Arnaldo Jabor*
"Call me Ismael." Não, não matei Moby Dick. Mas pretendo matar a
grande baleia branca, a baleia que nos engoliu a todos, dentro da qual
vivemos aprisionados.
Sou um benfeitor da humanidade, ou apenas um defeito, um "defeito"
que sobrou - com um olho vivo que detecta tudo à minha volta hoje, neste
ano de 2113. Por algum mistério, não fui programado como os outros.
Tudo começou no século 21, com o primeiro homem clonado. Sob
protestos, os cientistas diziam: "É para o bem da ciência, para o bem da
medicina!" Papo furado, pois o que estava por baixo mesmo era a grana, a
corrida das patentes. Por trás do slogan de "consertar" a natureza,
reinava o intento de igualar todo mundo, de tudo controlar, de abolir
diferenças tão detestadas pelos mercados.
Estou dentro do mundo, observando os outros do meu canto. Estão todos
sempre tão felizes... Sim, mas, de vez em quando, eles entram em choro
meloso, evocando paz e harmonia, mas que me soa como um uivo, um canto
desesperado que lembra as sirenes que circulavam em Nova York no século
21.
No último século, a única resistência a esse desejo de transformar os
homens em belos "frankensteins" foi combatida pelos bravos
fundamentalistas do Oriente com explosões e atentados. Tentaram
interromper essa marcha rumo à paralisia da história. O Ocidente
balançou algumas vezes, mas a fome do capital reorganizou tudo, os
membros mutilados cresceram de volta, o Islã foi neutralizado e
reinstalou-se a utopia mercantil. Desde então, a ciência redobrou seus
esforços e cada gene foi decifrado, cada forma de morte foi catalogada e
saneada. Começamos a viver muitos anos, o que gerou problemas
previdenciários resolvidos depois por extermínios periódicos.
Mas o grande mercado da ciência não se deteve. Não bastava a perfeição dos corpos clonados.
Era inconcebível que, com tanto progresso, sem doenças, sem
imprevistos, o Ocidente mercantil ficasse ainda à mercê de neuroses, de
angústias improdutivas, perniciosas para o bom funcionamento da
indústria e do entretenimento das massas.
Foi assim que surgiu a ideia de clonar os desejos, muito mais
simples. O mercado começou a programar os desejos geneticamente. Nas
combinações da "dupla hélice" do DNA, pulsões e instintos foram
identificados e reprogramados: genes da paixão, genes do tesão, todas as
partículas elementares da mente. Os imprevistos do corpo e da alma
foram controlados para o bom funcionamento social.
A grande baleia branca não é uma sociedade regida por "Big Brothers".
Nenhuma razão totalitária nos rege. Somos uma democracia. Nós e as
coisas "clonamos" a nós mesmos. Milhões de produtos que, como
prostitutas, clamavam por nosso consumo, tiveram de ser atendidos. Era
mais prático. Em vez do jogo de "tentativa e erro" para acertar o gosto
do público, programaram-se os desejos, de modo a livrar o mercado dos
sobressaltos da liberdade.
Foi quando resolvi descobrir por que eu era infeliz. Andava pelas
ruas de Nova York e observava as "legiões desejantes" que me cercavam.
Via os pelotões clonados dos "felizes amantes" se beijando, bocas
úmidas, respiração ofegante; passavam por mim as alas dos programados
para a "alegria de viver", cobrindo-me de flores e fitas; sentia o
cálido ardor dos netos de Wilhelm Reich, professando o "orgasmo total",
com seios e pênis recriados, arfando e mordendo-se com gritos de tesão,
correndo para os Motéis do Povo; cercavam-me os apaixonados "pierrôs"
fabricados em dupla com suas "colombinas", chorando com risos
deliciados; via os violentos "punktransformers" arrebentando caras e
narizes de masoquistas coniventes, nostálgicos de porradas; via os AAs
("artistas artificiais"), trabalhando com os olhos faiscantes de
talento, para abastecer o mercado com programadas novidades; via os
"best-sellers" atendendo as exigências dos editores, ("Agora, é o ano do
realismo, agora uma volta ao lirismo, agora a pornografia, agora a
nostalgia, agora a esperança").
De repente, entendi. Parecia realizado o sonho dos filósofos que
ansiavam por uma sociedade harmônica, platônica, feliz, navegando no
prazer do conhecimento e da imaginação.
Mas, depois da passagem de cada "legião", percebi que sobrava um
silêncio aterrador e os grupos se paralisavam como robôs sem corda num
parque de diversões desativado. Apavorado, entendi que era parte de uma
humanidade previsível, de animais domesticados para a dor e o riso,
vermes sob as estrelas no palato da grande baleia.
Meu terror foi aumentando. Descobri que a imensa dor que sentia no
peito não tinha sido programada por ninguém. Era meu inferno e minha
salvação. Eu estava só, mas eu via. Era um defeito de fábrica, mas que
tinha uma missão: eu seria o anjo da morte, um herói ou mártir em busca
de uma inesperada salvação. Senti a compulsiva vontade de destruir. Por
algum motivo, na destruição estaria alguma esperança para a vida humana.
Foi aí que eu comecei meus extermínios. Disfarçado de sádico
"punktransformer" de última geração, não causei suspeita quando explodi o
Mega Gene Center - acharam que foi acidente.
E hoje, depois de inundar o "Vale da Delícia", de afundar a "Ilha da
Orgia Eterna", de incendiar o "Pavilhão da Felicidade Total", vou mais
longe. Carrego em minha maleta um detrito do passado, uma velha bomba
atômica que dormiu por cem anos no fundo do rancor de minha família.
E ninguém sabe que, sob meu manto, guardo o retrato de meu
antepassado e inspirador, o profeta do terror. A cidade vai desaparecer
sob uma nuvem luminosa. Eu vou morrer também, mas não vou entrar para a
história. Sou o desconhecido herói do acaso, sou o santo que vai
restituir a dúvida, o vazio, o medo. Vou trazer de volta a delícia da
humanidade imperfeita. Eu sou o alivio da insuportável perfeição."
* Este é o rascunho "imperfeito" de um conto que escrevi oito anos atrás. É bem melhor que o texto publicado.
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* Cineasta. Escritor. Jornalista.
Fonte: Estadão on line, 28/08/2013
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