por Marcos de Araújo Silva[1]
O Jornal do Mauss, anteriormente, divulgou aos leitores o Manifesto
dos Convivialistas (lançado em 30 de junho de 2013) e, agora, traz uma
recente entrevista do grande pensador francês Edgar Morin, um dos
signatários deste Manifesto que vislumbra, dentre outras coisas,
concatenar reflexões que permitam visualizar os pontos em comum que
existem no ambiente desta heterogênea e diversificada rede de levantes
populares que vêm sacudindo o mundo. Isso porque uma das principais
intenções dos convivialistas é possibilitar a percepção do grande
potencial que estas mobilizações sociais possuem, principalmente se as
suas similaridades – e não apenas as suas divergências – forem
percebidas e levadas em consideração pelos atores sociais em jogo e por
aqueles que se predispõem a refletir sobre tais mobilizações.
As recentes manifestações lideradas por jovens aqui no Brasil e em
países como Tunísia, Egito, Turquia, Espanha deixam claro que apesar das
suas particularidades, elas possuem importantes características que
lhes conferem uma relativa organicidade: isto é, o despertar de uma
consciência coletiva e transnacional, estruturada com base em
sentimentos contrários à manutenção do status quo
capitalista-neoliberal que, através das elites econômicas e políticas,
se faz presente na maioria dos países existentes na atualidade.
Impregnado pela nociva e destrutiva tríade individualismo-
consumismo-corrupção, tal status quo já vem sendo questionado
há décadas em “mobilizações de rua” feitas por segmentos acadêmicos e da
sociedade civil instigados por profundos sentimentos de injustiça, ódio
contra a arrogância dos poderes políticos e econômicos estabelecidos e
também por indignações diante de práticas endêmicas de corrupção e
expropriação dos bens públicos.
Contudo, apenas nos últimos anos, com o início da chamada “Primavera
Árabe” e, principalmente, no contexto histórico atual de crescente
popularização do acesso aos recursos midiáticos em geral e às redes
sociais da internet particularmente – que permitem a efetiva articulação
de grupos integrantes do que poderiamos chamar de “global civil
society” – estas mobilizações foram revestidas de novas matizes. Matizes
estas que instrumentalizaram diversos grupos de atores sociais a
perceberem seus anseios comuns e, com isso, vislumbrarem possíveis
articulações em torno de pautas para agendas internacionais. Nesse
sentido, tratam-se de ações que, efetivamente, podem alertar as
sociedades envolvidas e criar novos parâmetros de sociabilidade, através
do que pensadores de variadas nacionalidades como Alain Caillé,
Christophe Fourel, Ahmet Insel, Paulo Henrique Martins, Gus Massiah e
Patrick Viveret (entre outros) chamam de “convivialismo”.
No caso espanhol, por exemplo, os indignados se queixam,
especialmente, do fato de terem “deixado de ser ricos sem nunca terem
sido”, ou seja, a chamada “bolha imobiliária” que tanto enriqueceu os
cofres de banqueiros e de empresas multinacionais e que iludiu boa parte
da população com altos (e questionáveis) índices de crescimento
econômico, estourou deixando um país insolvente, com altíssimas taxas de
desemprego e que cada vez mais luta contra a “cultura do pelotazo”[2].
Não por acaso, boa parte das mesmas empresas/organizações e “agências
de risco” que tanto se beneficiaram da especulação imobiliária e
financeira agora apregoam que os países do Sul da Europa passaram a
integrar o “Sul do Mundo”, num claro projeto macro-econômico que
pretende defender (e justificar) a “tutela” destas nações por organismos
como a União Europeia ou o Fundo Monetário Internacional.
No Brasil, o estopim das manifestações populares se deram na cidade
de São Paulo com o “Movimento Passe Livre” (MPL), que defende a adoção
da tarifa zero para os transportes coletivos, e foram aos poucos se
alastrando por todo o território nacional. Assim, enquanto a maioria da
imprensa brasileira a princípio condenou fervorosamente os protestos (em
notória defesa dos interesses comerciais das empresas envolvidas)
alegando que os “vândalos e baderneiros” estariam promovendo “arruaças”
pelo aumento de 20 centavos na tarifa de transportes, os líderes do
movimento iniciaram, com êxito, campanhas nas redes sociais da internet
esclarecendo e conclamando a população a perceberem o óbvio, ou seja,
que todas aquelas mobilizações “não eram apenas por vinte centavos”, mas
sim pela luta por reconhecimento, justiça e dignidade social nos
diversos âmbitos da vida social, particularmente aqueles que fazem parte
do chamado Estado de bem-estar social (welfare state), isto é, saúde, educação formal, mercado de trabalho, segurança pública e mobilidade urbana.
Como veremos, aprofundando um pouco e também atualizando ideias já
expostas em obras anteriores, Edgar Morin defende que a ideia de
metamorfose seria capaz de “regenerar” o pensamento político tradicional
e conservador a fim de que a realidade social a nível planetário possa
ser mudada, que as pessoas possam reconhecerem-se apesar das suas
diferenças e que, dessa maneira, sejam construídas novas diretrizes de
pensamento: mais democráticas, menos imediatistas, menos nacionalistas e
que se desviem da atual onipresença dos interesses financeiros
hegemônicos. Um importante preceito de Morin que está subsumido em suas
obras mais famosas é o de que a sua Teoria da Complexidade se preocupa
não tanto com a procura e visualização de “novas realidades”, mas sim de
novas perspectivas, de novos olhares reflexivos que permitam uma melhor
compreensão das que já existem e que nos circundam. Isso porque é a
partir desta consideração que, na visão deste autor, possíveis
transformações “locais” poderão transpor fronteiras geográficas,
dialogar simetricamente com outras e se concatenar de alguma maneira a
elas – num processo dinâmico e democrático que permitirá a percepção de
novos horizntes para todos, em direção a um sentido de comunidade que
não se restringe a delimitações geopolíticas como Estado-nação, União
Europeia, “zonas econômicas” ou a qualquer outra nomenclatura que venham
a criar para “etiquetar” os seres humanos e lhes afastar da sua
natureza eminentemente orgânica e, por isso mesmo, consciente da
importância da solidariedade e do reconhecimento social (e porque não
fraterno) mútuo.
É por conta desta complexa circunscrição de fatores socioculturais, econômicos e (geo)políticos que o leitmotiv
presente no Manifesto dos Convivialistas e a admirável trajetória
acadêmica e intelectual de Edgar Morin apresentam profícuas sinergias
epistemológicas entre si: ambos possuem a similaridade de deixarem
evidentes aos seus leitores mais atentos que a possível apropriação de
teorias como as suas ou a mera reflexão sobre alguns dos seus pontos não
constituem um ato ideologicamente neutro, especialmente em virtude do
reconhecimento das relações entre ciência e poder, particularmente na
área das Ciências Sociais. Tal reconhecimento é importante, pois – como
os signatários do Manifesto Convivialista sugeriram – contribui tanto
para desvelar as dinâmicas relações de poder, quanto para revelar novas
possibilidades de articulação do saber científico e do chamado “saber
comum”. Assim, apenas visões não-compartimentalizadas acerca das
realidades sociais e que contemple os seus conflitos e controvérsias
inerentes, é que podem permitir uma compreensão das mudanças culturais e
ideológicas que circunscreveram a trajetória de Morin em particular ou
das atuais mobilizações populares mundo afora em geral. Ao evidenciar a
urgência de uma “tomada de posição” neste emblemático contexto
histórico-mundial, tais mobilizações suscitaram a articulação dos
pensadores que idealizaram e assinaram o Manifesto Convivialista.
Dessa forma, assim como a Teoria da Complexidade de Morin, o grupo
dos convivialistas (do qual o próprio Morin faz parte) convida para o
que podemos chamar de um “viver científico” que é dialógico, simétrico,
participativo e no qual a crescente pluralização das arenas e expressões
dos conflitos sociais é refletida tendo os seus protagonistas/agentes
como efetivos interlocutores, e também como parceiros destes
heterogêneos, difíceis, porém já iniciados processos de eminente mudança
social. Sintam-se todos partícipes destes processos. Afinal de contas,
daqui pra frente aqueles que lutam ou vierem a lutar por mais
solidariedade e por mais justiça social, são todos, de certa forma,
convivialistas.
[1]
Pesquisador do NUCEM e do NESG/UFPE, Pesquisador Colaborador do
Departamento de Sociologia e Análise das Organizações da Universitat de
Barcelona. E-mail: marcosimonstock@gmail.com
[2]
Na Espanha, este termo designa iniciativas ou negócios de legalidade
duvidosa nos quais algumas pessoas lucram muito e de uma maneira rápida.
Na linguagem popular, pelotazo é utilizado como sinônimo de golpe ou de qualquer prática na qual exista indício de corrupção.
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TRIBUNES - le 19 Juillet 2013
Penser un monde nouveau 5/34
Edgar Morin: “A ideia de metamorfose basicamente diz que tudo deve mudar” (PT)
Palavras-chave: Edgar Morin, manutenção, sociologia, pensar um mundo novo mundo,
Se o mundo tal como ele é vem produzindo desastres, Edgar
Morin convida a acreditar que “o improvável benéfico” pode acontecer.
Para o sociólogo, a mudança irá ocorrer em uma escala global.
Edgar Morin é um pensador que viaja pelo mundo por prazer: conhecedor
da América Latina, ele é regularmente convidado para realizar
conferências pelos quatro cantos do planeta, e com isso, viaja pelo
mundo divulgando seu pensamento. Sociólogo, filósofo e antropólogo, ele é
fascinado pelos olhares transversais, que se cruzam para confrontar o
conhecimento e questionar as disciplinas.
Nascido em 1921, Edgar Morin iniciou na Resistência[1]
aos vinte anos, quando ingressou no Partido Comunista Francês em 1941,
antes de ser expulso sob a acusação de ter se distanciado do stalinismo.
Em 1950, ingressou no CNRS (Centre National de la Recherche
Scientifique/Centro Nacional de Pesquisa Científica) e foi nomeado
Diretor de Pesquisa deste Centro em 1970. Este pensador inclassificável é
também um homem engajado, um ativista.
Muito cedo, Edgar Morin conclamou a necessidade de “cruzar
conhecimentos”. Esta é a sua marca registrada, que o levou a desenvolver
o conceito de “pensamento complexo”, entendido como “aquele que é
elaborado junto” e que foi iniciado no livro “Ciência com Consciência”
de 1982. Nos seis volumes da sua obra “Método” (1977-2004), que conta
com os sugestivos títulos de “Vida da Vida”, “Conhecimento do
conhecimento” ou ainda “Humanidade da humanidade”, ele explica os
desafios da complexidade.
Observador dos distúrbios do mundo, Edgar Morin produz uma reflexão
na qual o fio de Ariadne procura um caminho para o futuro. “Estamos
caminhando rumo a um conjunto de catástrofes? Isto é o que parece
provável se não conseguirmos mudar o rumo das coisas”, questiona ele em
“O Caminho da Esperança”, escrito em 2011.
Você acabou de assinar com dezenas de outros intelectuais, o
Manifesto dos convivialistas, que se propõe a tentar definir uma
filosofia comum para movimentos tão diversos como são os
antiglobalização, os indignados espanhóis, o slow food ou os da economia social e solidária. Você acha que essas iniciativas estão delineando o futuro?
Edgar Morin: Os movimentos existem, mas eles não têm
conseguido uma convergência entre si. Todas estas iniciativas formam
uma constelação, mas que ainda não estão organicamente relacionadas umas
com as outras. O Manifesto dos convivialistas, que eu efetivamente
assinei, faz parte desta perspectiva. Precisamos reintroduzir a
convivialidade em nossa sociedade. “Convivialismo” é um bom termo, mas
não cobre todo o problema, que é complexo. Eu atribuo grande importância
ao pensamento de Ivan Illich, um dos pensadores da nossa civilização
que, na década de 1970, fez uma crítica da nossa civilização bastante
radical, tanto em termos de industrialização, quanto em termos dos
padrões de consumo, educação, etc. Entretanto, estamos em um momento na
história em que tudo é problemático: a dominação do capitalismo
financeiro, a agricultura e a pecuária industrializadas, cujos consumos
levam a efetivas intoxicações. As instituições globais tornaram-se
completamente insuficientes, impotentes e arbitrárias, como a ONU, ou
desviadas, como o FMI. A política chegou a um nível zero de pensamento.
Diante desta situação, nós deveríamos irradiar mais pessimismo ou mais otimismo?
Edgar Morin: Devemos procurar um novo caminho. Eu
desenvolvi a ideia de uma metamorfose para dizer que, basicamente, tudo
deve mudar. Países latino-americanos como Equador e Bolívia têm
desenvolvido uma política do “buen vivir”. Esta é uma ideia pra ser
levada adiante. “Bem-viver” é uma bela palavra cujo significado foi
completamente desvirtuado. O problema não é apenas alcançar um nível de
conforto com bens materiais tais como uma televisão, um refrigerador ou
um carro. Isto é importante. Mas o que importa, acima de tudo, no
sentido do “buen vivir” baseia-se na realização de um desenvolvimento
pessoal dentro de um desenvolvimento coletivo, de uma comunidade
fraternal. O desejo de uma outra vida através da história. Ele tem sido
incorporado ao longo dos tempos na ideia de paraíso. Então, esse desejo
desceu para a terra com a Revolução Francesa, com o socialismo e com
Karl Marx. Minha ideia é permitir a conexão entre três fontes: a
libertária para o indivíduo, a socialista para melhorar a sociedade, a
comunista para viver em comunidade, e eu adicionaria a vertente
ambientalista. O desejo por uma outra vida através do socialismo tem
sido enfraquecido. O comunismo, cujos ideais levantaram a juventude em
maio de 68, foi desviado. Tal desejo por uma outra vida agora anima os
jovens da Primavera Árabe, os do movimento Occupy Wall Street
nos EUA, os Indignados espanhóis, os manifestantes no Brasil. Mas para
chegar a uma mudança de rumo, lhes faltam o pensamento político. As
pessoas estão frustradas, resignadas, sem esperança. Isso é verdade, mas
isso ocorre principalmente porque ainda não houve uma chama digna de
confiança.
Basicamente, o que é uma sociedade convivial? Uma sociedade
na qual a cooperação entre os homens têm precedência sobre a exploração
do homem pelo homem?
Edgar Morin: O filme de Vittorio De Sica, Milagre em
Milão, termina com a ideia de uma sociedade onde todo mundo diz “olá”
para o outro. Em uma sociedade convivial, as pessoas não são anônimas,
elas se cruzam e se reconhecem. Não se trata apenas de civilidade ou
cortesia. O outro existe e ele é reconhecido como diferente de você, mas
também como semelhante a você. Essa necessidade de reconhecimento
existe em todos os seres humanos. Aqueles que são privados disso porque
são humilhados, escravizados ou dominados, sofrem. Nas administrações,
nas empresas, em todos os lugares, as pessoas estão separadas umas das
outras. Na verdade, poderíamos falar da necessidade de “confiança”.
Estar conectado ao seu vizinho ao nível do indivíduo, vila ou
cidade é fácil de imaginar. Mas em um nível mundial, não teria que se
partir do conceito de que você colocaria tal conexão na frente da “terra
pátria”?
Edgar Morin: Em todo ser humano, existem dois
princípios fundamentais. Primeiro, o “eu” egocêntrico e vital para nos
defender diante da adversidade. Mas também o “nós” que floresce através
da família, dos amigos, nos partidos políticos, na religião, etc. Nossa
civilização supervalorizou o “eu” e menosprezou o “nós”. Precisamos
mudar este curso e desenvolver um “nós” novamente. A antiga visão se
voltava contra o inimigo, contra o invasor. Em todo o mundo de hoje, a
convivialidade é descrita como a percepção de que nós, seres humanos,
possuímos um destino comum. Estamos na mesma aventura, vamos para o
mesmo abismo, e nós devemos reagir juntos e em uma escala global. A
questão é como salvar a nossa terra pátria da destruição. Nós somos
produtos de uma evolução biológica, que foi construída ao longo de dois
bilhões de anos e que a espécie chamada Homo sapiens usou demasiadamente
mal. Essa identidade comum produz diferenças. A palavra “pátria” remete
à sensibilidade, ao ato de confraternizar-se. É concebível que, no
Respeito de todas as diversidades nacionais e culturais, pudéssemos ter
condições, contudo, de insistir na unidade. Porque existem aqueles que
percebem a diversidade humana esquecendo a unidade. E há aqueles que
veem a noção de unidade como uma concepção abstrata que esqueceria a
diversidade humana. A globalização tecno-econômica de hoje ignora a
diversidade de culturas e a sensibilidade das pessoas. No entanto, se a
“terra pátria” inclui pátrias, então a diversidade humana é o tesouro da
unidade humana e a unidade é o tesouro da diversidade.
Há momentos na história da humanidade em que acontecem
mudanças de rumo, bifurcações. Que indícios você vê de que nós realmente
estaríamos vivendo numa fase deste tipo?
Edgar Morin: Estamos em uma situação em que as
coisas não são formadas a priori, não sabemos nem quando e nem como o
momento de mudança chega. O mundo está em efervescência. Nós não sabemos
o que pode surgir disso. Os ímpetos de morte e destruição são muito
fortes. Mas isso não deveria fazer com que deixássemos de ter esperança.
Existem muitos conflitos que podem disseminar uma conflagração geral.
Cada um é como uma árvore. O vento espalha as sementes. Quando caem em
solo fértil, eles crescem. Na Índia, as reflexões do príncipe Buda
Shakyamuni sobre o sofrimento humano e a verdade deram origem a uma
religião que une milhões de pessoas. Em outro domínio, Marx e Proudhon
foram considerados, pela intelligentsia das suas épocas, como marginais e
desviantes antes dos seus pensamentos permitirem o surgimento de
consideráveis forças políticas.
Mesmo que o futuro próximo não forneça otimismo, ainda assim
você afirma que o improvável benéfico acontece. Em sua opinião, as
revoluções árabes são sinais de que o improvável pode se tornar
provável?
Edgar Morin: A Primavera Árabe, especialmente na
Tunísia e no Egito, são movimentos muito importantes, pacíficos. Mas, no
momento, o que vem se originando dela em termos de processos eleitorais
tem sido tanto coisas positivas, quanto coisas negativas. A maioria dos
partidos de esquerda era perseguido pelos regimes ditatoriais. Isso fez
com que eles muitas vezes perdessem o contato com o povo. Os islamistas
então tiveram a opção de votar e eleger a si próprios, e assim ocorreu.
Mas isso não diminui a importância do evento. Hoje, as pessoas são
capazes de vencer o presidente Morsi. Mas a oposição é muito
heterogênea. A Primavera Árabe representa um despertador original que
irá fecundar o futuro, mas eu não sei exatamente como.
Os manifestantes responsáveis pela Primavera Árabe
descreveram seu movimento de “revolução”. Você optou por abandonar este
termo e prefere se referir a este movimento como metamorfose. O que é
exatamente esse conceito?
Edgar Morin: Ele nos permite pensar na metáfora da
lagarta ainda presa dentro no casulo e pronta para se tornar uma
borboleta. Ela se destrói completamente para se tornar outra. Na
história da humanidade, o mundo está repleto de metamorfoses. A próxima
metamorfose acontecerá num nível planetário. O conjunto das relações, as
organizações, tudo vai mudar e neste momento atual, é impossível prever
que forma terá esta nova sociedade mundial. Abandonei a ideia da
revolução por duas razões. A primeira diz respeito ao objetivo de não
mais dar credibilidade à ideia de que “fazemos do passado uma tábula
rasa”. Precisamos de todas as culturas do passado, de todas as
conquistas do pensamento passado. A ideia de metamorfose envolve tanto a
ruptura, quanto a continuidade. A segunda razão é que eu queria deixar
para trás a ideia de que a revolução teria mais aspectos autênticos do
que violentos. A violência às vezes é inevitável, mas é um erro pensar
que ela é justificável e necessária já que, em seguida, ela acarreta
mais violência.
O tratamento imposto à Grécia e os planos de austeridade que
levam à recessão alimentam uma rejeição da Europa em grandes segmentos
da população. A Europa ainda pode desempenhar um papel significativo na
política de civilização que você defende?
Edgar Morin: A crise econômica revelou uma crise que
já havia antes. A Europa se desenvolveu economicamente, mas sem uma
unidade fiscal e continuou a ser um anão político, incapaz de conduzir a
ideia de sua origem: se unir pela paz e de acordo com as
características comuns das civilizações. Diante deste vazio, existe hoje
então um perigo real. A Alemanha tornou-se o poder político dominante e
impôs aos outros o falso remédio da austeridade. Para mim, atualmente
existem dois sinais de alerta. As respostas que estão sendo dadas ao
domínio do neoliberalismo econômico produzem o caos na Grécia e conduzem
a Hungria a um novo sistema autoritário, que ainda não podemos chamar
de fascista, mas que é perigoso.
Na França, você recentemente conclamou o presidente da República (François Hollande) a mudar de rumo. O que você pensa sobre a situação?
Edgar Morin: Digamos que, neste momento, eu esteja
esperando. Eu não estou desesperado ainda. Quero expressar uma crítica
construtiva. Trata-se de uma situação que eu chamo de “livro dos
sintomas inquietantes”. Nós encontramos as mesmas pessoas em gabinetes
ministeriais, que emitem os mesmos relatórios e que pensam a política a
partir de idéias já internalizadas acerca de crescimento e
competitividade. O presidente da República vai ter que entender que
devemos mudar de rumo e que o longo caminho para a verdadeira renovação
que se abre é o da economia verde. A falta de reflexão sobre o mundo
contemporâneo e a crise atual da humanidade nesta era da globalização
são fatores que conduzem a uma visão míope, que frequentemente
sugestionam a responsabilizar os partidos políticos.
Você fala de regenerar o pensamento político. O que quer dizer com isso?
Edgar Morin: Os políticos vivem o seu dia a dia.
Eles não têm uma visão global. Obviamente, eles não devem ser condenados
a virarem sonâmbulos, mas me parece útil que eles se esforcem e comecem
a desenvolver um pensamento político que saiba reunir diversos
conhecimentos. Tomemos como exemplo a globalização. Ela é tanto um
processo econômico, quanto demográfico, sociológico, psicológico,
religioso, etc. Todos os pensamentos interferem uns nos outros. Os
eventos também. Em 2001, vimos que um grupo político marginal e
minoritário, a Al-Qaeda conseguiu destruir duas torres em uma cidade,
Nova Iorque, e a consequência é uma conflagração mundial. As partes
estão no todo, assim como o todo está nas partes. O mundo somos nós. E
este fato leva a uma maneira muito diferente de pensar: complexa, de
longo prazo e não maniqueísta. O mundo necessita da globalização (as
culturas, por exemplo) e ao mesmo tempo, de uma desglobalização (o caso
da agricultura). Ou seja, o mundo precisa, simultaneamente, de
crescimento e de decrescimento. Ele deve se desenvolver, a fim de que
todos possam se beneficiar do progresso positivo, e também deve envolver
as pessoas de modo contínuo a fim de que elas se sintam como
pertencentes a uma comunidade. Esse é o sentido de um pensamento
político que poderia nos conduzir a uma metamorfose, a uma mudança de
direção.
Tradução para o português: Marcos de Araújo Silva
[1] A Resistência Francesa, chamada na França de La Résistance,
designa o conjunto de movimentos e redes que durante a Segunda Guerra
Mundial prosseguiu a luta contra o Eixo e os seus delegados
colaboracionistas desde o armistício de 22 de Junho de 1940 até a
Liberação em 1944.
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Fonte: http://www.jornaldomauss.org/periodico/?p=2619
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