"A democracia está sempre sendo recriada.
Essa é a força da experiência democrática,
é a ausência de medo em
relação
à sua própria recriação contínua.
E nós estamos em um momento
de
profunda recriação."
A
crise global da democracia representativa somente será superada por
meio de mecanismos de democracia direta, opina o filósofo Vladimir
Safatle, estudioso do psicanalista francês Jacques Lacan e hoje um dos
principais pensadores da esquerda no Brasil. Entusiasta do processo de
elaboração do projeto de uma nova Constituição na Islândia – que foi
levado a plebiscito em outubro de 2012 e prevê o veto popular a leis
aprovadas pelo Parlamento –, o fi lósofo defende a convocação de
plebiscitos pelos eleitores, que também deveriam ter direito a mandar de
volta para casa parlamentares que não cumprissem o programa apresentado
na campanha eleitoral.
“Por que não podemos pensar em uma experiência democrática na qual
questões como contração de dívidas, declaração de guerra e grandes obras
de infraestrutura sejam decididas por votação popular direta?”, indaga
Safatle, que conversou por quase uma hora com a reportagem de Pa 22
em uma tarde típica de inverno de uma sexta-feira em sua sala no
Departamento de Filoso a da USP.
Ele reconhece ser necessário construir uma engenharia política mais
complexa para transpor uma experiência de 320 mil habitantes (população
da Islândia) para um país de quase 200 milhões de pessoas, como o
Brasil. Mas, diz Safatle, a difi culdade não pode ser usada como
desculpa para bloquear sua adoção no País: “As generalizações sempre
partem de modelos em situação localizada”.
Página 22 - A crise política que ocorre no
Brasil e no mundo inteiro é uma crise da democracia representativa como
um todo ou uma crise particular do monopólio da representação política
pelos partidos?
Vladimir Safatle - Acho que é uma crise do conceito
de democracia representativa. Claro que ficou muito mais evidente com a
crise do capitalismo que vem de 2008. Não há crise econômica que não
tenha como uma das suas causas a impossibilidade de a política agir como
elemento de certos interesses desestabilizadores da vida social. Acrise
do capitalismo global é antes de tudo a crise da globalização enquanto
programa. Não por outra razão, todos esses países que de uma maneira ou
de outra entraram no processo de globalização – seja como mercados, no
caso do Brasil, caso da Turquia, seja como mercados fornecedores de
matérias-primas, como o mundo árabe, ou mesmo países que entraram no
processo de constituição europeia de maneira retardatária, como Espanha,
Grécia – todos são vítimas desse processo de globalização.
Ficou evidente nesses países, em primeiro lugar, como a democracia
representativa é completamente frágil. Fraca diante dos grandes
interesses do sistema financeiro internacional. Ela não consegue se
contrapor. Você pode trocar de partido, mas as políticas continuam as
mesmas. Esses grandes partidos, sejam da tradição social democrata, como
o Partido Socialista Francês, sejam da centro-direita, nenhum teve
condição de aparecer como um garantidor dos interesses da sociedade
civil contra os interesses dos grupos econômicos hegemônicos.
Então, dentro desse quadro só há uma saída, que é a constituição uma
verdadeira democracia direta, baseada na capacidade de reconhecer a
força do poder popular. E é muito interessante perceber que o Brasil
entrou nesse ciclo (de protestos) porque seu processo de desenvolvimento
econômico mostrou seus limites. A população percebeu muito claramente
os limites desse processo, cujo auge foi o lulismo.
P22 – Por que motivo o que se considera a maior
onda de protestos de rua da História brasileira, a de junho, não
aconteceu duas ou três décadas atrás, quando a situação social do País
era muito mais adversa?
VS – Segundo o conceito de frustração relativa de (o
historiador Alexis de Tocqueville), as pessoas comparam com aquilo que
poderiam conseguir. Ou seja, é óbvio para boa parte da população
brasileira que nós poderíamos conseguir mais. É a sexta ou sétima
economia do mundo, um PIB idêntico ao da Grã-Bretanha com serviços
públicos idênticos aos do Gabão. Existe alguma questão de divisão de
renda que poderia ser pensada de outra forma. Esse é o cálculo que as
pessoas fazem. Por outro lado, é bom lembrar que o Brasil sempre foi um
país de grandes confl itos populares. Essa versão de que o brasileiro é
um povo cordato, que não temos grandes manifestações, isso é
completamente falso.
É verdade que houve um hiato de uns 20 anos do governo Fernando
Henrique ao governo Lula, quando as grandes manifestações saíram um
pouco de cena. Mas lembro que no governo Fernando Henrique ocorreram
manifestações do Movimento dos Sem Terra que pararam o Brasil. No
(governo) Lula, houve uma desmobilização muito forte. Mas isso foi um
hiato. Até o fi nal dos anos 1980, os sindicatos chamavam grandes greves
gerais, o Brasil parava. Estamos simplesmente voltando ao lugar natural
da política brasileira, que é esse espaço das grandes mobilizações e
manifestações populares, seja à direita, seja à esquerda. Essa é a nossa
História, ela continua agora.
P22 – Como o senhor analisa o formato muito
distinto das mobilizações de junho das que ocorriam antes no Brasil? Na
segunda etapa dos protestos, após a repressão policial à manifestação do
dia 13 de junho em São Paulo encabeçada pelo Movimento Passe Livre
(MPL), os protestos tomaram dimensões que fugiram ao controle de
instituições tradicionais, como os partidos, as entidades estudantis e
movimentos sociais mais longevos. Talvez de forma inédita no País, os
protestos de massa nascem com uma espontaneidade muito grande.
VS – É verdade. Isso é uma característica muito
especí fica dessa situação. É fato que houve uma espontaneidade das
manifestações. Teve uma causa especí fica que se desdobrou e virou duas
causas, porque era não só a questão dos transportes, mas também a da
violência policial, que foi o elemento detonador do processo. A partir
do momento em que essas duas causas mostram sua capacidade de
mobilização, destravam a participação popular e fazem acontecer
manifestações as mais díspares. O mais interessante é que esse é o
modelo tradicional de manifestação popular. Poderia fazer um largo
histórico de várias manifestações populares, desde a Revolução Francesa,
em que o processo foi mais ou menos esse. As pessoas saem por uma
questão especí fica e vão percebendo que a questão específi ca está
vinculada a um problema estrutural mais global que sobe à cena. A
Revolução Russa não aconteceu porque as pessoas saíram às ruas exigindo
comunismo. Aconteceu porque elas foram para as ruas pedindo paz, terra e
pão. De repente, esse processo foi crescendo e se desdobrando em uma
crítica mais global.
P22 – E houve uma oposição à presença dos
partidos nos protestos que há muito tempo não se via, de uma forma tão
ostensiva e com tanta repercussão pública.
VS – Foi, isso é novo, você tem toda razão.
P22 – Aí uma parte da esquerda recuou dizendo
que a direita estava tomando conta das manifestações. Outra parte
admitiu que era hora de renovar os métodos de fazer política, a
estética, a linguagem. Como o senhor vê essa questão?
VS – Em primeiro lugar, essa manifestação contra
partidos justi fica-se pelo fato de que nos últimos 20 anos testamos os
dois grandes consórcios criados na política brasileira, o do PSDB e o do
PT, que demonstraram claramente seus limites. Portanto, essa demanda
(por um protesto) sem partido, por um lado, é a compreensão de que
dentro do quadro partidário atual não há mais nada a se testar.
P22 – O PSTU e o PSOL também foram vaiados.
VS – Sim, mas são partidos que poucos conhecem. Não
dá para colocar sua rejeição no mesmo nível. No entanto, existe outra
questão global que é uma crítica à forma partido em geral. E essa também
não deve ser desqualifi cada. Ao contrário, eu diria que é a mais
importante, porque mostra que se esgotou esse modelo de representação
política no qual o grande ator político é o partido ou o sindicato ou o
movimento institucionalizado. As pessoas não querem mais entrar em um
partido, porque não querem submeter a sua capacidade crítica e a sua
indignação a um cálculo tático eleitoral. Ou coisa do tipo: “Eu não vou
demonstrar minha indignação a respeito disso porque afi nal de contas
isso pode fragilizar o partido ao qual faço parte, e com isso vou ajudar
o inimigo”. Essa lógica as pessoas não aguentam mais. É um modelo de
pensamento político que tende a sair de cena, porque esse engajamento
custa caro do ponto de vista político.
P22 – Não querer se submeter à governabilidade, não é?
VS – Exato. Não só se submeter à governabilidade,
mas não querem admitir que a única possibilidade de governança é esse
modelo de governabilidade. “Por que é que uma parte dessas atribuições
de poder não fi ca comigo diretamente?” “Por que todas as decisões
ligadas a mim como ator econômico, ator social, ator político devem ser
passadas para um que vai falar em meu nome?” Talvez estejamos entrando
em um momento em que essa equação da representação vai mudar. Quer dizer
que há desejos populares que serão mais representados, serão
imediatamente postos pelo poder popular. Por exemplo, por que não
podemos pensar em uma experiência democrática na qual questões como
contração de dívidas, declaração de guerra e grandes obras de
infraestrutura sejam decididas por votação popular direta? Não há
nenhuma razão para que isso seja impossível.
P22 – Um exemplo estaria na Islândia?
VS – Existem vários exemplos. Algumas pessoas tendem
a dizer: “Onde isso funciona?”, como se em algum lugar a democracia
estivesse funcionando bem. Como se houvesse um lugar onde não existissem
grandes manifestações contra a experiência democrática tal como ela
está colocada agora.
A democracia está sempre sendo recriada.
Essa é a força da experiência democrática, é a ausência de medo em
relação à sua própria recriação contínua. E nós estamos em um momento de
profunda recriação.
P22 – Há algum lugar onde isso esteja mais avançado?
VS – De fato, acho o processo de elaboração da nova
Constituição islandesa uma experiência a ser meditada, a maneira como
eles saíram da crise econômica por meio de uma politização da economia, a
maneira com que transpuseram para a decisão popular todas as grandes
decisões a respeito da gestão da crise. O Parlamento da Islândia havia
decidido fechar um acordo com o Fundo Monetário Internacional para a
negociação das dívidas dos bancos. Dívida privada tinha sido
transformada em dívida soberana do Estado. Graças a uma manobra do
presidente (Olafur Ragnar Grimsson), essa decisão foi para referendo e
rejeitada duas vezes. Ou seja, a ideia de que toda negociação de dívida
pública passe por plebiscito, referendo, poderia se transformar em um
princípio fundamental de todos os governos. Os gregos tentaram fazer um
referendo (em junho de 2011 sobre a permanência da Grécia na Zona do
Euro), sugerido pelo então primeiro-ministro Andreas Papandreou, que
caiu 24 horas depois. Não há nenhuma racionalidade de impedir que a
população decida, afi nal é ela quem vai pagar a conta. Não é verdade
que são decisões técnicas que devem ser tomadas por economistas. Estes
são pessoas completamente interessadas em conseguir boas relações com o
aparato financeiro, porque serão empregadas por esses aparatos depois.
Se tem alguém que não pode tomar essas decisões, são essas pessoas.
Porque elas têm interesses particulares envolvidos.
Outro exemplo extremamente impressionante, eu diria mesmo um exemplo
de uma beleza muito forte – há momentos em que a política produz uma
certa beleza –, é quando eles decidiram que haveria um pré-projeto de
Constituição que seria fruto da vontade popular, antes de fazer a
Assembleia Constituinte. Escreveram mil cartas-convites chamando mil
pessoas para ir a um estádio, para se reunir durante um certo tempo e
dessa reunião tirar um pré-projeto (evento ocorrido em 2010). Essas
cartas foram enviadas ao acaso. Não foram enviadas a juristas,
especialistas, notáveis. Alguém poderia dizer; “Olha o risco, você pode
chamar um bando de malucos que vão ter as posições mais estapafúrdias”. O
fantástico é que nada disso aconteceu. Eles conseguiram criar um dos
pré-projetos mais avançados do ponto de vista da experiência da
soberania popular, da noção de bem comum, da defesa do bem comum. Isso
demonstra que nessas horas o sentimento que realmente funda a
experiência democrática é ter confi ança no povo.
P22 – Um país com pouco mais de 300 mil
habitantes, como a Islândia, pode servir como exemplo para o Brasil,
cuja população se aproxima dos 200 milhões de habitantes?
VS – Não é um problema de escala, é um problema de princípio.
P22 – Por que o senhor acha que é possível?
VS – Claro que existe uma engenharia política
importante a ser construída para você transpor uma experiência de 320
mil para 200 milhões de pessoas. Agora, o inaceitável é que não
queiramos sequer pensar nessa engenharia, a partir do argumento de que
isso é uma coisa muito pequena, muito localizada. Veja, as
generalizações sempre partem de modelos em situação localizada. Não há
nenhum problema do ponto de vista, digamos assim, estrutural na
generalização desse tipo de modelo. Como fazer uma coisa parecida em uma
situação como a brasileira? Você pode pensar um milhão de situações,
tentar setorizar por regiões, organizar isso dentro de uma escala
temporal mais ampla. Concordo que muitas difi culdades aparecerão.
Muitas experiências vão se demonstrar um fracasso, muita tensão vai
aparecer, mas toda criação dos mecanismos democráticos sempre foi assim,
ninguém teve medo de tentar, de errar, ninguém teve medo de ensaiar. O
que se tenta colocar para nós é se você sair dessa posição em que está
agora só virá o caos. Se você sai dessa dimensão da representação, só o
caos pode vir. É uma ideia do século XIX a de que, se você sai de uma
representação controlada, vai acordar as massas, que produzirão só caos,
destruição e anomia.
P22 – Isso lembra a discussão feita pela
historiadora Célia Maria Marinho de Azevedo no clássico Onda Negra, Medo
Branco em torno do pavor de parte das elites diante das revoltas
escravistas e do movimento abolicionista segunda metade do século XIX.
VS – Isso vem de longe. (O filósofo Theodor) Adorno
tinha uma frase boa sobre o assunto: “O medo do caos, tanto em
psicologia social quanto em música, é superdimensionado”. Esse medo de
que o caos virá porque você abriu as portas dos irrepresentados é
superdimensionado, simplesmente gerado para que aceitemos ficar no
lugar onde no fundo ninguém quer fi car.
P22 – Voltando ao caso da Islândia, que inovações o senhor destacaria no pré-projeto da nova Constituição do país?
VS – Do pré-projeto, eles construíram o projeto de
Constituição, (cujo texto teve seis propostas fundamentais aprovadas em
referendo realizado em outubro de 2012). Como foi feita completamente à
margem – a Assembleia Constituinte não era Parlamento, não eram
partidos, era Assembleia feita de cidadãos comuns, exclusiva –, então há
uma questão jurídica para a implementação (o Parlamento ainda não a
rati ficou). Mas o resultado do projeto do ponto de vista das leis
constitucionais é bastante impressionante. Por exemplo, uma delas é a
lei que diz que uma lei aprovada pelo Parlamento pode ser vetada se 10%
da população assim quiser e se manifestar por meio de um
abaixo-assinado. O poder popular não tem só uma força consultiva, ele
não é só uma força deliberativa, mas também é uma força de veto, que
obriga o Legislativo a submeter a lei a plebiscito. Todos os bens
naturais (que não forem propriedade particular) passam a ser garantidos
como bens comuns da nação. Os recursos hídricos e minerais não poderão
ser privatizados.
P22 – É, de alguma forma, um retorno à ideia dos
commons da Idade Média, as terras comunais da Inglaterra que foram
cercadas pelos proprietários privados, levando a uma grande migração do
campo para a cidade nos séculos XVIII e XIX.
VS – Exato. No projeto da nova Constituição
islandesa, há a garantia de que o ensino será público, é constitucional
agora, aconteça o que acontecer. Ou seja, há uma consciência muito
interessante de que as saídas liberais deram radicalmente errado. A
Islândia foi um laboratório do liberalismo nos anos 1990 e 2000, os
bancos do país tinham uma dívida que era quatro vezes maior que o PIB
(quase 40 bilhões de euros para um PIB de aproximadamente 9 bilhões de
euros em 2008, quando o sistema financeiro da ilha entrou em colapso).
Todas as pessoas interessadas mesmo em pensar a política daqui para a
frente devem levar em conta essa experiência constitucional da
Islândia. É um pouco do Rousseau falando da Constituição na Polônia. Há
certos momentos na História em que experimentos políticos podem servir
como matéria profunda de pensamento e de re exão. São experimentos que
não saíram de uma ideia no sentido tradicional, como se pudesse produzir
uma ideia aqui na universidade, não saiu de um livro, saiu da
experiência concreta. As ideias têm uma vida que não é só uma vida na
teoria, também são aquilo que mobiliza as produções da práxis.
P22 – No livro O Futuro da Democracia, Norberto
Bobbio alerta para os perigos da democracia direta desembocar em regimes
autoritários. Também há setores que se preocupam com o risco de a
democracia direta levar-nos não à maior democratização da sociedade, mas
a um fechamento, como nos temas do aborto, da pena de morte, da
maioridade penal e outras, como o desarmamento, que foi derrotado no
referendo de 2005. O senhor diz não temer o exercício do poder
diretamente pelas massas. Não há um risco de o poder popular guinar a
sociedade brasileira para trás em vez de aprofundar nossa experiência
democrática?
VS – Ótima questão, mas de fato não acredito nisso
por duas razões. Primeira, acho que essas experiências ditas
totalitárias nunca foram experiências de poder popular. São
experiências, no mais das vezes, em que uma certa dimensão da liderança
se justifica através do apelo direto a uma parcela da população. Como no
caso do fascismo, do nazismo ou mesmo no caso do populismo. São
situações nas quais o poder popular não pode aparecer completamente,
porque está submetido ao controle da liderança. O que queremos é um
movimento popular sem liderança, que é algo completamente diferente. Ou
alguém acha, por exemplo, que Hitler fazia plebiscito para decidir para
onde os judeus iriam ou como funcionariam as câmaras de gás?
Na verdade, esta é uma maneira que o pensamento conservador tem de
tentar nos amedrontar mais uma vez. Eram governos com popularidade, mas
não havia nenhum processo de decisão popular nesses governos. E, mesmo
no caso dos governos populistas, tudo bem, eu posso admitir que às vezes
houve alguns usos da noção de plebiscito em que sempre é o Poder
Executivo que chama, mas a gente não quer só isso. A gente quer uma
situação em que o poder instituinte popular pode aparecer sem ser
chamado por poder algum, Congresso, partido, sem ser chamado por nada.
Nós podemos chamar e entrar como pauta prioritária do Congresso
Nacional.
O segundo ponto (tem a ver com certa percepção de que) a sociedade
seria (majoritariamente) conservadora (tornando muito arriscado
desenvolver mecanismos de democracia direta no País). Muitas vezes já me
zeram a crítica de que a ideia de poder popular não leva em conta que
existe uma luta de classes na sociedade brasileira, que eu parto de um
pressuposto de tratar o povo como uma unidade, enquanto ele é clivado
entre várias classes, com interesses antagônicos, diferentes.
Eu diria que a verdadeira luta de classes hoje se dá entre aqueles
dispostos a ter confi ança no poder popular e os que temem um
experimento como esse da Islândia, temem a soberania popular, que
encontrarão as melhores justi cativas do mundo para continuar na sua
posição de dirigismo – “a massa pode aparecer se for dirigida por um
partido ou uma classe de intelectuais, por um modelo de organização
previamente de nido, que terá mais ou menos garantidos os seus
resultados”. Sou completamente contrário a isso e estou disposto a
assumir o risco. Para isso, é necessário que você possa garantir
condições efetivas de debate. O referendo sobre o desarmamento é o
melhor exemplo do que não pode ser uma consulta popular. Ele foi feito
de uma maneira totalmente equivocada, o debate foi feito por frentes
parlamentares baseadas em partidos. Você não deixou a sociedade civil se
expressar. Quando as pessoas começaram a ter discussão, os setores mais
bem organizados na sociedade conseguiram levar o debate adiante, como
os setores ligados à imprensa conservadora.
P22 – Para o senhor, o poder popular substitui
totalmente as formas atuais de representação política parlamentar,
concentradas, no caso do Brasil, nos partidos e no Poder Legislativo?
VS – Os partidos não desaparecerão. O que vai
desaparecer é essa ideia de que os partidos têm o monopólio da
representação política. Esse é o problema. Da mesma maneira, o Congresso
não vai desaparecer diante de uma democracia direta. Uma série de
processos ainda continua no Congresso, vamos demandar dos partidos, mas
eles não mais terão o monopólio da representação. Por que não permitir
não só candidaturas independentes, como também que um movimento social
possa lançar um candidato, a exemplo do Movimento Passe Livre (MPL)?
P22 – Não voltamos, assim, para uma
representação dos particularismos? A democracia parlamentar não é a
ideia da representação dos interesses gerais da população, como defende
Norberto Bobbio em O Futuro da Democracia?
VS – Não, nunca foi. Ela foi a constituição do
espaço onde os interesses particulares podiam aparecer. Os partidos
nunca representaram interesses gerais.
P22 – Mas não deveriam representá-los?
VS – Mas nunca o zeram. Não há nenhum momento na
História em que isso ocorreu. Uma ideia que nunca se realizou é uma
ideia que tem um problema enquanto descrição. Ela não descreve um ente
real, ela descreve um ente imaginário. O partido nunca foi assim.
P22 – O seu colega Renato Janine Ribeiro, também
professor do Departamento de Filosofia da USP, segue seu raciocínio
quando diz que a política moderna sempre se centrou em interesses e que
os políticos representam esses interesses. Contudo, se os partidos e os
políticos eleitos só pensassem nos seus interesses particulares, não
seria possível, por exemplo, aprovar no Congresso o Orçamento anual da
União, não acha?
VS – O campo político é um espaço de interesses
particulares. Agora, esses interesses particulares não se expressam como
particularidades. Eles têm a inteligência de compreender que o interior
desse sofrimento particular é a expressão de um direito universal. O
Movimento Passe Livre (MPL) faz isso de maneira exemplar. Pegou um
problema específi co, o do transporte público, e mostrou que de
especí fico não tem nada. É a expressão mais bem acabada de um problema
geral do sistema econômico. Se eu simplesmente falo que luto contra o
grande capital, qual será a impressão para o indivíduo que me ouve? Que
eu não sei sentir o que ele sente. Quando você muda para o problema
específi co, não há só uma mudança de discurso, há uma mudança de
posição, você consegue ser afetado de outra forma. Se afetar da maneira
correta, as pessoas olham para você com olhar de cumplicidade. Eu diria
que é um modelo de luta por explosão de sintoma. Você escolhe um sintoma
que parece completamente localizado, como uma experiência
psicanalítica. Esse sintoma pode ser analisado como se fosse um elemento
isolado ou na rede de relações entre o sintoma e a estrutura do seu
comportamento em geral.
P22 – A internet ajuda nesse modelo por explosão
de sintoma? Teria sido decisiva na multiplicação dos protestos de maio e
junho que se iniciaram em Istambul e logo se espalharam por toda a
Turquia?
VS – Hoje é muito mais fácil mobilizar de maneira
direta pela internet. O modelo atual de comunicação funciona de modo
muito mais horizontal, faz com que cada receptor possa ser um enunciador
de mensagem. Mas não é porque estamos na época da internet. Essa ideia
de que para fazer com que as pessoas percebam a irracionalidade de um
sistema a gente tenha de sensibilizá-las a partir das questões que
realmente lhe tocam é uma estratégia milenar. O que me impressiona é
como em vários momentos a gente se esqueceu disso. Nossas políticas
funcionaram quando a gente respeitou esse princípio. Quando se criou o
Estado de Bem-Estar Social, foi uma experiência importante na Europa dos
anos 1950. Havia uma classe trabalhadora que queria ter mais pão dentro
de casa – não é que ela queria o socialismo. E tinha toda razão, pois
queria que os lhos pudessem continuar o processo de ascensão social que
ela começou. Agora fi cou faltando um segundo momento. Mostrou-se que,
para continuar aquele processo, não daria para permanecer no mesmo
lugar.
P22 – Como assim, um segundo momento?
VS – Esses Estados de Bem-Estar Social fracassaram,
porque faltou desenvolver um tipo de política muito mais brutal e mais
efetiva contra certos elementos desestabilizadores vindos do poder
econômico.
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Reportagem por José Alberto Gonçalves Pereira e Magali Cabral, da Página 22
Fontes: (Página 22) - http://mercadoetico.terra.com.br/14/08/2013
Obrigado Vladimir Safatle, mais uma vez sentimos orgulho pelos intelectuais sairem em defesa do povo, e de mostrar e apoiar o norte que temos a seguir.
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