sábado, 24 de agosto de 2013

UMA PROFISSÃO DE RISCO?

J.J. CAMARGO*
 
Ninguém ousaria dizer que o Anselmo seja um médico de elites. Não. Com seu jeito simples e uma vocação inata para cuidar das pessoas, dedicou-se à pediatria de corpo e alma. Desde sempre. Não participou do encontro dos colegas de turma na comemoração dos 35 anos da formatura. Estava de plantão, numa UPA, na periferia da Região Metropolitana de Porto Alegre.

Ao anoitecer, com os cinco leitos da unidade ocupados com casos clínicos em observação, chegou uma criança com uma pneumonia extensa que certamente exigia internação. Adotou as medidas iniciais, puncionou uma veia e instalou o antibiótico mais adequado. Contemporizada a urgência, saiu para o corredor a comunicar ao pai que tomara os primeiros cuidados, mas que seu filho devia ser transferido ao hospital geral. O pai disse que não. Preferia que o filho ficasse ali mesmo, mais perto de casa. De nada adiantou explicar que a UPA não tinha essa função, que o filho estaria melhor cuidado na unidade de pediatria do hospital. Quando os ânimos se alteraram, dois tios do menino se incorporaram ao motim e, ostensivamente, mostraram ao doutor que estavam armados.

Diante da ameaça de agressão, a Brigada Militar foi chamada, e a discussão, interrompida. Lá pelas duas da madrugada, o oficial comunicou ao médico que devia render outra unidade em algum ponto da cidade e que não poderiam mais ficar guarnecendo a UPA. O Anselmo não é um tipo de se assustar por nada, mas ao ver o trio esperando-o na esquina, tomou a única decisão cabível a um pai de família com noção de responsabilidade: anunciou que aproveitaria a escolta para deixar o posto.

No dia seguinte, quando se dirigiu ao hospital responsável pela unidade, para apresentar o seu pedido de demissão, encontrou lá os outros dois colegas de plantão, movidos pela mesma indignação. Para o médico verdadeiro, que se alimenta de reconhecimento e doçura, nada o agride mais do que o desapreço e a rejeição.

A constrangedora história desses três abnegados médicos é mais deprimente por ser comum. A gênese desse comportamento público é fácil de perceber. São muitos anos de saúde vilipendiada. Há muita indignação reprimida. E a população não se tornou aleatoriamente agressiva: quando o governo, no esforço desesperado de ocultar sua inoperância decidiu, cinicamente, transformar os médicos em para-choques do sistema falido, condicionou as pessoas menos esclarecidas a esse tipo de reação. Ninguém está preocupado se o sistema emperrou por falta de recursos, gestão incompetente ou burocracia esquizofrenizante. Só o que parece importar é a identificação dos culpados.

Estabelecido o médico como responsável, ele deve dar solução a todos os casos porque não interessa reconhecer que não existem leitos em quantidade suficiente, ou que a transferência de um enfermo do SUS de uma unidade de pronto atendimento para um hospital exige o cumprimento de uma burocracia, que dificulta a transferência de pacientes ainda vivos. E o que se vê é a transformação do atendimento médico, que devia envolver uma relação de confiança e afeto respeitoso, num caso de polícia.

Já houve quem recomendasse que as unidades de saúde sejam instaladas nas proximidades dos postos policiais, mas talvez devessem estar dentro das delegacias, e a distribuição das senhas a cargo das forças armadas, com auxílio de batalhões de choque.

E como nossos prefeitos acreditam que o problema da assistência médica na periferia das grandes cidades se deve tão somente ao elitismo da classe médica que se nega a conviver com os pobres, seria recomendável que os futuros cubanos contratados fossem também especialistas em guerrilha urbana. Ou alguém é ingênuo o bastante para esperar que os estrangeiros recebam um tratamento mais condescendente?

Triste pensar na medicina transformada numa profissão de risco!
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* Médico
Fonte: ZH on line, 24/08/2013

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