Jonne Roriz/Estadão
Corinthians joga com portões fechados no Pacaembu
Para antropólogo, a tragédia de Oruro obriga clubes, torcedores e o governo a repensar o comportamento brasileiro dentro e fora dos estádios: ‘Estamos carentes da discussão de limite’
Antes mesmo que o ex-presidente e corintiano emérito
Luiz Inácio Lula da Silva opinasse sobre a punição da Conmebol ao
Corinthians, a morte de Kevin Douglas Beltrán Espada já era assunto de
interesse nacional. O menino boliviano de 14 anos, torcedor do San José,
que teve o olho direito trespassado por um sinalizador lançado por um
membro da Gaviões da Fiel, provocou uma comoção que extrapolou os
limites do campo. E trouxe à tona a discussão sobre a violência dentro e
fora dos estádios de futebol.
O antropólogo Roberto DaMatta, torcedor do Fluminense e observador de
toque refinado da cultura brasileira, considera mais do que legítima a
responsabilização da torcida. "Não foi um grupo de turistas passeando na
Bolívia que se envolveu no crime. Foi uma coletividade organizada, a
Gaviões da Fiel, que viaja atrás do time, com ônibus e hotel definidos",
pontua.
Colunista do Estado e autor de Carnavais, Malandros e
Heróis (Rocco), obra clássica das ciências sociais no entendimento do
caráter nacional, DaMatta identifica no episódio em questão não apenas a
marca violenta do passado brasileiro, mas também o presente decisivo
que encaramos na modernização incompleta do País. "Há um sentimento
perigoso no ar, de que agora que temos liberdade, vivemos numa
democracia, eu posso fazer tudo que quero."
No bate-bola a seguir, Roberto DaMatta discorre sobre a centralidade
do futebol em nossa cultura - tese defendida com categoria no livro A
Bola Corre Mais que os Homens (Rocco) -, explica por que o esporte
proporciona à sociedade brasileira "uma experiência de igualdade e de
justiça social" e chama a atenção para a importância da tragédia de
Oruro no debate político nacional e na sinalização que o País vai dar ao
mundo às vésperas da Copa de 2014.
A morte do menino em Oruro mergulhou o País em um debate
sobre se o time, a coletividade, deveria pagar por um crime cometido por
um indivíduo. Qual é sua opinião?
Primeiro, é preciso definir bem. Não foi uma coletividade qualquer,
um grupo de turistas que estava na Bolívia passeando, que se envolveu no
crime. Foi uma coletividade organizada, a Gaviões da Fiel, que viaja
atrás do time, com ônibus e hotel definidos. Então, a responsabilização
da torcida é mais que legítima. A chave do que estamos discutindo aqui é
o limite: o que significa torcer. Eu posso fazer o que quiser na rua ou
não? Se sou apaixonado, morro pelo Corinthians, tenho o direito de
pegar um rojão e não manipulá-lo direito ou deliberadamente usá-lo para
agredir o torcedor do outro time? São eventos que nos obrigam a um
diálogo com determinados parâmetros sociais do passado.
Parâmetros que se perderam?
Na minha juventude, quando eu ia ao Maracanã ou ao estádio da Rua
Álvaro Chaves para torcer pelo Fluminense, ninguém levava rojões. O amor
pelo time, essa paixão desabrida que tem levado a arrebentar
alambrados, machucar e até matar é o que a gente tem que discutir. Qual é
o limite do torcedor? É evidente que isso é a expressão e o sintoma de
algo que acontece mais amplamente na sociedade brasileira. Nós estamos
carentes da discussão de limite. Algo que já aparecia, por exemplo, no
primeiro governo Lula, quando um grupo de manifestantes entrou no Senado
Federal e arrebentou tudo. Há um sentimento perigoso no ar, que é o
seguinte: "Agora que nós temos liberdade, vivemos numa democracia, eu
posso fazer tudo o que quero".
A sociedade brasileira é violenta?
Toda sociedade tem um lado violento. A questão é discutir suas
manifestações. No Brasil me parece clara a violência do Estado contra a
sociedade que ele controla com mão de ferro por meio de alvarás, leis,
licenças e aprovações. Na sociedade, a violência surge do rico contra o
pobre e do poderoso contra o fraco. Na casa, do marido contra a esposa e
os filhos. Na rua, da autoridade contra o acusado ou apontado como
autor de um delito. No esporte, quando um time ganha por muito ou perde
de modo injusto. Há formas e tipos de violência mais tolerados em certas
sociedades do que em outras. Em nosso país, o escravo de um juiz era
mais bem tratado do que o de um comerciante. Bater em criança ainda é
válido. Dizem que a mulher gosta de apanhar, etc. E hoje sofremos a
violência de um governo de viés despótico e personalista contra um
sistema que demanda mais tecnologia, mais modernidade e meritocracia.
Fala-se em ‘nova classe média’ e em inclusão social pelo
consumo no Brasil. Como tais fenômenos se relacionam com a incivilidade
que se vê dentro e fora dos estádios?
A inclusão pelo consumo implica o controle da incivilidade e o saber
usar o que se compra. O caso dos futebolistas com relógios de ouro e
brinquinhos de brilhante é um bom exemplo. Se um cidadão compra um
carro, ele tem que saber os perigos e as responsabilidades implicadas no
ato de dirigir. Um governo eleito pelo voto também não pode planificar
uma compra de votos para controlar o Congresso Nacional. Ser consumidor é
um papel social que demanda limites e éticas. Como o papel de torcedor.
Não é por acaso que quando reunimos num estádio um punhado de gente que
dirige como alucinados tenhamos a barbárie.
O Corinthians contesta a punição da Conmebol por considerá-la
‘injusta na medida em que prejudica diretamente o direito de
inocentes’. É um argumento válido?
O clube pode alegar o que quiser nos limites do direito esportivo. Há
quem considere, talvez com razão, a punição dura demais. Mas e o menino
que morreu? E se amanhã, numa nova briga de torcedores, morrerem mais
três ou quatro? Como faz? Que o caso seja levado a uma corte desportiva
que discuta o tamanho da punição. A gente sabe que o futebol é um
esporte de massa, que mobiliza paixões e funciona como uma espécie de
metáfora da guerra. A única vez que eu tive a motivação de brigar
fisicamente com alguém na vida foi aos 17 anos, em Niterói, por causa de
um Fla-Flu. Tudo isso a gente entende. Mas, se o Corinthians faz parte
de uma confederação e de uma comunidade esportiva internacional, não
pode ignorar o fato de que o que aconteceu em Oruro foi uma tragédia.
O sr. já escreveu que o futebol é um símbolo nacional quase
tão forte quanto a Bandeira ou o Hino. Até que ponto o comportamento das
torcidas no Brasil espelha o estágio em que se encontra nossa
sociedade?
O agenciamento psicológico, emocional e social que o futebol
proporciona é muito forte. Sobretudo, dentro de certas camadas sociais
que têm reclamações, frustrações, que vivem o drama da desigualdade - e,
ao mesmo tempo da igualdade, que o futebol proporciona a eles. É algo
que identifico muito claramente nos trabalhos que fiz sobre o futebol:
ele proporciona essa experiência de justiça, de igualdade e de revanche.
E também, como fica bem claro nesse episódio, uma experiência de
agressividade que não passa por agressividade. Feita sob o manto do
coletivo.
Essa expectativa de impunidade continua sendo uma marca da cultura brasileira?
Não tenho dúvida. É algo que estamos pagando para ver. O Brasil está
em suspenso aguardando o desfecho da condenação de um ex-chefe da Casa
Civil e outros envolvidos em um escândalo de corrupção. Toda semana
surge um caso qualquer em que as regras são ultrapassadas - casos que
aparecem, por outro lado, porque vivemos na era da internet e contamos
com meios de comunicação diversificados. Então, há um elemento
educacional que não pode ser desconsiderado. Um clube tem de dizer a sua
torcida quais são os limites do espetáculo.
O Corinthians recebe R$ 170 milhões ao ano por direitos de
transmissão na TV - o maior contrato, junto com o do Flamengo. De que
maneira os interesses financeiros inviabilizam uma responsabilização
mais ampla?
É uma pergunta difícil de responder. Quanto mais se mobilizam
recursos financeiros, mais problemático fica tomar decisões que durante
certo período inviabilizem esses ganhos. Por outro lado, a proibição da
participação das torcidas é uma espécie de censura. Uma situação
delicada, nova. E eu, se fosse dirigente do Corinthians ou de qualquer
outro clube capaz de ter essa capacidade maravilhosa de aglutinar
pessoas, estaria pensando em como educar essa torcida. Da maneira mais
rigorosa possível.
E como começaria esse trabalho pedagógico com os torcedores?
A imagem de um time de futebol deve ser a de um grupo vigoroso,
viril, que responde aos desafios, mas não a da violência, da morte, da
estupidez. É preciso difundir a ideia de que só existe disputa esportiva
a partir de regras. De que os grandes jogadores de futebol foram
aqueles que até catimbaram, mas não romperam as regras de maneira
visível, clara. De que a jogada limpa, de talento, é a que interessa -
não adianta ser campeão com um gol de mão. Essas regras que estão
funcionando no campo também têm que funcionar para as torcidas. Trazer
para o debate público não só qual é o bom jogador que o torcedor quer
ver no campo, mas também o bom torcedor que o jogador quer ver nas
arquibancadas.
É difícil dar o exemplo quando temos um Estatuto do Torcedor que não é cumprido rigorosamente em parte alguma do País...
A oportunidade que estamos tendo com este debate é enorme. Para que a
gente passe a levar a sério as regras. Esse evento mostra que os
torcedores precisam internalizar a noção de limite, de que determinados
tipos de comportamento obviamente não são compatíveis com a norma
civilizada. Que agredir a torcida adversária com paus e pedras ou
agredir no bar o atleta que não jogou bem é inadmissível. Torcer para um
time de futebol é entrar num papel social, como no teatro. E que esse
papel tem limites, não se pode matar uma pessoa de verdade no palco. A
chance é essa.
Um ensaio de sua autoria sustenta que ‘o futebol institui
abertamente a malandragem como arte de sobrevivência e o jogo de cintura
como estilo nacional’. Ainda há lugar no mundo para esse tipo de jogo?
O Brasil é um centro mundial de produção e reprodução do futebol. Se
você tirar o País do mapa, o futebol perde boa parte de sua graça. Nós
estabelecemos um padrão de jogo que mudou a face desse esporte, com
técnicas de corpo que são metáforas do jogo de cintura e da malandragem
nacionais - aquilo que Gilberto Freyre chamava de "futebol dionisíaco",
que hoje está presente na forma como se joga em todo o mundo. Foi
aprendido lá fora, assim como nós também aprendemos a jogar de maneira
mais física. Daí, inclusive, as dificuldades que enfrentamos atualmente
dentro de campo. Mas o estilo é a maneira de ser, a identidade, uma
espécie de estigma do qual você não se livra. É por isso que o futebol
para nós não é apenas um esporte; tem uma importância cultural enorme.
Porque quando um menino lá do sul da Itália ouve falar num cara chamado
Neymar, vai querer saber de onde ele vem. Então vai descobrir na
internet que ele nasceu em Santos e, de repente, aprender que no Brasil
se fala português, que somos um país que teve imperadores ou que saímos
da escravidão sem uma guerra civil como nos EUA.
O sr. diz que o futebol no Brasil proporciona à sociedade uma
experiência de igualdade e justiça social. O desfecho do episódio em
Oruro pode ser um divisor de águas na construção dessa experiência ou na
sinalização que o País dará ao mundo às vésperas da Copa?
O evento em Oruro é grave porque quando um clube vai jogar fora do
Brasil ele representa o País, quer queira, quer não. E a torcida tem que
entender que ela representa também o clube, o time que ama e traz para
ela essa experiência do pertencimento a um grupo e da liberdade de
torcer. Esse é o ponto que temos de trabalhar. Não é um jogo de
repressão, nem de punição, mas de disciplina. Aquela disciplina que está
no campo tem que passar também para o estádio. O melhor partido que se
pode tirar desse episódio é, primeiro, tomar as medidas para que ele
jamais aconteça novamente; depois, fazer com que as torcidas metam na
cabeça que torcer não é ganhar o estatuto do ilimitado, pelo contrário. É
ter a disciplina suficiente para controlar suas paixões.
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Reportagem por Ivan Marsiglia
Fonte: Estadão on line, 03/03/2013
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