Leandro Karnal*
A renúncia de um papa hipnotizou a mídia ocidental. Mas as notícias
anteriores indicavam uma igreja em declínio. O que aconteceu?
No apogeu do papado medieval, Inocêncio 3º (século 13) tinha poder de
excomungar e depor reis, interditar o paraíso a um país inteiro,
convocar cruzadas contra heréticos e islâmicos e liderar concílios que
movimentavam toda a geopolítica europeia. Na verdade, Inocêncio fez
quase tudo isso. Dono de um poder internacional enorme, o bispo de Roma
representava o topo simbólico de uma longa cadeia de mandos.
A julgar pela imprensa, nada mudou depois de 800 anos. A renúncia de um
papa e a eleição de outro hipnotizou quase toda mídia ocidental. Mas...
as notícias anteriores indicavam uma igreja numericamente em declínio.
Havia escândalos sexuais e financeiros por todo lado. Mesmo assim, o
conclave de 2013 recebeu atenção ainda maior do que em 2005 ou 1978. O
que aconteceu?
No mundo líquido atual, uma instituição com quase 2.000 anos chama
atenção. Pompa, hierarquia e pretensão metafísica combinadas são quase
insuperáveis. A capilarização da igreja ainda é notável, das paróquias
aos orfanatos, especialmente no Brasil. Para o bem e para o mal, a terra
de Santa Cruz foi concebida católica. Sua maior cidade, São Paulo, foi
batizada pela ordem do atual papa Francisco, os jesuítas.
O conclave de 2013 surpreendeu com um papa argentino e da Companhia de
Jesus. Há lições do episódio. Os jornais torciam abertamente por um
brasileiro, como o fez a imprensa das Filipinas. Isso mostra o ranço
nacionalista.
Mas, esqueceram-se de sondar os eleitores, cuja lógica só pode ser
decifrada pelos afrescos de Michelangelo na Capela Sistina. Os
"papabili" da imprensa não coincidiram com os dos votos purpurados.
Nacionalismo é fato do 19; ontem para a Igreja Católica. A lição deveria
ser entendida: esse grupo vê, mas não joga para a torcida, mesmo sendo
ainda a maior torcida do planeta.
Segunda lição: a Igreja Católica não está numa crise; ela vive numa
crise desde sua origem. Denúncias de pedofilia seriam piores do que o
papa Júlio 3º viver em meio a garotos de programa? Escândalos
financeiros atuais seriam maiores do que a ousadia de Leão 10º para
vender indulgências? O conservadorismo atual seria mais denso do que o
do beato Pio 9º, que considerou até a democracia condenável?
Aparentemente, o repertório histórico do papado faz com que seja
impossível criar nova virtude ou vício que já não tenha um predecessor
mais notável. A igreja vive e sobrevive entre crises. O balanço do
barquinho na tempestade do mar da Galileia virou ciclone constante. E
"la nave va"... Talvez o niilismo contemporâneo talvez seja atraído por
fundamentalismos, ou até os estimule.
Última lição do conclave: a Igreja Católica e o papado despertam emoções
polares. Os que já a amavam destacam que o papa pegava transporte
público e cozinhava sua comida. Seria humildade, como se canalhas não
pudessem estar num metrô ou serem cozinheiros.
Os detratores trouxeram à tona conhecidas denúncias sobre as relações de
Bergoglio com a ditadura argentina. Seus inimigos e fãs apenas
continuam alimentando o fogo das vaidades e, querendo ou não, mantêm a
igreja no lugar que ela mais deseja: no centro da mídia.
Profetas canhestros determinaram que o último pontífice seria o "papa
negro". O superior geral dos jesuítas tinha esse título não oficial. O
hábito da ordem de Inácio era dessa cor. Um papa jesuíta, e ainda sendo o
último da lista de são Malaquias, só pode indicar o fim dos tempos. Os
maias estão desacreditados nesse campo.
Cumpre-se uma ironia que não escapará ao humor tupiniquim: a Igreja
Católica sobreviveu a tudo, menos a um argentino. Iremos ao apocalipse
com esse sorriso nos lábios.
Mas, se o mundo não acabar (como teima em fazê-lo), iremos a novo
conclave. Haverá apostas certeiras sobre as chances enormes de um
cardeal brasileiro, de um africano e do conhecido arcebispo de Milão...
Deve ser melancólico ser eterno.
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