sábado, 2 de março de 2013

O show precisa parar...

Corinthians joga com portões fechados no Pacaembu - Jonne Roriz/Estadão
Jonne Roriz/Estadão
Corinthians joga com portões fechados no Pacaembu
 

Para antropólogo, a tragédia de Oruro obriga clubes, torcedores e o governo a repensar o comportamento brasileiro dentro e fora dos estádios: ‘Estamos carentes da discussão de limite’

Antes mesmo que o ex-presidente e corintiano emérito Luiz Inácio Lula da Silva opinasse sobre a punição da Conmebol ao Corinthians, a morte de Kevin Douglas Beltrán Espada já era assunto de interesse nacional. O menino boliviano de 14 anos, torcedor do San José, que teve o olho direito trespassado por um sinalizador lançado por um membro da Gaviões da Fiel, provocou uma comoção que extrapolou os limites do campo. E trouxe à tona a discussão sobre a violência dentro e fora dos estádios de futebol.
 
O antropólogo Roberto DaMatta, torcedor do Fluminense e observador de toque refinado da cultura brasileira, considera mais do que legítima a responsabilização da torcida. "Não foi um grupo de turistas passeando na Bolívia que se envolveu no crime. Foi uma coletividade organizada, a Gaviões da Fiel, que viaja atrás do time, com ônibus e hotel definidos", pontua.
Colunista do Estado e autor de Carnavais, Malandros e Heróis (Rocco), obra clássica das ciências sociais no entendimento do caráter nacional, DaMatta identifica no episódio em questão não apenas a marca violenta do passado brasileiro, mas também o presente decisivo que encaramos na modernização incompleta do País. "Há um sentimento perigoso no ar, de que agora que temos liberdade, vivemos numa democracia, eu posso fazer tudo que quero."
No bate-bola a seguir, Roberto DaMatta discorre sobre a centralidade do futebol em nossa cultura - tese defendida com categoria no livro A Bola Corre Mais que os Homens (Rocco) -, explica por que o esporte proporciona à sociedade brasileira "uma experiência de igualdade e de justiça social" e chama a atenção para a importância da tragédia de Oruro no debate político nacional e na sinalização que o País vai dar ao mundo às vésperas da Copa de 2014. 

A morte do menino em Oruro mergulhou o País em um debate sobre se o time, a coletividade, deveria pagar por um crime cometido por um indivíduo. Qual é sua opinião?
Primeiro, é preciso definir bem. Não foi uma coletividade qualquer, um grupo de turistas que estava na Bolívia passeando, que se envolveu no crime. Foi uma coletividade organizada, a Gaviões da Fiel, que viaja atrás do time, com ônibus e hotel definidos. Então, a responsabilização da torcida é mais que legítima. A chave do que estamos discutindo aqui é o limite: o que significa torcer. Eu posso fazer o que quiser na rua ou não? Se sou apaixonado, morro pelo Corinthians, tenho o direito de pegar um rojão e não manipulá-lo direito ou deliberadamente usá-lo para agredir o torcedor do outro time? São eventos que nos obrigam a um diálogo com determinados parâmetros sociais do passado. 

Parâmetros que se perderam?
Na minha juventude, quando eu ia ao Maracanã ou ao estádio da Rua Álvaro Chaves para torcer pelo Fluminense, ninguém levava rojões. O amor pelo time, essa paixão desabrida que tem levado a arrebentar alambrados, machucar e até matar é o que a gente tem que discutir. Qual é o limite do torcedor? É evidente que isso é a expressão e o sintoma de algo que acontece mais amplamente na sociedade brasileira. Nós estamos carentes da discussão de limite. Algo que já aparecia, por exemplo, no primeiro governo Lula, quando um grupo de manifestantes entrou no Senado Federal e arrebentou tudo. Há um sentimento perigoso no ar, que é o seguinte: "Agora que nós temos liberdade, vivemos numa democracia, eu posso fazer tudo o que quero".

A sociedade brasileira é violenta?
Toda sociedade tem um lado violento. A questão é discutir suas manifestações. No Brasil me parece clara a violência do Estado contra a sociedade que ele controla com mão de ferro por meio de alvarás, leis, licenças e aprovações. Na sociedade, a violência surge do rico contra o pobre e do poderoso contra o fraco. Na casa, do marido contra a esposa e os filhos. Na rua, da autoridade contra o acusado ou apontado como autor de um delito. No esporte, quando um time ganha por muito ou perde de modo injusto. Há formas e tipos de violência mais tolerados em certas sociedades do que em outras. Em nosso país, o escravo de um juiz era mais bem tratado do que o de um comerciante. Bater em criança ainda é válido. Dizem que a mulher gosta de apanhar, etc. E hoje sofremos a violência de um governo de viés despótico e personalista contra um sistema que demanda mais tecnologia, mais modernidade e meritocracia. 

Fala-se em ‘nova classe média’ e em inclusão social pelo consumo no Brasil. Como tais fenômenos se relacionam com a incivilidade que se vê dentro e fora dos estádios?
A inclusão pelo consumo implica o controle da incivilidade e o saber usar o que se compra. O caso dos futebolistas com relógios de ouro e brinquinhos de brilhante é um bom exemplo. Se um cidadão compra um carro, ele tem que saber os perigos e as responsabilidades implicadas no ato de dirigir. Um governo eleito pelo voto também não pode planificar uma compra de votos para controlar o Congresso Nacional. Ser consumidor é um papel social que demanda limites e éticas. Como o papel de torcedor. Não é por acaso que quando reunimos num estádio um punhado de gente que dirige como alucinados tenhamos a barbárie. 

O Corinthians contesta a punição da Conmebol por considerá-la ‘injusta na medida em que prejudica diretamente o direito de inocentes’. É um argumento válido?
O clube pode alegar o que quiser nos limites do direito esportivo. Há quem considere, talvez com razão, a punição dura demais. Mas e o menino que morreu? E se amanhã, numa nova briga de torcedores, morrerem mais três ou quatro? Como faz? Que o caso seja levado a uma corte desportiva que discuta o tamanho da punição. A gente sabe que o futebol é um esporte de massa, que mobiliza paixões e funciona como uma espécie de metáfora da guerra. A única vez que eu tive a motivação de brigar fisicamente com alguém na vida foi aos 17 anos, em Niterói, por causa de um Fla-Flu. Tudo isso a gente entende. Mas, se o Corinthians faz parte de uma confederação e de uma comunidade esportiva internacional, não pode ignorar o fato de que o que aconteceu em Oruro foi uma tragédia. 

O sr. já escreveu que o futebol é um símbolo nacional quase tão forte quanto a Bandeira ou o Hino. Até que ponto o comportamento das torcidas no Brasil espelha o estágio em que se encontra nossa sociedade?
O agenciamento psicológico, emocional e social que o futebol proporciona é muito forte. Sobretudo, dentro de certas camadas sociais que têm reclamações, frustrações, que vivem o drama da desigualdade - e, ao mesmo tempo da igualdade, que o futebol proporciona a eles. É algo que identifico muito claramente nos trabalhos que fiz sobre o futebol: ele proporciona essa experiência de justiça, de igualdade e de revanche. E também, como fica bem claro nesse episódio, uma experiência de agressividade que não passa por agressividade. Feita sob o manto do coletivo. 

Essa expectativa de impunidade continua sendo uma marca da cultura brasileira?
Não tenho dúvida. É algo que estamos pagando para ver. O Brasil está em suspenso aguardando o desfecho da condenação de um ex-chefe da Casa Civil e outros envolvidos em um escândalo de corrupção. Toda semana surge um caso qualquer em que as regras são ultrapassadas - casos que aparecem, por outro lado, porque vivemos na era da internet e contamos com meios de comunicação diversificados. Então, há um elemento educacional que não pode ser desconsiderado. Um clube tem de dizer a sua torcida quais são os limites do espetáculo. 

O Corinthians recebe R$ 170 milhões ao ano por direitos de transmissão na TV - o maior contrato, junto com o do Flamengo. De que maneira os interesses financeiros inviabilizam uma responsabilização mais ampla?
É uma pergunta difícil de responder. Quanto mais se mobilizam recursos financeiros, mais problemático fica tomar decisões que durante certo período inviabilizem esses ganhos. Por outro lado, a proibição da participação das torcidas é uma espécie de censura. Uma situação delicada, nova. E eu, se fosse dirigente do Corinthians ou de qualquer outro clube capaz de ter essa capacidade maravilhosa de aglutinar pessoas, estaria pensando em como educar essa torcida. Da maneira mais rigorosa possível. 

E como começaria esse trabalho pedagógico com os torcedores?
A imagem de um time de futebol deve ser a de um grupo vigoroso, viril, que responde aos desafios, mas não a da violência, da morte, da estupidez. É preciso difundir a ideia de que só existe disputa esportiva a partir de regras. De que os grandes jogadores de futebol foram aqueles que até catimbaram, mas não romperam as regras de maneira visível, clara. De que a jogada limpa, de talento, é a que interessa - não adianta ser campeão com um gol de mão. Essas regras que estão funcionando no campo também têm que funcionar para as torcidas. Trazer para o debate público não só qual é o bom jogador que o torcedor quer ver no campo, mas também o bom torcedor que o jogador quer ver nas arquibancadas. 

É difícil dar o exemplo quando temos um Estatuto do Torcedor que não é cumprido rigorosamente em parte alguma do País...
A oportunidade que estamos tendo com este debate é enorme. Para que a gente passe a levar a sério as regras. Esse evento mostra que os torcedores precisam internalizar a noção de limite, de que determinados tipos de comportamento obviamente não são compatíveis com a norma civilizada. Que agredir a torcida adversária com paus e pedras ou agredir no bar o atleta que não jogou bem é inadmissível. Torcer para um time de futebol é entrar num papel social, como no teatro. E que esse papel tem limites, não se pode matar uma pessoa de verdade no palco. A chance é essa. 

Um ensaio de sua autoria sustenta que ‘o futebol institui abertamente a malandragem como arte de sobrevivência e o jogo de cintura como estilo nacional’. Ainda há lugar no mundo para esse tipo de jogo?
O Brasil é um centro mundial de produção e reprodução do futebol. Se você tirar o País do mapa, o futebol perde boa parte de sua graça. Nós estabelecemos um padrão de jogo que mudou a face desse esporte, com técnicas de corpo que são metáforas do jogo de cintura e da malandragem nacionais - aquilo que Gilberto Freyre chamava de "futebol dionisíaco", que hoje está presente na forma como se joga em todo o mundo. Foi aprendido lá fora, assim como nós também aprendemos a jogar de maneira mais física. Daí, inclusive, as dificuldades que enfrentamos atualmente dentro de campo. Mas o estilo é a maneira de ser, a identidade, uma espécie de estigma do qual você não se livra. É por isso que o futebol para nós não é apenas um esporte; tem uma importância cultural enorme. Porque quando um menino lá do sul da Itália ouve falar num cara chamado Neymar, vai querer saber de onde ele vem. Então vai descobrir na internet que ele nasceu em Santos e, de repente, aprender que no Brasil se fala português, que somos um país que teve imperadores ou que saímos da escravidão sem uma guerra civil como nos EUA. 

O sr. diz que o futebol no Brasil proporciona à sociedade uma experiência de igualdade e justiça social. O desfecho do episódio em Oruro pode ser um divisor de águas na construção dessa experiência ou na sinalização que o País dará ao mundo às vésperas da Copa?
O evento em Oruro é grave porque quando um clube vai jogar fora do Brasil ele representa o País, quer queira, quer não. E a torcida tem que entender que ela representa também o clube, o time que ama e traz para ela essa experiência do pertencimento a um grupo e da liberdade de torcer. Esse é o ponto que temos de trabalhar. Não é um jogo de repressão, nem de punição, mas de disciplina. Aquela disciplina que está no campo tem que passar também para o estádio. O melhor partido que se pode tirar desse episódio é, primeiro, tomar as medidas para que ele jamais aconteça novamente; depois, fazer com que as torcidas metam na cabeça que torcer não é ganhar o estatuto do ilimitado, pelo contrário. É ter a disciplina suficiente para controlar suas paixões.
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Reportagem por  Ivan Marsiglia
Fonte: Estadão on line, 03/03/2013

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