Matías M. Molina*
Não foram pesquisadores alemães, mas um jornalista americano, Ron
Rosenbaum, quem primeiro percebeu e divulgou a importância da luta
contra Hitler por um pequeno jornal de Munique, o "Münchener Post", que
os nazistas chamavam de "a cozinha venenosa". Em seu livro "Para
Entender Hitler", Rosenbaum escreveu que a batalha "entre Hitler e os
corajosos repórteres e editores do 'Post' é um dos grandes dramas nunca
relatados da história do jornalismo". Eles foram, disse, os primeiros a
se 'atracar' com o líder nazista, os primeiros a ridicularizá-lo, os
primeiros a investigá-lo, a denunciar o lado avesso e sujo de seu
partido, o comportamento criminoso e homicida mascarado por suas
pretensões a movimento político, e foram os primeiros a tentar alertar o
mundo para a natureza da besta feroz que rastejava em direção a Berlim.
Foi ainda a primeira publicação a escrever sobre "a solução final" para
os judeus.
Rosenbaum acrescenta que a história do "Post" e de seus jornalistas
"nunca foi contada de verdade, sequer na Alemanha, ou talvez
especialmente na Alemanha, onde é mais consolador para a autoimagem
nacional acreditar que ninguém realmente sabia quem era Hitler, até ser
tarde demais", mas "os redatores do 'Münchener Post' sabiam, eles
publicaram a verdade para quem estivesse disposto a vê-la". Em 12 anos
de luta, o jornal divulgou algumas das percepções mais agudas e
penetrantes do caráter, dos métodos e da mente de Hitler.
Rosenbaum explica o significado de "cozinha venenosa". "Venenoso" era
uma expressão reservada por Hitler para aqueles a quem odiava mais
profundamente, era o epíteto com que se referia aos judeus:
"envenenadores". É difícil encontrar em seu vocabulário outra palavra
mais carregada de ódio e aversão.
Depois da primeira edição do livro de Rosenbaum, em 1998, alguns
pesquisadores voltaram sua atenção para o "Münchener Post". A também
americana Sara Twogood escreveu um longo ensaio sobre o jornal e na
França foi divulgado um documentário dez anos atrás, "Le Münchener Post
Contre Hitler".
"Na Alemanha, é mais consolador acreditar que ninguém sabia quem era Hitler, até ser tarde demais",
diz Ron Rosenbaum
Recentemente, foi publicado o primeiro livro sobre o "Münchener
Post", intitulado "A Cozinha Venenosa". A autora é a jornalista
brasileira Silvia Bittencourt, que mora na Alemanha há mais de 20 anos e
trabalha na Universidade de Heidelberg. O livro é uma agradável
surpresa. Quando o autor desta resenha fez uma pesquisa a respeito do
"Süddeutsche Zeitung" (SZ), de Munique, o de maior circulação e o mais
liberal dos diários alemães de qualidade, não encontrou nenhuma
referência ao "Münchener Post". Mencionou a existência do "Münchener
Neueste Nachichten", o principal jornal de Munique e concorrente do
"Post". Depois da Segunda Guerra Mundial, suas instalações foram
utilizadas pelo SZ, que também empregou vários de seus ex-jornalistas.
Ao escrever sobre a fundação do "Süddeutsche Zeitung", mencionou que seu
editor-chefe, Edmund Goldschagg, tinha dirigido um jornal de Munique
até 1933. O que não sabia, até ler "A Cozinha Venenosa", é que esse
jornal era precisamente o "Münchener Post".
Mas ainda hoje é chocante a ignorância na Alemanha sobre o principal
inimigo de Hitler na imprensa escrita. Tanto Rosenbaum como Silvia
estiveram na Altheimer Eck, a rua de Munique onde o "Post" tinha a sede,
e não encontraram nenhum resquício dele, sequer uma placa. Ninguém o
conhecia. Silvia procurou os descendentes dos principais jornalistas do
"Post" e percebeu que também eles pouco sabiam de sua luta contra
Hitler. A produção sobre o jornal continua escassa, principalmente na
Alemanha. Talvez, como diz Rosenbaum, uma tentativa de ignorar um
passado pouco agradável.
O "Münchener Post" foi fundado em 1886 ou 1887. Era um semanário de
quatro páginas de pequenas dimensões que logo ficou ligado ao Partido
Social Democrático (Sozialdemokratische Partei Deutschlands - SPD). Em
1890, passou a circular diariamente, à tarde, com uma tiragem de 5 mil
exemplares. Mais tarde, teria oficinas próprias e seis jornalistas fixos
e bem pagos, que também eram ativistas políticos. Vários deles
ocupariam altos cargos na administração pública. Tornou-se um importante
formador de opinião da Baviera. Passou a tirar 30 mil cópias.
Posteriormente, publicaria também o semanário "Bayerisches Wochenblatt".
Em 1914, escreveu contra a entrada da Alemanha numa eventual guerra,
mas, quando esta começou, seguiu a linha do partido, mudou de orientação
e prestou uma "valiosa colaboração patriótica", segundo o Ministério da
Guerra.
Derrotada, a Alemanha atravessou um período conturbado. Um dos
principais jornalistas do "Post", Kurt Eisner, chegou a ser, por um
curto período, ministro-presidente (governador) e chanceler da República
da Baviera. Morreu assassinado a tiros. Quando outro jornalista do
"Post" e político do SPD, Erhard Auer, fazia uma oração fúnebre por
Eisner, foi também baleado, mas sobreviveu. O poder na região foi
ocupado pelo Partido Popular Bávaro, conservador, que cercearia
repetidas vezes a circulação do "Post".
Como praticamente toda a Alemanha, o jornal ficou indignado com as
condições do Tratado de Versalhes, de 1919, imposto pelos vencedores,
que declarava a Alemanha culpada pela guerra, tirava todas as suas
colônias, reduzia seu exército, tomava-lhe uma parte do território e
impunha pesadíssimas reparações. O rigor das medidas favoreceu a
ascensão do nazismo.
Em abril de 1920, o "Post" mencionou a existência do "partido da
suástica" (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães); em
maio, num texto com destaque, chamava a atenção para um personagem que
fazia inflamados discursos nas cervejarias e emergia na cena política -
era um austríaco, um pintor fracassado, antigo cabo do exército alemão:
"Na terça-feira à noite, um senhor chamado Hitler falou sobre o programa
desse 'partido'. Ele soltou as mesmas palavras e disparou os mesmos
clichês que somos obrigados a ouvir nos eventos de propaganda
nacionalista. Caluniou a social-democracia por sua defesa da
Internacional e pregou o antissemitismo nos moldes nacionalistas".
O "Post" seria o único jornal de Munique a cobrir regularmente, e
cada vez com maior intensidade, o movimento nazista e as atividades de
Hitler. Como diz Silvia Bittencourt, as notas publicadas eram cada vez
maiores, mais frequentes e mais afiadas, criticando principalmente o
antissemitismo. Numa delas, escreveu que Hitler se comportara mais como
um comediante e que sua palestra, "lembrando uma cantiga, trazia a cada
três frases o refrão 'a culpa é dos hebreus'. Não há infâmia ou porcaria
que não seja atribuída aos judeus".
As notas sobre Hitler se repetiram e ele passou a provocar os
repórteres do jornal nos comícios. Numa ocasião, disse que o homem do
"Post" deveria tirar sua pele de cordeiro e sairia, daí, um burro.
Atacava o jornal em suas falas e nos artigos para o "Völkischer
Beobachter", jornal do partido nazista. Dizia que "não se passava um dia
sequer sem que o 'Münchener Post', uma das publicações judaicas mais
imundas, manchasse e sujasse pessoas corretas"; era o "sapo judaizante
da Altheimer Eck", um "jornal judeu e marxista" e "arremessador
piolhento de lama". Ele ficou furioso com um texto provocador: "Adolf
Hitler traidor?", mostrando o descontentamento de vários de seus
correligionários e questionando a origem das finanças do partido e a
vida de luxo do seu líder. A partir de então, o 'Post' ficou na mira de
Hitler, que lhe prestaria a duvidosa homenagem de mencioná-lo
nominalmente em sua obra "Mein Kampf".
O "Post" seria o único jornal de Munique a
cobrir regularmente, e cada vez com maior intensidade, o movimento
nazista
e as atividades de Hitler
Num de seus discursos, Hitler disse, dirigindo-se ao editor
responsável: "Senhor Auer! O senhor e sua injeção de veneno têm grande
parte da culpa pela miséria que o povo alemão vive hoje. Senhor Auer! O
senhor recebeu dinheiro dos judeus do gado, o senhor se vendeu para os
judeus".
O jornal que enfrentava Hitler publicava longos textos teóricos e
ensaios; tinha boas páginas culturais, mas era extremamente
intelectualizado para os trabalhadores e a maioria da massa do partido.
Sua pequena equipe dividia o tempo com a política, dedicando menos
atenção ao jornal. Seu editor era também líder do Partido
Social-Democrata da Baviera. Apesar de sua coragem e sua contundência,
talvez não fosse a arma mais apropriada para a batalha. Mas foi o mais
aguerrido na luta.
O "Post" foi fechado e censurado repetidas vezes, como toda a
imprensa de esquerda, por um Poder Judiciário ultraconservador, e a
polícia invadiu sua sede, numa ação movida por "traição à pátria". Mas
no começo dos anos 1920 alcançaria uma tiragem de 60 mil exemplares.
Ante a opacidade das finanças do partido nazista e as ligações de Hitler
com a burguesia industrial, que o financiava, o "Post" perguntava: "O
que, exatamente, ele faz para ganhar a vida?". E mostrava "como Hitler
vive".
Hitler capitalizou habilmente as dificuldades enfrentadas pela
Alemanha na República de Weimar: o desemprego, a ocupação da região do
Reno pelas tropas francesas, a inflação galopante - o preço de uma
passagem de ônibus chegou a custar 150 bilhões de marcos e um dólar era
trocado por 4,2 trilhões de marcos. Ele prometeu acabar com os males do
país, que atribuía aos judeus. O número de afiliados ao partido nazista
cresceu exponencialmente, assim como a fama de seu líder.
Em 1923, Hitler superestimou sua força. Tentou dar um golpe de
Estado, conhecido como o "putsch da cervejaria", com lances de ópera
bufa, e fracassou. Durante os tumultos, os nazistas invadiram e
destruíram as instalações do "Post", o que levou o "Völkischer
Beobachter" a escrever: "A cozinha venenosa na Altheimer Eck foi
demolida".
Julgado por alta traição, num processo que o jornal católico
"Bayerische Kurier" qualificou como uma "catástrofe jurídica" e o
"Post", como "túmulo da Justiça bávara", Hitler foi condenado a cinco
anos de prisão, em condições que "lembravam mais um hotel do que uma
penitenciária", que ele aproveitou para escrever "Mein Kampf". "The New
York Times", que fazia uma boa cobertura da Alemanha, acreditou que a
carreira política de Hitler estava encerrada. Foi solto, pouco mais de
um ano depois, por boa conduta, refundou o partido e retomou a ascensão
política meteórica, apesar de sua condição de apátrida, pois perdera a
nacionalidade austríaca em 1925 sem conseguir a alemã.
No fim dos anos 1920 e começo dos 30, o "Post" atravessou momentos
difíceis. Atingido pela crise econômica, tinha uma existência precária,
agravada pelas depredações e pela contínua atitude hostil do governo
bávaro, que o proibia, com frequência, de circular; seus jornalistas
sofriam represálias e agressões físicas ante a complacência da polícia.
Foi obrigado a diminuir o número de páginas, a tiragem caiu.
Isso não impediu que o jornal aumentasse a intensidade dos ataques a
Hitler, aos nacional-socialistas da cruz suástica e a seu adversário, o
"Völkischer Beobachter", que fora relançado e contava com mais recursos.
O "Post" mostrou ter um incrível acesso a informações confidenciais e
documentos secretos dos nazistas. Atacou também os comunistas,
responsabilizando-os igualmente pela violência no país.
Quando os nazistas tiveram um revés nas eleições de 1930, o "Post"
subestimou seu futuro político. Mas a depressão e o desemprego
decorrentes do crash da bolsa de Nova York, em 1929, levaram um grande
número de alemães a depositar suas esperanças nas promessas de Hitler.
Nas eleições seguintes, seu partido aumentou o número de votos, assim
como os comunistas.
Para deter o avanço nazista a qualquer custo, o "Post" lançou o que
Silvia Bittencourt considerou "a campanha mais suja de sua história", e
"desonesta e ambígua", mas que Rosenbaum qualifica como um mergulho no
coração desagradável da cultura de chantagem do partido de Hitler.
Tratava-se de uma carta de um consultor jurídico do partido, Eduard
Meyer, a Ernest Röhm, o chefe das forças de choque, as "camisas-pardas",
do movimento hitlerista. Nela, Meyer contava em detalhes episódios da
vida homossexual de Röhm, a quem chantageou. A carta foi entregue pela
noiva de Meyer ao "Post", que pagou por ela e a publicou com o título "A
vida sexual no Terceiro Reich". A repercussão foi extraordinária. Röhm
alegou que a carta era falsa e processou o jornal, para mais tarde
retirar a queixa e pagar as custas do processo, que foi arquivado. Meyer
se matou e a noiva foi condenada a oito meses de prisão. Mas o
escândalo não abalou a ascensão de Hitler.
A "cozinha venenosa" também explorou o suicídio da atraente
meia-sobrinha de Hitler, Geli (Angela Maria) Raubal, que morava em sua
casa; ele foi, talvez, o grande amor de sua vida, mas não há provas de
que fossem amantes. O "Post" quis saber qual era o papel de Hitler,
doentiamente ciumento. Foi tão intenso o ataque do "Post" que Hitler
ameaçou com um processo e pensou em suicídio. Mas conseguiu a cidadania
alemã; em novembro de 1932, seu partido foi o mais votado e em janeiro
do ano seguinte ele foi indicado para o posto de chanceler
(primeiro-ministro).
Em março de 1933, os nazistas invadiram de novo as instalações do
"Post". A maioria, escreveu um jornalista, "tinha cara de menino".
Destruíram com fúria o que encontraram, máquinas de escrever, telefones,
até as torneiras das pias dos toaletes, jogaram móveis pelas janelas,
fizeram uma fogueira com documentos, arrasaram as oficinas. Dessa vez,
acabariam com o jornal para sempre. Os jornalistas tiveram que se
esconder. Seus ataques contra Hitler tinham sido implacáveis. Eles,
segundo Rosenbaum, "tinham a ficha de Hitler, tinham enxergado dentro
dele (...) Eles tinham visto o Hitler dentro de Hitler e, creio, Hitler
sabia que eles sabiam." Pagaram por isso. Foi o fim de uma luta que
durou doze anos.
A obra de Silvia Bittencourt, resultado de árdua pesquisa, mereceria
uma ampla divulgação, principalmente na Alemanha, onde o primeiro e mais
persistente opositor de Hitler é ainda praticamente ignorado.
Ao livro podem ser feitas algumas observações. O "New York Herald
Tribune" não estava, na época, ligado ao "New York Times"; a ligação se
daria várias décadas mais tarde, com sua edição internacional, depois de
desaparecer a edição de Nova York. O livro afirma que Edmund
Goldschagg, ex-editor do "Post", fez sozinho o projeto do "Süddeutsche
Zeitung" em 1945. Na verdade, o lançamento foi obra de três pessoas:
Goldschagg, diretor de redação; August Schwingenstein, "publisher"; e
Franz-Joseph Schoeningh, editor cultural, aos quais se juntaram dois
ex-executivos do "Münchner Neueste Nachichten"; eles foram os acionistas
do jornal. A autora menciona os artigos de Konrad Heiden,
correspondente em Munique do "Frankfurter Zeitung". Mas, preocupada em
destacar a oposição do "Post", talvez não tenha dado a importância
devida à posição desse jornal contra Hitler, o mais influente da época e
antecessor do atual "Frankfurter Allgemeine Zeitung". Antes de ser
tomado pelos nazistas, era um diário liberal, independente, "a voz da
razão que emanava das províncias", segundo Peter Gay. Para Hitler, era
"um jornal-víbora judeu".
Mas nada disso diminui a importância da "cozinha venenosa". Ao
destruir seu grande inimigo, em 1933, Hitler quase conseguiu também
erradicar a memória sobre ele, que só agora está sendo resgatada.
"A Cozinha Venenosa: Um Jornal Contra Hitler"
Silvia Bittencourt. Três Estrelas, 2013. 373 págs., R$ 49,90."Para Entender Hitler: A Busca das Origens do Mal"
Ron Rosenbaum. Editora Record, 5ª edição, 2011. 641 págs., R$ 62,90
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* Matías M. Molina é autor do livro "Os Melhores Jornais do Mundo", em segunda edição Email: matias.molina@terra.com.br
Fonte: Valor Econômico on line, 16/08/2013
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