RICARDO BINS DI NAPOLI*
Filósofo australiano aborda questões controversas como aborto, eutanásia, desobediência civil e direitos dos animais
Certamente
Peter Singer está entre os filósofos que, como Kwame Anthony Appiah,
conseguiram muito atrair a atenção do público leigo, tanto de seus
países como de muitos outros, onde suas obras tornaram-se conhecidas e
traduzidas. Sua atuação foi importante tanto em termos acadêmicos como
em termos sociais. Menciono em particular o seu papel na fundação da
revista internacional Bioethics e o apoio para a criação da
International Association of Bioethics (1992).
Singer nasceu em Melbourne (Austrália) em 1946. Filho de pais austríacos de origem judaica, imigrantes que chegaram ao novo país em 1938, fugindo da anexação nazista da Áustria. O pai, que vivia da comercialização de café, levou algum tempo para dar o sustento que queria para sua família, pois os australianos estavam habituados a tomar chá. Neste ínterim, sua mãe, formada pela escola médica de Viena, pôde trabalhar – após ser aprovada nos duros exames para obter a licença para exercer a profissão na Austrália – e, ao contrário de muitas mulheres de sua época, prover o sustento da família na “nova terra”.
A partir da autobiografia de Peter Singer se pode afirmar que sua verdadeira carreira filosófica começou em Oxford (Reino Unido), após ter concluído o seu curso superior em Arts/Law em Melbourne. Em Oxford, onde chegou em outubro de 1969, ele conheceu e estudou com importantes nomes da filosofia, como A. J. Ayer (1910 – 1989), Stuart Hampshire (1914 – 2004), P. F. Strawson (1919 – 2006), figuras dominantes na época no campo da lógica e da metafísica. Sua formação foi determinada também por outros professores de enorme influência na filosofia contemporânea, como R. M. Hare (1919 – 2002), H. L. Hart (1907 – 1992), Sir Isaiah Berlin (1909 – 1997), John Plamenatz (1912 – 1975), Antony Quinton (1925 – 2010), Gareth Evans (1946 – 1980), Derek Parfit e Jonathan Glover, que se dedicaram muito à filosofia moral e política.
Nos anos em que esteve em Oxford, o tratamento eticamente injustificado dado aos animais pelo homem e a fome no mundo tornaram-se temas da reflexão de Singer no nível filosófico. Posteriormente, ele abordou vários problemas morais tais como: o valor moral da vida e o morrer; o aborto; a eutanásia; a alimentação; o meio ambiente; a democracia e a desobediência civil; a discriminação, entre outros. Singer construiu seus argumentos com consistência lógica e clareza como uma filosofia prática ou “ética aplicada”.
Vejamos brevemente alguns elementos dela. Primeiro, Singer procura limpar o terreno. Para isso, diz que sua ética não é religiosa. Ele refuta, também, outros pontos de vista sobre a moralidade. Não concorda, por exemplo, com o ponto de vista relativista, que afirma que nossos valores são absolutamente relativos às nossas culturas. Rejeita igualmente o “subjetivismo”, que assevera que nossos pontos de vista morais são sempre tão pessoais que a discussão sobre o que é “bom” ou “certo” moralmente estaria restrita às nossas opiniões pessoais particulares. Neste caso, nossas ideias morais seriam como o “gosto” (estético): ficariam restritas puramente ao domínio individual, de modo que, quando duas pessoas dialogam sobre assuntos morais, elas de fato expressam seus pontos de vista, mas não pretendem jamais chegar seriamente a uma conclusão sobre o que justamente “deve” ser feito. Tudo se passa como se cada um “respeitasse” a opinião alheia a ponto dos temas nem poderem ser objetos de discussão. Seria como o diálogo de um gremista e um colorado.
Singer não aceita também o emotivismo, que advoga que as nossas atitudes morais de expressar louvor ou censura para os atos de agentes humanos (socialmente inseridos) são apenas formas emocionais de expressar a nossa aceitação ou discordância com as atitudes dos outros. Seria como bater palmas para o que é bom ou vaiar, para expressar o mal. Os emotivistas como Ayer, entretanto, não concordam com os subjetivistas.
Realizada esta tarefa, Singer identificou que em algumas das teorias morais há uma característica comum importante. Ela reside no fato de que para julgarmos moralmente os atos dos outros precisamos de um ponto de vista que transcenda o nosso olhar subjetivo, ou pessoal. Este olhar é o que nos permite nos imaginar em uma perspectiva universal, saindo-se do olhar parcial, pessoal, para o mais imparcial ou impessoal. Esse aspecto, nós sinalizamos aos outros, pela linguagem. Assim, dizemos: “Fulano(a), te coloca no lugar dele(a); quem não faria o mesmo [a mesma ação moral] no lugar dele”?
Singer desenvolveu, por fim, sua própria teoria moral. Ela parte de um princípio chave, o “princípio da igual consideração de interesses”. Devemos entender este princípio admitindo-se que todos agentes humanos e alguns não-humanos têm interesses. O interesse básico, para Singer, resgatando um aspecto da teoria moral de Bentham (1748 – 1832), seria o de aumentar o prazer e reduzir a dor e o sofrimento. Os seres que sentem dor possuem sistema nervoso central e, por isso, foram chamados de seres sencientes.
Ora, o princípio da igual consideração de interesses indica que devemos, se quisermos agir moralmente, considerar igualmente os interesses de todos os seres vivos (homens e animais) sencientes. O interesse inclui tudo aquilo que as pessoas desejam ou preferem. Tal princípio, então, nos leva a ter que ampliar o grupo de indivíduos que fazem parte do conjunto dos indivíduos moralmente relevantes. A este se dá o nome de comunidade moral. Aos indivíduos de uma comunidade moral se dá o nome de pessoas.
Assim, em uma decisão ética, os interesses de uns devem ser compatíveis com os dos outros. Em circunstâncias incomuns, por consequência, é preciso optar pela alternativa de ação cujos resultados maximizem os interesses (ou preferências) de todos os envolvidos.
O pensamento de Singer, evidentemente, foi sempre objeto de controvérsias. Uma delas diz respeito à ampliação da comunidade moral. Deixo ao leitor a dúvida. Será que animais não humanos sencientes realmente podem ser aceitos nesta comunidade, antes limitada apenas aos homens?
Singer nasceu em Melbourne (Austrália) em 1946. Filho de pais austríacos de origem judaica, imigrantes que chegaram ao novo país em 1938, fugindo da anexação nazista da Áustria. O pai, que vivia da comercialização de café, levou algum tempo para dar o sustento que queria para sua família, pois os australianos estavam habituados a tomar chá. Neste ínterim, sua mãe, formada pela escola médica de Viena, pôde trabalhar – após ser aprovada nos duros exames para obter a licença para exercer a profissão na Austrália – e, ao contrário de muitas mulheres de sua época, prover o sustento da família na “nova terra”.
A partir da autobiografia de Peter Singer se pode afirmar que sua verdadeira carreira filosófica começou em Oxford (Reino Unido), após ter concluído o seu curso superior em Arts/Law em Melbourne. Em Oxford, onde chegou em outubro de 1969, ele conheceu e estudou com importantes nomes da filosofia, como A. J. Ayer (1910 – 1989), Stuart Hampshire (1914 – 2004), P. F. Strawson (1919 – 2006), figuras dominantes na época no campo da lógica e da metafísica. Sua formação foi determinada também por outros professores de enorme influência na filosofia contemporânea, como R. M. Hare (1919 – 2002), H. L. Hart (1907 – 1992), Sir Isaiah Berlin (1909 – 1997), John Plamenatz (1912 – 1975), Antony Quinton (1925 – 2010), Gareth Evans (1946 – 1980), Derek Parfit e Jonathan Glover, que se dedicaram muito à filosofia moral e política.
Nos anos em que esteve em Oxford, o tratamento eticamente injustificado dado aos animais pelo homem e a fome no mundo tornaram-se temas da reflexão de Singer no nível filosófico. Posteriormente, ele abordou vários problemas morais tais como: o valor moral da vida e o morrer; o aborto; a eutanásia; a alimentação; o meio ambiente; a democracia e a desobediência civil; a discriminação, entre outros. Singer construiu seus argumentos com consistência lógica e clareza como uma filosofia prática ou “ética aplicada”.
Vejamos brevemente alguns elementos dela. Primeiro, Singer procura limpar o terreno. Para isso, diz que sua ética não é religiosa. Ele refuta, também, outros pontos de vista sobre a moralidade. Não concorda, por exemplo, com o ponto de vista relativista, que afirma que nossos valores são absolutamente relativos às nossas culturas. Rejeita igualmente o “subjetivismo”, que assevera que nossos pontos de vista morais são sempre tão pessoais que a discussão sobre o que é “bom” ou “certo” moralmente estaria restrita às nossas opiniões pessoais particulares. Neste caso, nossas ideias morais seriam como o “gosto” (estético): ficariam restritas puramente ao domínio individual, de modo que, quando duas pessoas dialogam sobre assuntos morais, elas de fato expressam seus pontos de vista, mas não pretendem jamais chegar seriamente a uma conclusão sobre o que justamente “deve” ser feito. Tudo se passa como se cada um “respeitasse” a opinião alheia a ponto dos temas nem poderem ser objetos de discussão. Seria como o diálogo de um gremista e um colorado.
Singer não aceita também o emotivismo, que advoga que as nossas atitudes morais de expressar louvor ou censura para os atos de agentes humanos (socialmente inseridos) são apenas formas emocionais de expressar a nossa aceitação ou discordância com as atitudes dos outros. Seria como bater palmas para o que é bom ou vaiar, para expressar o mal. Os emotivistas como Ayer, entretanto, não concordam com os subjetivistas.
Realizada esta tarefa, Singer identificou que em algumas das teorias morais há uma característica comum importante. Ela reside no fato de que para julgarmos moralmente os atos dos outros precisamos de um ponto de vista que transcenda o nosso olhar subjetivo, ou pessoal. Este olhar é o que nos permite nos imaginar em uma perspectiva universal, saindo-se do olhar parcial, pessoal, para o mais imparcial ou impessoal. Esse aspecto, nós sinalizamos aos outros, pela linguagem. Assim, dizemos: “Fulano(a), te coloca no lugar dele(a); quem não faria o mesmo [a mesma ação moral] no lugar dele”?
Singer desenvolveu, por fim, sua própria teoria moral. Ela parte de um princípio chave, o “princípio da igual consideração de interesses”. Devemos entender este princípio admitindo-se que todos agentes humanos e alguns não-humanos têm interesses. O interesse básico, para Singer, resgatando um aspecto da teoria moral de Bentham (1748 – 1832), seria o de aumentar o prazer e reduzir a dor e o sofrimento. Os seres que sentem dor possuem sistema nervoso central e, por isso, foram chamados de seres sencientes.
Ora, o princípio da igual consideração de interesses indica que devemos, se quisermos agir moralmente, considerar igualmente os interesses de todos os seres vivos (homens e animais) sencientes. O interesse inclui tudo aquilo que as pessoas desejam ou preferem. Tal princípio, então, nos leva a ter que ampliar o grupo de indivíduos que fazem parte do conjunto dos indivíduos moralmente relevantes. A este se dá o nome de comunidade moral. Aos indivíduos de uma comunidade moral se dá o nome de pessoas.
Assim, em uma decisão ética, os interesses de uns devem ser compatíveis com os dos outros. Em circunstâncias incomuns, por consequência, é preciso optar pela alternativa de ação cujos resultados maximizem os interesses (ou preferências) de todos os envolvidos.
O pensamento de Singer, evidentemente, foi sempre objeto de controvérsias. Uma delas diz respeito à ampliação da comunidade moral. Deixo ao leitor a dúvida. Será que animais não humanos sencientes realmente podem ser aceitos nesta comunidade, antes limitada apenas aos homens?
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RICARDO BINS DI NAPOLI | Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFSM
Acontece que nem todos compreendem esta matemática tão simples que nos levaria a ajudar os outros “without major sacrifices”, isto é, sem sacrifícios de monta. No livro Princípios de Ética Biomédica, de Beauchamp & Childress, bíblia dos Kennedianos de Georgetown, obra mestra do “principialismo”, os autores descobriram uma outra matemática, acreditando, por suas contas, que tal medida prejudicaria gravemente a alguns (os mais pobres – ou os mais ricos?), e o dizem, inclusive, após terem citado por extenso a bela parábola do Bom Samaritano! Tudo se passa como se os dois autores daquela universidade jesuíta tivessem copiado e colado a parábola sem lê-la. No livro deles, é dito com todas as letras que, se um ônibus parasse junto a um acidente de trânsito e os passageiros vissem um acidentado precisando de socorro, um médico que viajasse no coletivo não teria uma obrigação maior de ajudá-lo do que um advogado ou um estudante. À luz do contratualismo dos americanos, a obrigação médica só valeria depois de estabelecida uma relação de tipo profissional! Talvez por isso o Prof. Pellegrino, colega deles, mas com outra visão, propunha que se redefinisse o profissionalismo...
Por suas origens familiares (com três avós nos campos de concentração), Singer está vinculado a uma inspiração bíblica, e ele vê os seres humanos como iguais e companheiros de viagem. Sempre esteve menos preocupado com nossas diferenças frente aos animais não humanos, e mais com os aspectos que temos em comum, nós humanos, entre nós, e nós humanos com os não humanos, que fazem parte também de nosso mundo (ou da criação). Prefere defender a vida dos que estão a morrer de fome e querem viver, em vez de insistir numa obrigação de prolongar a vida de quem não quer mais viver, ou em vez de se por a condenar jovens que de alguma maneira são levadas, pelas misérias da vida, a abortar. Por isso tenta repensar a vida e a morte.
O que lhe interessa é a consciência de um dever moral: devemos sim, podendo, ajudar os outros. O modo e a motivação imediata não são as questões mais importantes para sua filosofia de tipo utilitarista: o resultado é o que mais interessa, um mundo melhor, com menos sofrimento. A diminuição real do sofrimento importa mais do que a pureza da intenção, ao menos numa condição de calamidade mundial como a nossa, se olhamos um pouco mais para longe. Até o papa Francisco fez um aceno nesta direção, em sua entrevista recente no Rio de Janeiro: se há crianças sem comida e sem escola, o que interessa, em primeiro lugar, é que tenham comida e tenham escola (se é dos católicos, dos evangélicos, dos judeus, isto interessa menos ao atual papa).
Mas algum leitor pode achar que um professor de Filosofia, de Ética ou de Bioética deveria manter maior distância em relação à Bíblia, ao Papa e à religião. Sem problemas: apelemos para um grande e inquestionável filósofo, apelemos para a moral kantiana! Como muitos sabem, a distância entre os utilitaristas, preocupados com o sofrimento, a felicidade e o resultado até quantitativo (“a maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas”) e, por outro lado, o rigorismo da vontade boa de um Kant, é imensa. O que interessa, para Kant, é que cumpramos nosso dever, e se os resultados concretos e históricos de nossas ações bem intencionadas não dependem totalmente de nós, então não deveríamos nos preocupar com este aspecto. Kierkegaard, na mesma linha, mas radicalizando um dever de amar – que valeria para Kant só como um amor prático, não ligado a paixões –, diz até que se um ladrão roubasse do templo a esmolinha da pobre viúva, mesmo assim ela ainda teria sido a que deu mais, pois dera tudo o que tinha (talvez mais do que o dízimo defendido por Singer).
Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, nos brinda com quatro exemplos do que seriam deveres a cumprir. E o quarto trata da ajuda aos demais. Em termos puramente racionais, ele supõe que o mundo não acabaria se ninguém ajudasse ninguém, se imperasse um egoísmo do cada um por si, mas um egoísmo franco e sem hipocrisia. Só que, diz então Kant, não é possível querermos ver proibida por lei a mão estendida ao outro, pois ninguém desejaria viver num mundo assim. Ele conclui então que devemos ajudar os necessitados, se o pudermos sem sacrifícios que criassem um mal maior no mundo. É bem por aí que vai a lógica da ética de Singer. Sacrifícios precisam ser feitos, mas há que ponderá-los: conforme um exemplo seu, se um professor se dirige à escola e vê uma criança se afogando num chafariz, pode e deve ajudar, mesmo que com isso venha a molhar um pouco as suas roupas. Deixar a criança sem o auxílio provocaria um mal muito maior. Vemos que a filosofia pode ser séria e profunda sem precisar ser complicada. É outra lição que Peter Singer nos dá.
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ALVARO VALLS | Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Unisinos
A matemática do altruísmo
ALVARO VALLS*
Singer discute a consciência do dever moral de cada um para com o outro
Num congresso de bioética realizado há alguns anos em Brasília, em que depois levaram Peter Singer, vegetariano convicto (cujas ideias inspiraram o filme australiano Babe, o Porquinho Atrapalhado), a comer na churrascaria Porcão, vimos como ele aceitava de modo singelo ser fotografado junto a seus leitores de nosso continente. Minha filha bióloga, interessada em bioética, quis fotografar-nos também. Como pretexto, perguntei ao filósofo australiano se sua proposta, de que 10% do que possuímos deveria, por uma obrigação moral, ser doado a pessoas que estejam em condições econômicas mais precárias, seria mesmo de 10%, ao pé da letra. Pergunta simples e objetiva, que podia ser respondida no claro idioma alemão, que ali utilizamos. Como eu esperava, replicou que podia ser também nove ou onze por cento, pois o importante não era o número, mas o sentido de obrigação. Confirmei assim, de viva voz ou em primeira mão, uma tese tão simples quanto prenhe de consequências: se todos, ricos ou pobres, dedicassem a décima parte de suas posses aos mais necessitados, todo mundo viveria muito melhor, ninguém ficando realmente pior, pois todos manteriam seus 90%.Acontece que nem todos compreendem esta matemática tão simples que nos levaria a ajudar os outros “without major sacrifices”, isto é, sem sacrifícios de monta. No livro Princípios de Ética Biomédica, de Beauchamp & Childress, bíblia dos Kennedianos de Georgetown, obra mestra do “principialismo”, os autores descobriram uma outra matemática, acreditando, por suas contas, que tal medida prejudicaria gravemente a alguns (os mais pobres – ou os mais ricos?), e o dizem, inclusive, após terem citado por extenso a bela parábola do Bom Samaritano! Tudo se passa como se os dois autores daquela universidade jesuíta tivessem copiado e colado a parábola sem lê-la. No livro deles, é dito com todas as letras que, se um ônibus parasse junto a um acidente de trânsito e os passageiros vissem um acidentado precisando de socorro, um médico que viajasse no coletivo não teria uma obrigação maior de ajudá-lo do que um advogado ou um estudante. À luz do contratualismo dos americanos, a obrigação médica só valeria depois de estabelecida uma relação de tipo profissional! Talvez por isso o Prof. Pellegrino, colega deles, mas com outra visão, propunha que se redefinisse o profissionalismo...
Por suas origens familiares (com três avós nos campos de concentração), Singer está vinculado a uma inspiração bíblica, e ele vê os seres humanos como iguais e companheiros de viagem. Sempre esteve menos preocupado com nossas diferenças frente aos animais não humanos, e mais com os aspectos que temos em comum, nós humanos, entre nós, e nós humanos com os não humanos, que fazem parte também de nosso mundo (ou da criação). Prefere defender a vida dos que estão a morrer de fome e querem viver, em vez de insistir numa obrigação de prolongar a vida de quem não quer mais viver, ou em vez de se por a condenar jovens que de alguma maneira são levadas, pelas misérias da vida, a abortar. Por isso tenta repensar a vida e a morte.
O que lhe interessa é a consciência de um dever moral: devemos sim, podendo, ajudar os outros. O modo e a motivação imediata não são as questões mais importantes para sua filosofia de tipo utilitarista: o resultado é o que mais interessa, um mundo melhor, com menos sofrimento. A diminuição real do sofrimento importa mais do que a pureza da intenção, ao menos numa condição de calamidade mundial como a nossa, se olhamos um pouco mais para longe. Até o papa Francisco fez um aceno nesta direção, em sua entrevista recente no Rio de Janeiro: se há crianças sem comida e sem escola, o que interessa, em primeiro lugar, é que tenham comida e tenham escola (se é dos católicos, dos evangélicos, dos judeus, isto interessa menos ao atual papa).
Mas algum leitor pode achar que um professor de Filosofia, de Ética ou de Bioética deveria manter maior distância em relação à Bíblia, ao Papa e à religião. Sem problemas: apelemos para um grande e inquestionável filósofo, apelemos para a moral kantiana! Como muitos sabem, a distância entre os utilitaristas, preocupados com o sofrimento, a felicidade e o resultado até quantitativo (“a maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas”) e, por outro lado, o rigorismo da vontade boa de um Kant, é imensa. O que interessa, para Kant, é que cumpramos nosso dever, e se os resultados concretos e históricos de nossas ações bem intencionadas não dependem totalmente de nós, então não deveríamos nos preocupar com este aspecto. Kierkegaard, na mesma linha, mas radicalizando um dever de amar – que valeria para Kant só como um amor prático, não ligado a paixões –, diz até que se um ladrão roubasse do templo a esmolinha da pobre viúva, mesmo assim ela ainda teria sido a que deu mais, pois dera tudo o que tinha (talvez mais do que o dízimo defendido por Singer).
Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, nos brinda com quatro exemplos do que seriam deveres a cumprir. E o quarto trata da ajuda aos demais. Em termos puramente racionais, ele supõe que o mundo não acabaria se ninguém ajudasse ninguém, se imperasse um egoísmo do cada um por si, mas um egoísmo franco e sem hipocrisia. Só que, diz então Kant, não é possível querermos ver proibida por lei a mão estendida ao outro, pois ninguém desejaria viver num mundo assim. Ele conclui então que devemos ajudar os necessitados, se o pudermos sem sacrifícios que criassem um mal maior no mundo. É bem por aí que vai a lógica da ética de Singer. Sacrifícios precisam ser feitos, mas há que ponderá-los: conforme um exemplo seu, se um professor se dirige à escola e vê uma criança se afogando num chafariz, pode e deve ajudar, mesmo que com isso venha a molhar um pouco as suas roupas. Deixar a criança sem o auxílio provocaria um mal muito maior. Vemos que a filosofia pode ser séria e profunda sem precisar ser complicada. É outra lição que Peter Singer nos dá.
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ALVARO VALLS | Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Unisinos
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Fonte: ZH on line, 24/08/2013
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