Paulo Ghiraldelli Jr
Qual a utilidade da
filosofia? Em princípio, essa pergunta é tola. Afinal, Platão, o
inventor da filosofia como gênero literário, idealizou-a como uma
narrativa especial e específica, distinta da narrativa do sofista,
tipicamente utilitária. A filosofia seria uma narrativa diferente da narrativa do útil.
Enquanto personagem de Platão, Sócrates
insistia em dizer que procurava a verdade e que o que dizia era
verdadeiro, não simplesmente o útil. O filme de Roberto Rosselini,
“Sócrates”, insiste nesse ponto, dando uma interpretação interessante da
obra de Platão. O sofista, por sua vez, tanto na visão platônica quanto
na visão que tinha de si mesmo, não procurava a verdade. Isso, no
entanto, não porque gostasse do falso e da mentira, mas simplesmente
porque entendia que ao falar, já estava sempre na verdade, uma vez que
tudo que qualquer um pudesse pensar e dizer, uma vez pensado e dito,
seria verdadeiro.
Essa tese do sofista não era nenhuma
bobagem. Estava baseada em um filósofo importante, que Platão respeitava
muito: Parmênides. Esse filósofo havia dito que podemos falar do “que
é”, mas não temos como falar do que “não é”. O que não é, o falso, não
pode ser dito, pois uma vez dito, estaria produzindo “o que não é” como
“o que é”. Ora, mas o que não é, não é! Falamos do ser, do não-ser, não
falamos. Em outras palavras: o discurso do que chamamos de falso não
seria possível. Platão resolveu esse problema de modo técnico, garantido
que aquilo que fazemos é perfeitamente correto e possível: pronunciamos
discursos falsos tanto quanto pronunciamos discursos verdadeiros.
Fazemos assim, ao menos em várias situações, por meio de usar o diferente,
e não exatamente o “não-ser”. Nesse sentido, a busca do filósofo pela
verdade, o que implica em distingui-la do falso, foi mostrada por Platão
como uma prática com sentido e perfeitamente legítima.
Desse modo, Platão tornou possível o
discurso da filosofia e da ciência, e criou um espaço social para tal
discurso: a academia ou a universidade. O discurso da academia, isto é, o
discurso acadêmico, teria por objetivo a verdade. E o discurso do
sofista, cujo objetivo era o útil, desapareceria?
Bem, de certo modo, Platão quis fazê-lo
senão desaparecer, cair para o segundo plano. Platão desejou fazer com o
sofista aquilo que o sofista vinha fazendo com o filósofo. Platão quis
que o discurso acadêmico se pusesse na academia, claro, mas também na
política. Então, no projeto platônico, cabia a ideia de que os jovens da
elite não iriam mais ficar à mercê da educação sofística, própria para a
política, para a Ágora. Eles seriam educados filósofos e
comandariam a cidade. Comandariam a cidade sob a luz da verdade e,
portanto, fariam a cidade justa permanecer justa. O discurso
propriamente político, o discurso da democracia ateniense, que pelo útil
trabalhava consensos a cada passo na administração da cidade, não teria
dado bom resultado, segundo Platão. Afinal, a política só havia criado
balbúrdias e injustiças, ou seja, guerra de grupos e a própria
condenação de um homem justo e inocente: Sócrates.
Assim, podemos dizer que o mundo antigo
foi palco do confronto entre três grandes narrativas. Sim, porque as
narrativas do sofista e do filósofo, que disputavam terreno entre si,
também se opunham à narrativa mais velha, a do poeta ou rapsodo, a
narrativa da religião, ou seja, da mitologia. Essas três grandes
narrativas compunham a Paideia grega, a ar espiritual que cada grego
poderia usufruir na sua formação cultural.
Nós modernos, somos herdeiros dessa
cultura tripartida. Todavia, somos modernos não pelo tempo, mas
justamente porque começamos a acreditar que a disputa entre essas
narrativas não precisaria ser levada adiante de modo sanguinário e com
propósito de eliminação do rival. Poderíamos e deveríamos encontrar
espaços próprios para cada uma delas. De certo modo isso ficou refletido
na filosofia de Kant e foi visto por Max Weber com uma característica
própria dos “tempos modernos”.
Nas sociedades modernas, onde funciona a
democracia liberal, tentamos conviver com as três grandes espécies de
narrativas: a filosófica ou científica, a política e a mitológica ou
religiosa. Nessa sociedade, temos três instituições para acolher essas
três narrativas, respectivamente: a universidade, o parlamento e a
Igreja ou igrejas. Com a primeira, fazemos investigação sobre a verdade,
o que fixamos por meio de conceitos e definições. Com a segunda,
conversamos sobre o útil, de modo a criarmos possibilidades de persuasão
mútua, da qual emergem consensos e acordos. Com a terceira, professamos
nossa fé e louvamos nossos antepassados e nossa história por meio de
nossa vinculação aos deuses, além de, não raro, os vermos como fonte de
educação ética e moral, dando-nos identidade cultural e esperança.
Nosso projeto pedagógico no Ocidente
moderno, herdeiro do humanismo e do Iluminismo, foi temperado e
retemperado. Ele considera que a juventude deve aprender as três
espécies de narrativas e, para tal, mantém uma instância própria onde
isso deve ocorrer: a escola. O jovem que quer adentrar na sociedade
moderna ocidental, uma vez na escola básica e, depois, na secundária ou
pré-universitária, deve aprender a usar das três narrativas e saber como
e quando cada uma tem seu valor. Deve, inclusive, saber que às vezes há
cruzamentos, como no caso do pragmatismo (de Peirce, James e Dewey),
que faz a prática de busca da verdade olhar para a prática da busca do
consenso, ou seja, a prática característica da política. Deve entender
que há quem possa usar da fé religiosa para a investigação da verdade,
como fez Santo Agostinho, para quem a fé era o facho de luz atrás da
cabeça, que não lhe dava visão dogmática, mas ampliava o campo iluminado
garantindo-lhe, adiante, um mundo com sentido e, portanto, apreensível
pelo intelecto.
Quando alguns adultos acham que as
crianças devem aprender essas três narrativas de maneira incompleta, o
que fazem é mudar o quadro das disciplinas tradicionais de nossa escola.
E o que pior podem fazer quando assim agem, é retirar dos alunos um
modo de aprender a distinguir narrativas e gêneros literários. Para
fazer o pior, eles tiram da escola a filosofia. Criam então pessoas que
não sabem o valor das narrativas e seus lugares. Criam pessoas propensas
a acreditar que podemos suprimir narrativas. Geram os que, ao levarem
adiante o cultivo da eliminação, abrem portas e janelas ao demônio. E
este é habilidoso em dizer o seguinte: para eliminar narrativas, o
melhor modo é eliminar o narrador. Assim, disputas entre discursos
ganham um sobrediscurso que se põe como legítimo: o da violência. Logo,
é a própria violência que se instaura, suprimindo todo e qualquer
discurso.
A utilidade da filosofia é esta: a de
cultivar as propriedades das narrativas, de modo que a violência não
seja a única prática que possa parecer legítima. Nós filósofos
acreditamos nisso, que podemos driblar o demônio. Somos ingênuos? Ah,
sim, sem dúvida. Apesar de Platão, nosso patrono, ter desejado eliminar o
sofista ou o político, nós, filósofos liberais e democráticos,
modernos, nunca quisemos isso. Apostamos na filosofia não como o que
pode falar mais ou de maneira melhor que outras narrativas, mas como a
que tem tempo para falar sobre todas de maneira a arbitrar o conflito
entre elas, sem deixar que elas se destruam ou sejam destruídas por
força externa. Por isso mesmo Richard Rorty, o filósofo americano
falecido em 2007, deixou como título-proposta de sua última obra, “a
filosofia como política cultural”.
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© 2013 Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo,
escritor, cartunista e professor da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
(*) Artigo feito a pedidos do prof.
Balestra, da Espanha, a propósito da tentativa de retirada de horas de
filosofia do ensino básico espanhol por parte do governo.
Imagem da Internet
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2013/03/tres-narrativas-essenciais-na-modernidade/
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