróquias. Verificou-se que diversos prelados ajudaram a acobertá-la.

Para arremate, um vazamento de documentos sigilosos do Vaticano sugere que a Cúria romana está infestada de desmandos, desde financeiros até sexuais, como numa paródia da corte medieval que ela certa vez foi.

Embora não haja dúvida quanto às razões de saúde alegadas por Bento 16, ficou implícita uma confissão de impotência, desde logo gerencial, e o desejo de apressar uma renovação.

Por ironia, um papa ultraconservador pode ter deflagrado uma das periódicas revisões internas que propiciaram à igreja sua existência milenar e a força de uma continuidade que católicos e não católicos respeitam.

Passou o tempo das dissensões ideológicas, depois que a teologia de esquerda foi extirpada pelo papa João Paulo 2º. Com alguma variação de grau, os cardeais são conservadores. As divergências parecem incidir mais em pormenores de ética sexual do que em questões socioeconômicas.

O desafio à frente de Francisco é claro. O novo papa terá, antes de mais nada, de esclarecer aspectos de seu comportamento durante a ditadura militar argentina (1976-1983), a respeito do qual pesam acusações de conivência.

Terá, ao mesmo tempo, de retomar o controle sobre uma Cúria indócil -e traçar clara diretriz que ponha termo ao acobertamento de abusos sexuais.

Para uma segunda fase ficaria o problema maior, expresso não apenas no avanço de outras religiões e do secularismo, mas na distância crescente entre dogmas obsoletos e o sentimento de uma porção, talvez já majoritária, de católicos. 
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* Editorial da Folha de São Paulo, 14/03/2013
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