Pesquisadores do Biofabris, na Unicamp,
iniciam testes de peças customizadas,
último estágio de estudo que começou há quatro anos
último estágio de estudo que começou há quatro anos
Você
sobreviveu a um grave acidente, mas se olha no espelho, todos os dias, e
depara-se com as marcas da tragédia: a ausência de uma parte do osso da
cabeça. Ou você teve alguma doença que deixou sequelas semelhantes. Usa
boné, deixa o cabelo crescer (se ainda o possui), para esconder essas
marcas. Se, de apenas imaginar, a situação o incomoda, pense agora que
esta é a realidade diária de quem passa por essas situações e aguarda
uma prótese. Do ponto de vista médico, a questão é maior: elas estão
mais vulneráveis com a deformidade no crânio, que antes protegia o
cérebro, e isso representa um risco para a vida e exige cuidados
especiais.
Dez pacientes terão o
problema resolvido até o final deste ano, segundo previsão dos
pesquisadores da Unicamp que trabalham em um projeto único de fabricação
desse tipo de “peças de titânio” para humanos no país, no Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) em Biofabricação (Biofabris), na
Unicamp. Quatro já estão prontos para a cirurgia, que será realizada no
Hospital das Clínicas da Unicamp, em Campinas (SP). O grupo foi
selecionado para a etapa de estudos clínicos do projeto, o último
estágio da pesquisa e um dos mais importantes por envolver a aplicação e
avaliação das próteses em seres humanos.
Em
comum, todos passaram por uma ou duas cirurgias de reparação, mas sem
sucesso, por diversos complicadores típicos desse tipo de situação. A
maioria é homem, apresenta sequelas decorrentes de traumas de acidentes e
têm entre 20 e 60 anos. “Na área médica, é preciso submeter todo
material novo a uma bateria de testes e existem passos a serem seguidos.
O último deles é o estudo clínico”, explica o médico Paulo
Kharmandayan, professor e coordenador da área de Cirurgia Plástica do
Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da
Unicamp, integrante da equipe de pesquisa do Biofabris.
O
conceito de “biofabricação” consiste em utilizar técnicas de engenharia
e biomateriais para a construção de estruturas tridimensionais,
fabricação e confecção de substitutos biológicos que atuarão no
tratamento, restauração e estruturação de órgãos e tecidos humanos. O
laboratório, que é ligado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e
Inovação (MCTI), reúne pesquisadores de quatro unidades da Unicamp (FEQ,
FEM, FCM e o Instituto de Física) e de outras universidades e
institutos de pesquisa do país, de diferentes áreas, que trabalham de
forma integrada e multidisciplinar nos vários projetos, incluindo o das
próteses.
No total, quinze pacientes foram pré-escolhidos para essa etapa de estudos clínicos, aprovada pelo Comitê de Ética da FCM, mas existem outros selecionados e que podem ser incluídos. A primeira cirurgia foi realizada no ano passado. O segundo paciente operado recupera-se de um procedimento realizado há dois meses. Ambos vivem com novas próteses feitas de titânio para a correção de deformidades cranianas. Assim como os outros que ainda serão operados no decorrer dos próximos meses, todos ajudarão os pesquisadores a avaliar a adaptação do corpo às peças produzidas sob medida. “Todas as etapas são importantes, mas esta é imperativa para que tenhamos uma avaliação do que foi feito, desde a escolha do material até as técnicas de fabricação e cirurgia”, explica o coordenador do Biofabris, Rubens Maciel Filho, professor da Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Unicamp.
As
próteses desenvolvidas são usadas em cirurgias plásticas
(craniofaciais) para a reparação de deformidades causadas por má
formação ou por sequelas de traumas, como acidentes, ou doenças. No
Brasil, de cada dez vítimas de acidentes de trânsito, quase seis (57,6%)
apresentam traumas faciais e um (10%) tem lesões no crânio.
“Infelizmente, vivemos em uma sociedade que valoriza muito a estética”,
afirma Marcelo Magno, 28, o segundo paciente a receber o implante na
Unicamp. “Agora, há momentos que até esqueço que uso a prótese.”
PESQUISA
De
modo resumido, a etapa de estudos clínicos servirá para que a equipe de
pesquisa avalie todo o processo, desde a fabricação da peça até a fase
pós-cirúrgica, verificando, por exemplo, a biocompatibilidade do
material escolhido, o titânio – se não há processo de rejeição e outros
complicadores eventuais nesse tipo de reconstrução. Os pacientes serão
acompanhados por, no mínimo, um ano a partir da realização da cirurgia,
mas o prazo pode ser ampliado de acordo com as necessidades da pesquisa.
Atualmente,
próteses sob medida, do tipo pesquisado pelo laboratório, são
produzidas apenas no exterior e com alto custo. Outras, construídas com
diferentes materiais (metacrilato, cerâmica, por exemplo), no Brasil,
podem custar mais de R$ 100 mil. Para pacientes ouvidos pelo Jornal da
Unicamp, o trabalho representa “esperança”, porque nem sempre é possível
recolocar o “pedaço” de crânio retirado quando da ocorrência de um
trauma cerebral.
“A
nossa ideia é desenvolver um produto para ser utilizado no SUS [Sistema
Único de Saúde]”, afirma a professora Cecília Zavaglia, do Departamento
de Engenharia de Materiais da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM),
vice-coordenadora do Biofabris. A técnica desenvolvida para a produção
das próteses craniofaciais poderá ser replicada para qualquer osso do
corpo humano. Além disso, as pesquisas realizadas no Biofabris podem
resultar na descoberta de novos biomateriais (de origem natural ou
sintética, usado para a substituição, por qualquer período de tempo, de
tecido, órgão ou função do corpo), novas próteses e implantes, assim
como no desenvolvimento de máquinas para a produção das peças, entre
outras inovações.
SOB MEDIDA
A
matéria-prima das peças cranianas é uma liga à base de titânio, um
elemento metálico leve e resistente, muito empregado em próteses
ortopédicas e odontológicas. “Decidimos desenvolver uma prótese
customizada, ou seja, com as dimensões precisas, fiéis à falha existente
no paciente, e com um material leve e resistente o suficiente para
preencher uma falha óssea de larga escala”, explica André Jardini, da
Faculdade de Engenharia Química (FEQ), pesquisador sênior do Biofabris.
Os
primeiros anos da pesquisa foram dedicados à construção da prótese
customizada, projetada para adaptar-se à deformidade existente,
garantindo, ao mesmo tempo, a recuperação da aparência estética e a
funcionalidade perdida – a proteção do cérebro. “A preocupação do
Biofabris não foi simplesmente construir algo, de metal, que se encaixe
aqui [mostrando modelo de um crânio humano], mas verificar o que pode
ser melhorado na integração, que seja compatível e que favoreça o
crescimento celular. Além disso, a escolha do titânio não foi aleatória,
porque o material já vem sendo usado há certo tempo na área médica”,
afirma o médico Paulo Kharmandayan, representante da FCM no projeto.
O
processo de fabricação começa com a realização de exames em um
tomógrafo (foto 1), capaz de construir, de forma não invasiva, em
imagens (2D), a área do crânio a ser reparada, por meio de milhares de
fatias captadas a cada milímetro “fotografado”. Essas informações são
inseridas no programa “InVesalius”, desenvolvido pelo CTI Renato Archer,
centro de pesquisa parceiro do Biofabris, que ajuda a reconstruir em
“3D” o crânio do paciente (foto 2) – praticamente uma escultura digital.
Nessa etapa, comparando o lado sadio com a parte afetada, os
pesquisadores conseguem criar uma prótese com dimensão e formato mais
adequados, preservando a aparência e recuperando a função original de
proteção ao cérebro.
A partir desse
modelo virtual da “cabeça” do paciente, são feitos um crânio-modelo
(foto 3) e uma prótese, em polímero, com o apoio de uma impressora “3D”
(prototipagem rápida), um equipamento capaz de produzir um modelo
tridimensional por meio de sucessivas camadas de material. Esses dois
moldes são usados pela equipe médica para avaliação da peça e para o
planejamento do procedimento operatório, o que ajuda a reduzir o tempo
da operação e evitar eventuais complicadores, como potenciais
dificuldades para a fixação da peça.
Como
comparação, a técnica convencional, e mais barata, de reparação de
deformidades cranianas exige que a prótese seja modelada à mão pelo
médico, durante a cirurgia, sem o mesmo suporte tecnológico e a precisão
possibilitada pelo computador. Os dois resultados finais são
diferentes. A prótese do Biofabris respeita a anatomia do crânio, o mais
perto possível das dimensões e formatos da parte óssea perdida. Um dos
pacientes já operados na Unicamp, por exemplo, apresentava ausência de
uma área de 15 por 12 centímetros, área equivalente à de dois celulares
posicionados um ao lado do outro.
Não
é uma tarefa simples produzir a prótese. Isso porque o crânio não é
simétrico. Os lados parecem iguais, mas não são e isso exige que os
projetistas realizem uma série de ajustes para o encaixe perfeito. “Não é
somente um problema de estética, mas também de segurança para o
paciente”, destaca a professora Cecília Zavaglia. Ao ser implantada, a
peça fica apoiada nas bordas de osso da deformidade craniana.
Aprovado
o protótipo pelos engenheiros e médicos da equipe, começa a produção em
um equipamento denominado “Sinterização Direta de Metais por Laser”
(foto 4). A Unicamp foi a primeira instituição de ensino e pesquisa do
hemisfério sul a receber uma máquina desse tipo. Na prática, permite
“esculpir a prótese com titânio em pó”, ou melhor, camada por camada,
irradiada por laser, surge o modelo definitivo da prótese craniada,
construído com o metal fundido. Após essa etapa, a prótese de titânio
(foto 5) passa por um pós-tratamento da superfície, limpeza e
esterilização no Laboratório de Tratamento e Funcionalização de
Superfície Instituto de Física (IFGW) da Unicamp, coordenado pelo físico
Carlos Sales Lambert.
O último passo é a cirurgia para implantar a prótese. “A avaliação clínica é importante porque ajudará a avaliar o que foi feito até o momento, como atendemos as necessidades do cirurgião, se a escolha do material foi a mais adequada, o que precisamos fazer para que ocorra uma melhor osteointegração [entre o osso e a peça de metal] e se a técnica de produção foi a mais adequada”, avalia Rubens Maciel Filho.
Cirurgia encerra ciclo de limitações, dores e isolamento para pacientes
“Não
vejo a hora de ficar livre deste boné”, explica Marcelo Magno, 28,
técnico em prótese dentária. Há mais de dois anos, essa peça o ajuda a
esconder uma sequela deixada por um grave acidente com moto ocorrido em
Natal (RN), em 2011. Era uma tarde de sábado. Num momento, estava com
amigos, no outro, internado em estado grave. Há dois meses, ele convive
com uma nova prótese de titânio implantada do lado direito da cabeça,
fabricada sob medida pelo Laboratório Biofabris, e espera o cabelo
crescer um pouco mais, o suficiente para esconder completamente a
cicatriz, para recomeçar de vez outra etapa de vida.
A
emoção é visível em seu rosto enquanto reconta a trajetória de
incertezas e fala das dores que sentia, ao final do dia, resultado de
ações simples do dia a dia como falar. “Agora, é como se tivesse o
crânio de volta. Há momentos que esqueço que uso [a próteses]”, explica,
ao responder o que mudou em sua vida depois da cirurgia. Foram três
cirurgias até aqui: uma, logo após o acidente, que resultou na abertura
da caixa craniana para salvar sua vida; outra, para colocar uma prótese
comum (que não se adaptou bem ao tamanho da deformidade); e a última
realizada há dois meses na Unicamp.
A
família já estava vendendo a casa para buscar uma alternativa capaz de
ajudá-lo a recuperar-se de vez do acidente, quando ele, em pesquisa na
internet, descobriu a pesquisa que estava sendo realizada no Biofabris.
“Eu estava focando no meu tratamento. Se existisse como fazê-lo, eu
faria”, recorda. “Quando estava me recuperando da última cirurgia, dois
dias depois, minha tia estava me ajudando a tirar as faixas, ainda
estava careca, mas vi a circunferência da cabeça e tive inúmeras ideias,
de passear, sair de casa”, afirma, aliviado, ao falar do isolamento
vivido desde o acidente. O boné, agora, deve ser guardado para dias de
sol.
Essa
sensação de alívio é a mesma de outro paciente já operado, Leandro
Margoto de Oliveira, 22, inspetor de alunos em Vargem Grande do Sul
(SP). Aos 15 anos, ele sofreu um grave acidente de bicicleta, ficou
internado em coma, quase sem esperanças de sobreviver. “Ele saiu da
minha cidade praticamente sem vida”, recorda a mãe dele, Maria
Auxiliadora Margoto.
Foram três
diferentes cirurgias ao longo de sete anos antes de receber a prótese de
titânio. Os médicos tentaram preservar a placa de osso retirada do
crânio, mas não houve sucesso no procedimento – o material, colocado no
abdômen dele, deteriorou-se e não pôde ser aproveitado. Outra placa
produzida em um tipo de polímero também não conseguiu reparar a região.
“Agora, quando falo do acidente, dizem que não saberiam dele se não
tivesse falado”, explica, ao lembrar-se que precisava responder,
diariamente, a inúmeras perguntas sobre sua aparência.
De
um garoto esportista e dedicado aos estudos, Margoto tornou-se um jovem
em reabilitação, para recuperar os movimentos, a capacidade de memória,
a aparência e a vida. Com o apoio da família, continuou estudando, faz
faculdade de direito e, no mês que vem, completará um ano depois da
cirurgia que reparou a deformidade craniana. O cabelo cresceu e, de
fato, não se percebe a prótese. Os movimentos e a memória já voltaram.
Como
resultado da cirurgia, retomou a natação e descreve com alegria a
possibilidade de nadar e mergulhar sem sentir as dores que antes o
incomodavam por causa de deformidade. “A autoestima é tudo. Ele está
muito feliz agora”, afirma a mãe dele.
Quem
desenvolve, não ensina, vende. Essa é tônica do mercado mundial quando
se trata de alta tecnologia. Em Campinas, pesquisadores do Biofabris
encontraram investimento para a aquisição de equipamentos de última
geração, mas tiveram de percorrer todo o processo para projetar,
construir e implantar próteses cranianas. O que isso representa para o
país? Algo imensurável, porque esse conhecimento, o domínio e o registro
científico de todo o processo, irá facilitar a obtenção de licenças
obrigatórias para a comercialização desse tipo de produto, como a
emitida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e
favorecer o surgimento de uma indústria nacional capaz de suprir a
demanda de pacientes no país.
A
avaliação é dos pesquisadores que trabalham com o projeto. “O objetivo
do instituto [Biofabris] é potencializar o desenvolvimento de tecnologia
e conhecimento, além de difundir no meio brasileiro o conhecimento e as
condições de fabricação”, afirma o médico Paulo Kharmandayan,
representante da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp no projeto. Ou
seja, toda a tecnologia e conhecimento agregada pelo estudo será
brasileira.
“Para
cada dificuldade encontrada, e o instituto já tem quase cinco anos,
desenvolvemos soluções brasileiras, para todas as etapas do processo.
Eventualmente, no futuro, poderemos até construir máquinas, desenvolver
novos materiais, dar início a um novo segmento industrial”, avalia
Rubens Maciel Filho, coordenador do Biofabris.
Graças
ao caráter multidisciplinar e à participação de várias instituições de
pesquisa do país, o Biofabris é um grande laboratório para múltiplas
pesquisas, de doutorado e mestrado, que ajudam a aprimorar os projetos
em andamento. Novos biomateriais, técnicas e empregos têm sido
desenvolvidos na sede da unidade, no campus da Unicamp, em Campinas.
Apenas
em relação a próteses, para se ter uma ideia do potencial a ser
incentivado nessa área, existem hoje no Brasil menos de mil empresas que
produzem órteses e próteses, segundo a Associação Brasileira de
Ortopedia Técnica (Abotec), para um contingente de 25 milhões de
brasileiros que precisam delas. Na Alemanha existem três vezes mais
empresas.
Fique por dentro
Biofabris
É
um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Biofabricação, de
caráter multidisciplinar, que tem como objetivo a integração de
ferramentas computacionais, síntese e desenvolvimento de novos
biomateriais, e aplicação de técnicas de engenharia para obtenção de
dispositivos biomédicos (próteses e órteses) e de substitutos biológicos
para tecidos vivos ou órgãos humanos defeituosos ou faltantes.
Parceiros na pesquisa
Unicamp
(FEQ, FCM, FEM e IF); Universidade de São Paulo (USP); Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp); Instituto de Pesquisas Nucleares (Ipen);
Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI); Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS); Instituto Nacional de Tecnologia (INT);
Instituto Federal de Ensino, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo
(IFES); Instituto Militar de Engenharia (IME); Universidade Federal do
Pará (UFPA); Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(Unesp)
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Texto: ALESSANDRO SILVA
Edição de Imagens: Diana Melo
Fonte: http://www.unicamp.br/unicamp/ju/572/laboratorio-testa-proteses-biofabricadas-em-humanos
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