Francisco Daudt*
Somos a espécie dos que não largam o poder, e isso torna mais belo o gesto de Joseph Ratzinger
"NÃO QUEIRA ir o sapateiro além das sandálias", ensina o velho ditado.
Neste momento histórico em que um homem admirável descalça as sandálias
de Pedro por constatar suas limitações para usá-las, há que se
considerar como a espécie humana se relaciona com suas fronteiras, sejam
elas físicas, psíquicas, políticas ou morais.
A atitude de Joseph Ratzinger é um ícone da complexidade humana: as
limitações podem ser usadas para o retiro, mas ao mesmo tempo como arma
política. "A paciência, assim como a República de Portugal, também tem
limites", nos lembra o Barão de Itararé. Ao que parece, o papa usa os
seus como um pai que diz "basta", na principal prerrogativa do poder: a
autoridade.
"Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?", discursava Cícero
em Roma, avisando que o limite dela estava próximo. Ah, como nos faz
falta um Cícero na política atual. Ele fazia oposição de verdade, e a
oposição, que nos é ausente, serve para pôr limites ao autoritarismo dos
pretendentes a tirano.
O reconhecimento de limitações, assim como o reconhecimento do erro, é
artigo raro e caro (querido, precioso, custoso) em nossa espécie.
"Citius, altius, fortius" (mais rápido, mais alto, mais forte) é o lema
olímpico que incita à superação de nossos limites, assim como o fazem as
paralimpíadas (que tiveram seu "o" amputado recentemente, num exagero
de coerência).
Somos a espécie do "húbris", do exagero, da desmedida, dos que, quando
no poder, não largam o osso, o que torna mais belo o gesto do hoje papa
emérito.
Assim, o respeito às limitações, ou às fronteiras, convive com o desejo
de ignorá-las. Vivo esse diálogo interno -eu, aos 25 anos, a conviver
com um RG que afirma insistentemente meu direito de pagar meia no
cinema.
Certo, tornei-me cauteloso com as calçadas e seus buracos, sem abrir mão
de, com um amigo de 88 anos (pelo RG), fazer turismo no Rio, uma
fronteira deliciosa que insistimos em defender. De carro, claro.
As limitações podem ser também um ativo a se explorar. Em pequena
escala, como "les misérables" exploram nossa "culpa" ao exibir suas
chagas no trânsito. Em larga escala, as "zelite" devem abrir mão do seu
direito à propriedade e à meritocracia para indenizar as limitações
supostamente por elas impostas aos "sem-terra", "sem-teto",
"sem-bolsa-ditadura", "sem alguma coisa" passível de exploração.
"Sintam culpa e paguem por ela", dizem as esquerdas no poder.
Descobriram o domínio pela culpa, não precisam mais de revoluções para
acabar com a democracia.
O politicamente correto é filho dessa descoberta: como controlar nossa
vida, dizendo que é para o bem do povo. Como secar a fonte de verba
publicitária da imprensa (que lhe dá liberdade de discordar do governo)?
Ora, é só sair proibindo anúncios de "coisas que fazem mal", critério
tão vago que pode abranger de tabaco a brinquedos infantis.
É verdade que, às vezes, erram a mão. Como quando resolveram calar a
blogueira Yoani Sánchez, e ela respondeu: "Quisera eu que em Cuba se
pudesse protestar assim".
Brilhante.
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* Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 05/03/2013
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