Flávio Ricardo Vassoler*
'Tempos Modernos' (1936) sugere que a rotina coercitiva da linha de produção mimetiza a disciplina uniformizada do presídio. (Na verdade, a ordem dos termos não altera a violência do produto, pois o capataz da indústria é que é o verdadeiro ancestral do carcereiro.) A hipermodernidade, no entanto, saneia os custos e faz com que a lógica dos campos de concentração seja revolucionada.
Que nos trouxeram os 'Tempos Modernos'
(1936), filme dirigido pelo bom e velho Charles Chaplin? O inventivo
livro do escritor francês Jules Verne, 'A volta ao mundo em oitenta
dias' (1872), foi se tornando cada vez mais anacrônico. Quando já é
possível dar a volta (virtual) ao mundo em oitenta cliques, as dimensões
de espaço e tempo se transformam cada vez mais em espaço-tempo.
Caro leitor, cara leitora, vocês já utilizaram um programa chamado Google Earth? Trata-se de um programa de busca bastante refinado, por meio do qual é possível buscar imagens de endereços no mundo inteiro. No início de 2008, antes de ir a Moscou para uma estada de um ano na cidade natal do escritor Fiódor Dostoiévski, decidi buscar a Rua Miklukho-Maklaia no Google Earth, para que eu conhecesse antecipadamente a Universidade Russa da Amizade dos Povos (RUDN, em russo), instituição onde iria estudar a língua que Dostoiévski legou a Stálin. Pois as fotos do programa em questão foram desvelando cada recanto da universidade. O prédio principal, os alojamentos estudantis, as lanchonetes, as russas... Quando, no dia 17 de abril de 2008, eu enfim pus os pés no campus da RUDN, senti um inusitado déjà vu. Eu nunca havia estado lá, mas as reiteradas visitas virtuais como que substituíram minha experiência posterior e a tornaram menos real do que as cores mediatas da tela do computador. Como se a realidade ao alcance da mão – a realidade comezinha que marca a mera passagem dos segundos – fosse menos imediata do que a hiper-realidade que eu vira antes.
Mas como isso é possível? Como posso ter a sensação de que minha experiência de corpo presente é menos real do que uma vivência virtual que só me faz ter contatos mediados com as pessoas e situações? Era como se as russas fossem menos russas do que seus hologramas 3D. Em São Petersburgo, percorri a Avenida Niévski, palco de várias desventuras do homem do subsolo, protagonista dostoievskiano de Memórias do Subsolo (1864). Mas senti que era preciso voltar à narrativa para ver se a Niévski era de fato a Niévski. E pior: em plena Niévski, entrei no Google Earth para ver se o prédio real da famosa livraria Dom Knigui (Casa dos Livros) era de fato tão belo e altivo quanto o edifício virtual.
Cara leitora, caro leitor, vocês já sentiram algo assim? Vocês já sentiram que a reprodutibilidade técnica – e agora pior: reprodutibilidade virtual – usurpa nossas experiências justamente ao viabilizá-las de maneira mediata? Por decoro, não lhes perguntarei se vocês já fizeram sexo virtual – os tempos modernos não abandonaram de todo a moralidade e o moralismo vitorianos. Mas seria esdrúxulo pensarmos que a atividade mais íntima – e, atualmente, uma das mais publicizadas – vem sendo cada vez mais (re)produzida por meio de chats e webcams? Ora, a hiper-realidade torna curvilíneas as silhuetas preteridas pela eugenia estética; tamanhos indesejáveis e indesejados se tornam mais pródigos; e, no limite, já não é preciso haver rupturas e divórcios; afinal, os amantes sempre estiveram separados. A masturbação torna-se o afago por excelência.
E agora uma pergunta que mesmo a era da reprodutibilidade virtual não pode calar:
− Se temos acesso ao Google Earth e podemos dar a volta ao mundo em oitenta cliques, quais são os programas que a NASA, o Pentágono, a CIA, a KGB, a Gestapo e o Mossad têm à sua disposição? Seria completamente esdrúxulo pensarmos que satélites podem rastrear e apreender nosso genoma em oitenta segundos? Talvez sim, mas me parece que a imaginação prolífica de Jules Verne vem narrando há muito tempo estórias que o poder logo transforma em História.
Carlitos, a personagem interpretada por Chaplin, é um proletário que sequer tem ideia do produto final da linha de produção em que trabalha. O verbo “ler”, para Carlitos, transforma-se em um substantivo que o chefe imediato dos proletários, com o sugestivo cargo de capataz, insiste em supervisionar: LER, Lesão por Esforço Repetitivo. Mas é curioso pensarmos que, no início do século XX, ainda era necessário que houvesse rígidas estruturas de controle externo. Ao que o leitor e a leitora algo ressabiados poderiam replicar:
− Mas, ora, quando foi que o poder deixou de nos vigiar para punir?
Se levarmos os tempos modernos chaplinianos às últimas consequências, veremos que a lógica administrativa passou a considerar desnecessária a figura do capataz industrial. O princípio da coerção há muito foi introjetado. Senão, vejamos:
(1) Você já deixou de fazer alguma postagem mais íntima em suas páginas de relacionamento social – isto é, virtual – por medo de que um chefe e/ou “colegas” de trabalho pudessem usar tais informações (visuais) contra você?
(2) Você sente vergonha por ter que ganhar dinheiro?
A resposta para a primeira pergunta, eventualmente, pode ser “não”. Ainda assim, peço-lhe que use a imaginação que Jules Verne nos legou para ver se você não evitaria a espontaneidade de determinada postagem mais íntima para não comprometer sua imagem pública. (Ainda uma vez, as histórias da vida real, ao alcance da mão, precisam se mascarar ficcionalmente para se tornarem as estórias que o mercado de trabalho gosta de LER.)
A resposta para a segunda pergunta, necessariamente, é “não”. E o leitor e a leitora que já desconfiam da sanidade deste escritor poderiam dizer:
− Mas como é possível ter vergonha de ganhar dinheiro? Vergonha é não ter dinheiro, estar desempregado, ser julgado pelos demais, não ter onde cair vivo.
É por isso que, em tempos hipermodernos, nosso relógio biológico socialmente gerido nos acorda antes mesmo de o despertador violentar nosso sono entrecortado pelo capataz do desemprego. Não é preciso que os olhares enviesados dos “colegas” de escritório nos censurem pela barba por fazer ou pelos cabelos que já ultrapassam a fronteira do cumprimento administrado. Programas de televisão nos ensinam a educar os filhos que quase já não temos. Ou pior: como não há tempo para educá-los, já chegamos a pensar em pedir para nossos filhos aprenderem lições de bem-viver com a Super Nanny. (Ora, não falamos há pouco sobre a terceirização do sexo em favor da masturbação virtual? Os pais ausentes buscam a sabedoria da onipresente babá televisiva. No mais, é torcer para que a realidade infantil seja menos complexa do que os padrões de comportamento gentilmente autoritários que a babá onisciente inocula nos telespectadores.)
Um último exemplo extraído de nossa hiper-realidade pode nos fazer pensar sobre a transformação do algoz em categoria do nosso olhar.
Semana passada, dei carona para uma amiga que vive em um condomínio na zona oeste de São Paulo. Trata-se de um condomínio com 18 edifícios guarnecido por muros farpados e eletrificados. Vigias e câmeras onipresentes sabem quem entra e quem sai. Há lojas, academias e mercados no condomínio. Há estudos para escolas, faculdades e bancos vindouros. Uma cidade dentro da cidade. Ou pior: uma cidade sitiada dentro do estado de sítio. Uma pequena Suécia encravada em São Paulo, com a única diferença de que, aqui, é preciso entrincheirar-se sob o travesseiro para que o pesadelo virtual do sequestro não se transforme em sonho real de olhos abertos.
'Tempos Modernos' sugere que a rotina coercitiva da linha de produção mimetiza a disciplina uniformizada do presídio. (Na verdade, a ordem dos termos não altera a violência do produto, pois o capataz da indústria é que é o verdadeiro ancestral do carcereiro.) A hipermodernidade, no entanto, saneia os custos e faz com que a lógica dos campos de concentração seja revolucionada. Ao invés de apartar os prisioneiros do mundo, os moradores é que optam pelo descanso de classe média guarnecido por pastores alemães. Quando o carcereiro enfim comunica a Carlitos que ele é um homem livre, a imortal personagem de Chaplin torce o bigodinho antes de (re)produzir o discurso de nossa servidão voluntária:
− Não posso ficar um pouco mais? Estou tão contente aqui...
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*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Na próxima segunda-feira, dia 02 de setembro, às 19h, passará a apresentar o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – segundas-feiras, às 19h, na TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
Caro leitor, cara leitora, vocês já utilizaram um programa chamado Google Earth? Trata-se de um programa de busca bastante refinado, por meio do qual é possível buscar imagens de endereços no mundo inteiro. No início de 2008, antes de ir a Moscou para uma estada de um ano na cidade natal do escritor Fiódor Dostoiévski, decidi buscar a Rua Miklukho-Maklaia no Google Earth, para que eu conhecesse antecipadamente a Universidade Russa da Amizade dos Povos (RUDN, em russo), instituição onde iria estudar a língua que Dostoiévski legou a Stálin. Pois as fotos do programa em questão foram desvelando cada recanto da universidade. O prédio principal, os alojamentos estudantis, as lanchonetes, as russas... Quando, no dia 17 de abril de 2008, eu enfim pus os pés no campus da RUDN, senti um inusitado déjà vu. Eu nunca havia estado lá, mas as reiteradas visitas virtuais como que substituíram minha experiência posterior e a tornaram menos real do que as cores mediatas da tela do computador. Como se a realidade ao alcance da mão – a realidade comezinha que marca a mera passagem dos segundos – fosse menos imediata do que a hiper-realidade que eu vira antes.
Mas como isso é possível? Como posso ter a sensação de que minha experiência de corpo presente é menos real do que uma vivência virtual que só me faz ter contatos mediados com as pessoas e situações? Era como se as russas fossem menos russas do que seus hologramas 3D. Em São Petersburgo, percorri a Avenida Niévski, palco de várias desventuras do homem do subsolo, protagonista dostoievskiano de Memórias do Subsolo (1864). Mas senti que era preciso voltar à narrativa para ver se a Niévski era de fato a Niévski. E pior: em plena Niévski, entrei no Google Earth para ver se o prédio real da famosa livraria Dom Knigui (Casa dos Livros) era de fato tão belo e altivo quanto o edifício virtual.
Cara leitora, caro leitor, vocês já sentiram algo assim? Vocês já sentiram que a reprodutibilidade técnica – e agora pior: reprodutibilidade virtual – usurpa nossas experiências justamente ao viabilizá-las de maneira mediata? Por decoro, não lhes perguntarei se vocês já fizeram sexo virtual – os tempos modernos não abandonaram de todo a moralidade e o moralismo vitorianos. Mas seria esdrúxulo pensarmos que a atividade mais íntima – e, atualmente, uma das mais publicizadas – vem sendo cada vez mais (re)produzida por meio de chats e webcams? Ora, a hiper-realidade torna curvilíneas as silhuetas preteridas pela eugenia estética; tamanhos indesejáveis e indesejados se tornam mais pródigos; e, no limite, já não é preciso haver rupturas e divórcios; afinal, os amantes sempre estiveram separados. A masturbação torna-se o afago por excelência.
E agora uma pergunta que mesmo a era da reprodutibilidade virtual não pode calar:
− Se temos acesso ao Google Earth e podemos dar a volta ao mundo em oitenta cliques, quais são os programas que a NASA, o Pentágono, a CIA, a KGB, a Gestapo e o Mossad têm à sua disposição? Seria completamente esdrúxulo pensarmos que satélites podem rastrear e apreender nosso genoma em oitenta segundos? Talvez sim, mas me parece que a imaginação prolífica de Jules Verne vem narrando há muito tempo estórias que o poder logo transforma em História.
Carlitos, a personagem interpretada por Chaplin, é um proletário que sequer tem ideia do produto final da linha de produção em que trabalha. O verbo “ler”, para Carlitos, transforma-se em um substantivo que o chefe imediato dos proletários, com o sugestivo cargo de capataz, insiste em supervisionar: LER, Lesão por Esforço Repetitivo. Mas é curioso pensarmos que, no início do século XX, ainda era necessário que houvesse rígidas estruturas de controle externo. Ao que o leitor e a leitora algo ressabiados poderiam replicar:
− Mas, ora, quando foi que o poder deixou de nos vigiar para punir?
Se levarmos os tempos modernos chaplinianos às últimas consequências, veremos que a lógica administrativa passou a considerar desnecessária a figura do capataz industrial. O princípio da coerção há muito foi introjetado. Senão, vejamos:
(1) Você já deixou de fazer alguma postagem mais íntima em suas páginas de relacionamento social – isto é, virtual – por medo de que um chefe e/ou “colegas” de trabalho pudessem usar tais informações (visuais) contra você?
(2) Você sente vergonha por ter que ganhar dinheiro?
A resposta para a primeira pergunta, eventualmente, pode ser “não”. Ainda assim, peço-lhe que use a imaginação que Jules Verne nos legou para ver se você não evitaria a espontaneidade de determinada postagem mais íntima para não comprometer sua imagem pública. (Ainda uma vez, as histórias da vida real, ao alcance da mão, precisam se mascarar ficcionalmente para se tornarem as estórias que o mercado de trabalho gosta de LER.)
A resposta para a segunda pergunta, necessariamente, é “não”. E o leitor e a leitora que já desconfiam da sanidade deste escritor poderiam dizer:
− Mas como é possível ter vergonha de ganhar dinheiro? Vergonha é não ter dinheiro, estar desempregado, ser julgado pelos demais, não ter onde cair vivo.
É por isso que, em tempos hipermodernos, nosso relógio biológico socialmente gerido nos acorda antes mesmo de o despertador violentar nosso sono entrecortado pelo capataz do desemprego. Não é preciso que os olhares enviesados dos “colegas” de escritório nos censurem pela barba por fazer ou pelos cabelos que já ultrapassam a fronteira do cumprimento administrado. Programas de televisão nos ensinam a educar os filhos que quase já não temos. Ou pior: como não há tempo para educá-los, já chegamos a pensar em pedir para nossos filhos aprenderem lições de bem-viver com a Super Nanny. (Ora, não falamos há pouco sobre a terceirização do sexo em favor da masturbação virtual? Os pais ausentes buscam a sabedoria da onipresente babá televisiva. No mais, é torcer para que a realidade infantil seja menos complexa do que os padrões de comportamento gentilmente autoritários que a babá onisciente inocula nos telespectadores.)
Um último exemplo extraído de nossa hiper-realidade pode nos fazer pensar sobre a transformação do algoz em categoria do nosso olhar.
Semana passada, dei carona para uma amiga que vive em um condomínio na zona oeste de São Paulo. Trata-se de um condomínio com 18 edifícios guarnecido por muros farpados e eletrificados. Vigias e câmeras onipresentes sabem quem entra e quem sai. Há lojas, academias e mercados no condomínio. Há estudos para escolas, faculdades e bancos vindouros. Uma cidade dentro da cidade. Ou pior: uma cidade sitiada dentro do estado de sítio. Uma pequena Suécia encravada em São Paulo, com a única diferença de que, aqui, é preciso entrincheirar-se sob o travesseiro para que o pesadelo virtual do sequestro não se transforme em sonho real de olhos abertos.
'Tempos Modernos' sugere que a rotina coercitiva da linha de produção mimetiza a disciplina uniformizada do presídio. (Na verdade, a ordem dos termos não altera a violência do produto, pois o capataz da indústria é que é o verdadeiro ancestral do carcereiro.) A hipermodernidade, no entanto, saneia os custos e faz com que a lógica dos campos de concentração seja revolucionada. Ao invés de apartar os prisioneiros do mundo, os moradores é que optam pelo descanso de classe média guarnecido por pastores alemães. Quando o carcereiro enfim comunica a Carlitos que ele é um homem livre, a imortal personagem de Chaplin torce o bigodinho antes de (re)produzir o discurso de nossa servidão voluntária:
− Não posso ficar um pouco mais? Estou tão contente aqui...
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*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Na próxima segunda-feira, dia 02 de setembro, às 19h, passará a apresentar o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – segundas-feiras, às 19h, na TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22569
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