Silviano Santiago*
Se iluminarmos quem pergunta, a reunião das entrevistas
concedidas a Clarice Lispector por notáveis figuras da cultura
brasileira apresentam um traço pessoal e instigante da personalidade da
romancista. Clarice quer saber dos artistas populares quais são as
benesses e as sequelas causadas pela "fama". Ao ler os diálogos
travados, descobre-se que o traço vira hipótese de trabalho, que ela
testa em cobaias humanas, no laboratório da Vida.
Para escrever o novo romance, Jorge Amado deixa Salvador e se refugia
no sítio do tapeceiro Genaro de Carvalho. A chácara alheia fica entre a
vida social intensa na capital, motivada pela popularidade, e o
esconderijo propício à escrita artística. Diz ele a Clarice: "Vem muita
gente à minha casa, o que é, ao mesmo tempo, simpático e maçante às
vezes. Em certas ocasiões, é demais". A solidão do casal se faz
indispensável à criação literária. Não se publica qualquer coisa em
livro. Em seguida, o escritor político explicita a razão para a
popularidade: seus livros "estão ao lado do povo e transmitem esperança e
não desesperança".
Já Clarice, solitária, vive no clima ideal para a escrita literária
que traz louvores. Deduz-se: sorte (ou mágoa) de Clarice que (ainda) não
tem a fama de Amado.
Erico Verissimo é outro acalentado pelo sucesso em literatura escrita
por funcionários públicos, para lembrar crônica de Carlos Drummond. À
semelhança do baiano, o gaúcho vive da vendagem dos livros. Já na
primeira pergunta Clarice explicita o que camuflou ao conversar com
Amado. Autorretrata-se e testa a hipótese: "Sua fama é enorme, Erico. Se
eu fosse famosa assim, teria minha vida particular invadida, e não
poderia mais escrever. Como é que você se dá com a fama?".
Erico assinala primeiro o lado positivo do sucesso: "A gente se
comunica com os outros, passa a existir para milhares de leitores".
Esclarece: "Não decepciono os que me querem conhecer em carne e osso.
Minha casa vive de portas abertas. Há noites em que temos de 10 a 20
visitantes inesperados". Não só cultiva os estranhos como também -
acrescenta - a virtude da paciência. À diferença do baiano, o gaúcho não
precisa de sítio alheio para ter a solidão indispensável à qualidade da
criação.
Por outro lado, Erico sabe que o sucesso de venda não é bem recebido
pelos críticos, e se autoprotege. Confessa a Clarice: sou um "contador
de histórias". Explica-se: "Não me considero um escritor importante. Não
sou um inovador. Nem mesmo um homem inteligente". Além do mais, ele
mastiga o osso duro de roer da vida literária, povoada por grupos que se
afirmam pela intolerância ideológica. Erico é um outsider. E, pelo que
reproduzo adiante, corajoso.
Faço a glosa. Diz a Clarice que os esquerdistas o acham "acomodado".
Os direitistas, "comunista". Os moralistas e reacionários o acusam de
"imoral e subversivo". Há ainda a "história cretina de norte contra
sul". Pede a Clarice que some os fatores que alteram a fama e acrescente
ao produto a "natural má vontade que cerca todo o escritor que vende
livro, a ideia de que best-seller tem de ser necessariamente um livro
inferior". Indireta para Clarice?
Vinicius de Moraes é figura de transição entre a velha e a nova
geração. Traz a MPB e a televisão para a vida literária. Hoje
centenário, o poetinha não recebe os leitores em casa. Visita-os. Invade
a casa alheia. Vaidoso, repete para Clarice as palavras da moça que é
sua fã: "Você, Vinicius, vive nas estantes de nossos livros, nas canções
que todo mundo canta, na televisão. Você vive conosco, em nossa casa".
Clarice não perde a deixa. Faz pergunta desconcertante ao que se diz
amado: "Será que agora que apareceu o Chico (Buarque), as mocinhas
trocaram de ídolo?". Os acontecimentos de maio de 1968 e a passeata dos
cem mil contra a ditadura levam o poeta afetuoso a enfiar a carapuça:
"Acho que é diferente. A juventude procura em mim o pai amigo, que viveu
e tem uma experiência a transmitir. Chico, não, é ídolo mesmo...".
"Aniquilado pela fama", segundo Clarice, Chico Buarque traz às
entrevistas paradigma diferente ao do sítio de Genaro: o bom convívio
com o barulho. Retomo o título de belo e recente filme pernambucano e
refaço a pergunta de Clarice: Como criar com "o som ao redor"? Chico se
lembra de conversa de Tom Jobim com Villa-Lobos em dia de grande
balbúrdia em casa. Chico narra: "Tom perguntou: como é, maestro, o
barulho não atrapalha? Villa respondeu: o ouvido de fora não tem nada a
ver com o ouvido de dentro". A atitude de mestre Villa é modelo para o
jovem Chico. Não se resguarda ao sair à rua: ao caminhar, se deixa
cercar para os autógrafos.
Clarice não se faz de rogada. Vira entrevistada: "Eu não tenho,
Chico, nem de longe, o sucesso que você tem, mas mesmo o pequeno que
tenho às vezes me perturba o ouvido interno".
O paradigma se enriquece. "É verdade, Chico, que você é crédulo ou
está de olhos abertos para os charlatões?" A tangente é de praxe na
resposta do compositor: "Não é que eu seja crédulo, sou é muito
preguiçoso". Há que entender a preguiça: "Tenho cara de bobo, porque
minhas reações são muito lentas, mas sou um vivo". De maneira advertida,
a preguiça é também tijolo na construção da fama na MPB. Confessa:
"Tenho, por exemplo, uma pessoa que me explica o contrato e não consigo
prestar atenção a certas coisas". E se justifica: "O sucesso faz parte
dessas coisas exteriores que não contribuem nada para mim". Chico escapa
da vaidade e da alegria pela tangente da dor: "A gente tem a vaidade da
gente, a gente se alegra, mas isso não é importante. Importante é
aquele sofrimento com que a gente procura buscar e achar".
O piano - face oculta de Tom Jobim - o levou, contra sua vontade, aos
holofotes do Carnegie Hall. "Sempre fugi do sucesso, Clarice, como o
diabo foge da cruz. Sempre quis ser aquele que não vai ao palco." Alma
irmã.
---------------
* Poeta. Ensaista. Escritor. Colunista do Estadão.
Fonte: Estadão on line, 02/03/2013
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário