ANNA VERONICA MAUTNER *
Se não aceitarmos que já não somos o que éramos, nosso contato com o mundo aqui e agora fica prejudicado
A criança passa por dramáticas transformações (andar, falar, conhecer o
mundo etc.), mas não tem consciência delas porque lhe falta linguagem
para descrevê-las.
Depois da adolescência as mudanças continuam, mas com dramaticidade menor.
Tão marcante em transformações quanto a infância é o envelhecimento.
Nessa fase da vida temos consciência de tudo o que ocorre: perdas
físicas e mentais.
Comecemos falando da reação aos imprevistos. Por que velho tropeça e cai
tanto? Porque a reação ao susto e o reflexo para evitar o perigo são
mais lentos.
Falemos agora da memória, essa capacidade madrasta cuja falta castiga o
idoso. Demoramos para lembrar seja lá o que for e a conversa fica
entrecortada de silêncios, quase soluços.
O conteúdo que em primeiro lugar mergulha nas sombras do esquecimento
são os nomes próprios; mais uns anos e substantivos comuns também se
embaralham.
O curioso é que os adjetivos não somem. Aparecendo o nome, sua qualidade
ou quantidade vem junto, dos fundos da memória. O nome está em algum
lugar, algum tempo, de algum jeito. Se o substantivo emerge, traz
consigo as associações.
Os verbos não somem, mas as ações deixam de ser desempenhadas. Se o verbo desaparecer, a incomunicabilidade irá se instaurar.
Envelhecer é perder: seja clareza, seja acuidade auditiva ou visual, velocidade de resposta física ou de linguagem, memória.
Aí vem aquela história: velho esquece o agora e lembra o mais antigo.
Não há nenhum mistério nisso. É que o antigo já se transformou em imagem
e a imagem reaviva as sensações. Quase nada é inconsciente, pois
envelhecer é viver as mudanças diárias.
Sentimos a presença das mudanças. Se causam amargura, é pela não
aceitação. E, se não aceitarmos que já não somos o que éramos, o nosso
contato com o mundo aqui e agora fica prejudicado.
Assim como é natural o ser humano se transformar ininterruptamente, em
boa velocidade, do nascimento à puberdade, é natural envelhecer, com
lentas perdas no início e mais rápidas depois.
Aceitando que viver é assim, permanente transformação, podemos sorrir
diante de perdas e transmitir (até com humor) a quem nos rodeia que
estamos presentes, acompanhando o processo.
Nada de dizer que a terceira idade é maravilhosa. Nada disso. Perder não
é bom. Mas alguns conseguem ir perdendo sem muita amargura, porque
acompanham as transformações dos que ainda estão ganhando.
É a alegria do avô diante do neto. Há na atitude de acompanhar o que já
tivemos no passado doses de aceitação e generosidade. Podemos ajudar.
Nossa sabedoria funciona como conforto para quem está só começando.
O olhar bondoso do idoso diante do tatibitate do nenê é sabedoria. O
velho vislumbra o caminho que o bebê irá seguir. Não é um reviver nem um
renascer: é uma memória.
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* ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed.
Ágora) e "Educação ou o quê?" (ed. Summus)
Fonte: Folha on line, 05/03/2013
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