LEONARDO BOFF*
Hugo Chaves
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS é um grande amigo do Brasil, sociólogo
entre Coimbra e Austin (USA), um dos fundadores do Forum Social Mundial.
É um dos mais destacados pensadores do processo de globalização pensado
a partir do Grande Sul onde estão as principais vítimas desse processo
mais que tudo de expoliação capitalista econômico-financeira. Há muitas
controvérsias sobre o falecido Presidente da Venezuela Hugo Chaves,
carismático e popular. Era um dos poucos no mundo que dizia a verdade
sobre como funciona o Capitalismo e como não está em nada interessado em
tomar medidas contra o aquecimento global. Era um opositor declarado do
imperialismo norte-americano e ocidental, coisa que quase ninguém do
nosso lado assume. Prefere enquadar-se mesmo a contra-gosto. Estive
muitas vezes na Venezuela, antes de Chavez e pude ver favelas, como a de
Belen, uma das piores que encontrei no mundo. A oligarquia dominava e
era altamente corrupta e anti-social. Publicamos este artigo de
Boaventura de Sousa Santos que esteve muitas vezes na Venezuela e que
nos dá um quadro objetivo do que foi o carisma de Chavez e os desafios
que se apresentam para o futuro. LBoff
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Morreu o líder político democrático mais carismático das últimas
décadas. Quando acontece em democracia, o carisma cria uma relação
política entre governantes e governados particularmente mobilizadora,
porque junta à legitimidade democrática uma identidade de pertença e uma
partilha de objetivos que está muito para além da representação
política. As classes populares, habituadas a serem golpeadas por um
poder distante e opressor (as democracias de baixa intensidade alimentam
esse poder) vivem momentos em que a distância entre representantes e
representados quase se desvanece. Os opositores falarão de populismo e
de autoritarismo, mas raramente convencem os eleitores. É que, em
democracia, o carisma permite níveis de educação cívica democrática
dificilmente atingíveis noutras condições. A difícil química entre
carisma e democracia aprofunda ambos, sobretudo quando se traduz em
medidas de redistribuição social da riqueza. O problema do carisma é que
termina com o líder. Para continuar sem ele, a democracia precisa de
ser reforçada por dois ingredientes cuja química é igualmente difícil,
sobretudo num imediato período pós-carismático: a institucionalidade e a
participação popular.
Ao gritar nas ruas de Caracas “Todos somos Chávez!” o povo está
lucidamente consciente de que Chávez houve um só e que a revolução
bolivariana vai ter inimigos internos e externos suficientemente fortes
para pôr em causa a intensa vivência democrática que ele lhes
proporcionou durante catorze anos. O Presidente Lula do Brasil também
foi um líder carismático. Depois dele, a Presidenta Dilma aproveitou a
forte institucionalidade do Estado e da democracia brasileiras, mas tem
tido dificuldade em complementá-la com a participação popular. Na
Venezuela, a força das instituições é muito menor, ao passo que o
impulso da participação é muito maior. É neste contexto que devemos
analisar o legado de Chávez e os desafios no horizonte.
O legado de Chávez
Redistribuição da riqueza. Chávez, tal como outros líderes
latino-americanos, aproveitou o boom dos recursos naturais (sobretudo
petróleo) para realizar um programa sem precedentes de políticas
sociais, sobretudo nas áreas da educação, saúde, habitação e
infraestruturas que melhoraram substancialmente a vida da esmagadora
maioria da população. Alguns exemplos: educação obrigatória gratuita;
alfabetização de mais de um milhão e meio de pessoas, o que levou a
UNESCO a declarar a Venezuela como “território libre de analfabetismo”;
redução da pobreza extrema de 40% em 1996 para 7.3% hoje; redução da
mortalidade infantil de 25 por 1000 para 13 por mil no mesmo período;
restaurantes populares para os sectores de baixos recursos; aumento do
salário mínimo, hoje o salário mínimo regional mais alto, segundo la
OIT. A Venezuela saudita deu lugar à Venezuela bolivariana.
A integração regional. Chávez foi o artífice incansável da
integração do subcontinente latino-americano. Não se tratou de um
cálculo mesquinho de sobrevivência e de hegemonia. Chávez acreditava
como ninguém na ideia da Pátria Grande de Simón Bolívar. As diferenças
políticas substantivas entre os vários países eram vistas por ele como
discussões no seio de uma grande família. Logo que teve oportunidade,
procurou reatar os laços com o membro da família mais renitente e mais
pró-EUA, a Colômbia. Procurou que as trocas entre os países
latino-americanos fossem muito para além das trocas comerciais e que
estas se pautassem por uma lógica de solidariedade, complementaridade
económica e social e reciprocidade, e não por uma lógica capitalista. A
sua solidariedade com Cuba é bem conhecida, mas foi igualmente decisiva
com a Argentina, durante a crise da dívida soberana em 2001-2002, e com
os pequenos países das Caraíbas.
Foi um entusiasta de todas as formas de integração regional que ajudassem o continente a deixar de ser o backyard
dos EUA. Foi o impulsionador da ALBA (Alternativa Bolivariana para as
Américas), depois ALBA-TCP (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa
América- Tratado de Comércio dos Povos) como alternativa à ALCA (Área de
livre Comércio das Américas) promovida pelos EUA, mas também quis ser
membro do Mercosul. CELAC (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e
Caribenhos), UNASUL (União de Nações Sul-Americanas) são outras das
instituições de integração dos povos da América Latina e Caribe a que
Chávez deu o seu impulso.
Anti-imperialismo. Nos períodos mais decisivos da sua
governação (incluindo a sua resistência ao golpe de Estado de que foi
vítima em 2002) Chávez confrontou-se com o mais agressivo unilateralismo
dos EUA (George W. Bush) que teve o seu ponto mais destrutivo na
invasão do Iraque. Chávez tinha a convicção de que o que se passava no
Médio-Oriente viria um dia a passar-se na América Latina se esta não se
preparasse para essa eventualidade. Dai o seu interesse na integração
regional. Mas também estava convencido de que a única maneira de travar
os EUA seria alimentar o multilateralismo, fortalecendo o que restava da
Guerra Fria. Daí, a sua aproximação à Rússia, China e Irão. Sabia que
os EUA (com o apoio da União Europeia) continuariam a “libertar” todos
os países que pudessem contestar Israel ou ser uma ameaça para o acesso
ao petróleo. Daí, a “libertação” da Líbia, seguida da Síria e, em futuro
próximo, do Irão. Daí também o “desinteresse” dos EUA e EU em
“libertarem” o país governado pela mais retrógrada ditadura, a Arábia
Saudita.
O socialismo do século XXI. Chávez não conseguiu construir o
socialismo do século XXI a que chamou o socialismo bolivariano. Qual
seria o seu modelo de socialismo, sobretudo tendo em vista que sempre
mostrou uma reverência para com a experiência cubana que muitos
consideraram excessiva? Conforta-me saber que em várias ocasiões Chávez
tenha referido com aprovação a minha definição de socialismo:
“socialismo é a democracia sem fim”. É certo que eram discursos, e as
práticas seriam certamente bem mais difíceis e complexas. Quis que o
socialismo bolivariano fosse pacífico mas armado para não lhe acontecer o
mesmo que aconteceu a Salvador Allende. Travou o projeto neoliberal e
acabou com a ingerência do FMI na economia do país; nacionalizou
empresas, o que causou a ira dos investidores estrangeiros que se
vingaram com uma campanha impressionante de demonização de Chávez, tanto
na Europa (sobretudo em Espanha) como nos EUA. Desarticulou o
capitalismo que existia, mas não o substituiu. Daí, as crises de
abastecimento e de investimento, a inflação e a crescente dependência
dos rendimentos do petróleo. Polarizou a luta de classes e pôs em guarda
as velhas e as novas classes capitalistas, as quais durante muito tempo
tiveram quase o monopólio da comunicação social e sempre mantiveram o
controlo do capital financeiro. A polarização caiu na rua e muitos
consideraram que o grande aumento da criminalidade era produto dela
(dirão o mesmo do aumento da criminalidade em São Paulo ou
Joanesburgo?).
O Estado comunal. Chávez sabia que a máquina do Estado
construída pelas oligarquias que sempre dominaram o país tudo faria para
bloquear o novo processo revolucionário que, ao contrário dos
anteriores, nascia com a democracia e alimentava-se dela. Procurou, por
isso, criar estruturas paralelas caracterizadas pela participação
popular na gestão pública. Primeiro foram as misiones e gran misiones,
um extenso programa de políticas governamentais em diferentes sectores,
cada uma delas com um nome sugestivo (Por. ex., a Misíon Barrio Adentro
para oferecer serviços de saúde às classes populares), com participação
popular e a ajuda de Cuba. Depois, foi a institucionalização do poder
popular, um ordenamento do território paralelo ao existente (Estados e
municípios), tendo como célula básica a comuna, como princípio, a
propriedade social e como objetivo, a construção do socialismo. Ao
contrário de outras experiências latino-americanas que têm procurado
articular a democracia representativa com a democracia participativa (o
caso do orçamento participativo e dos conselhos populares setoriais), o
Estado comunal assume uma relação confrontacional entre as duas formas
de democracia. Esta será talvez a sua grande debilidade.
Os desafios para a Venezuela e o continente
A partir de agora começa a era pós-Chávez. Haverá instabilidade
política e económica? A revolução bolivariana seguirá em frente? Será
possível o chavismo sem Chávez? Resistirá ao possível fortalecimento da
oposição? Os desafios são enormes. Eis alguns deles.
A união cívico-militar. Chávez assentou o seu poder em
duas bases: a adesão democrática das classes populares e a união
política entre o poder civil e as forças armadas. Esta união foi sempre
problemática no continente e, quando existiu, foi quase sempre de
orientação conservadora e mesmo ditatorial. Chávez, ele próprio um
militar, conseguiu uma união de sentido progressista que deu
estabilidade ao regime. Mas para isso teve de dar poder económico aos
militares o que, para além de poder ser uma fonte de corrupção, poderá
amanhã virar-se contra a revolução bolivariana ou, o que dá no mesmo,
subverter o seu espírito transformador e democrático.
O extractivismo. A revolução bolivariana aprofundou a
dependência do petróleo e dos recursos naturais em geral, um fenómeno
que longe de ser específico da Venezuela, está hoje bem presente em
outros países governados por governos que consideramos progressistas,
sejam eles o Brasil, a Argentina, o Equador ou a Bolívia. A excessiva
dependência dos recursos está a bloquear a diversificação da economia,
está a destruir o meio ambiente e, sobretudo, está a constituir uma
agressão constante às populações indígenas e camponesas onde se
encontram os recursos, poluindo as suas águas, desrespeitando os seus
direitos ancestrais, violando o direito internacional que obriga à
consulta das populações, expulsando-as das suas terras, assassinando os
seus líderes comunitários. Ainda na semana passada assassinaram um
grande líder indígena da Sierra de Perijá (Venezuela), Sabino Romero,
uma luta com que sou solidário há muitos anos. Saberão os sucessores de
Chávez enfrentar este problema?
O regime político. Mesmo quando sufragado democraticamente, um
regime político à medida de um líder carismático tende a ser
problemático para os seus sucessores. Os desafios são enormes no caso da
Venezuela. Por um lado, a debilidade geral das instituições, por outro,
a criação de uma institucionalidade paralela, o Estado comunal,
dominada pelo partido criado por Chávez, o PSUV (Partido Socialista
Unificado da Venezuela). Se a vertigem do partido único se instaurar,
será o fim da revolução bolivariana. O PSUV é um agregado de várias
tendências e a convivência entre elas tem sido difícil. Desaparecida a
figura agregadora de Chávez, é preciso encontrar modos de expressar a
diversidade interna. Só um exercício de profunda democracia interna
permitirá ao PSUV ser uma das expressões nacionais do aprofundamento
democrático que bloqueará o assalto das forças políticas interessadas em
destruir, ponto por ponto, tudo o que foi conquistado pelas classes
populares nestes anos. Se a corrupção não for controlada e se as
diferenças forem reprimidas por declarações de que todos são chavistas e
de que cada um é mais chavista do que o outro, estará aberto o caminho
para os inimigos da revolução. Uma coisa é certa: se há que seguir o
exemplo de Chávez, então é crucial que não se reprima a crítica. É
necessário abandonar de vez o autoritarismo que tem caracterizado largos
sectores da esquerda latino-americana.
O grande desafio das forças progressistas no continente é saber
distinguir entre o estilo polemizante de Chávez, certamente controverso,
e o sentido político substantivo da sua governação, inequivocamente a
favor das classes populares e de uma integração solidária do
subcontinente. As forças conservadoras tudo farão para os confundir.
Chávez contribuiu decisivamente para consolidar a democracia no
imaginário social. Consolidou-a onde ela é mais difícil de ser traída,
no coração das classes populares. E onde também a traição é mais
perigosa. Alguém imagina as classes populares de tantos outros países do
mundo verter pela morte de um líder político democrático as lágrimas
amargas com que os venezuelanos inundam as televisões do mundo? Este é
um património precioso tanto para os venezuelanos como para os
latino-americanos. Seria um crime desperdiçá-lo.
Coimbra, 6 de Março de 2013
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FONTE: http://leonardoboff.wordpress.com/2013/03/07/chaves-o-legado-e-desafios-boaventura-de-sousa-santos/
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Parabéns pela postagem...Ilustre amigo..
ResponderExcluirAjudou-me a entender de uma vez por todas esse grande homem... criticado e amado por muitos...
Que seu caminho seja de Paz...no Infinito celestial..
Abçs fraternos ...