João Pereira Coutinho*
Quem disse que o mal tinha sempre uma justificação racional, ou teológica, ou científica?
Um dos grandes mistérios de Portugal é saber por que motivo as gaivotas
lusas não se assustam com os humanos. Várias vezes caminhei por entre a
bicharada, que continua tranquilamente as suas rotinas.
Séculos e séculos de convívio apertado com uma pátria de marinheiros
acabaram por domesticar as aves. Em Portugal, um filme de Alfred
Hitchcock sobre gaivotas assassinas seria tão improvável como um filme
sobre gaivotas assustadas. Elas não querem saber de nós para nada.
O mesmo não acontece com os pássaros de Hitchcock, que fazem agora 50 anos. Será preciso resumir a história do filme?
Talvez, para o auditório juvenil. Uma jovem "socialite" de São Francisco
(a divina Tippi Hedren, em estreia cinéfila) conhece e apaixona-se por
Mitch (Rod Taylor) numa loja de animais. Acaba por segui-lo até Bodega
Bay (delicioso nome). As aves começam a atacar pouco depois. Mas por que
atacam as aves, afinal? Passaram 50 anos e ninguém conseguiu explicar
ainda. Existem tentativas.
Anos atrás, cientistas da Universidade de Lousiana afirmaram que os
pássaros atacavam por influência de uma toxina que os enlouquecia. O
próprio Hitchcock, confrontando-se com o fenômeno na década de 60, teria
encontrado aí a inspiração para as suas aves assassinas. O conto de
Daphne du Maurier, que serviu de base para o roteiro, não passou de um
pretexto.
É uma boa tentativa de explicação. Que, como é evidente, retira o elemento mais importante do filme: o seu sinistro mistério.
As aves atacam porque atacam. É a explicação mais simplória --e
inquietante. Quem disse que o mal tinha sempre uma justificação
racional, ou teológica, ou científica?
Verdade que a nossa civilização não lida bem com essa possibilidade.
Basta olhar para a história da cultura ocidental. O mal nasce da
ignorância, diziam os clássicos gregos e seus herdeiros iluministas no
século 18. O mal nasce da nossa irremediável perdição depois da Queda,
dirão os doutores da igreja. O mal nasce da pobreza e da miséria, dirá o
pessoal marxista de Porto Alegre.
Ou então o mal nasce de um desequilíbrio orgânico ou químico que a
ciência moderna acabará por resolver. Tudo é possível, exceto admitir
que o mal está entre nós sem nenhuma explicação, nenhuma justificação.
Nenhuma cura ou redenção.
O primeiro som que escutamos em "Os Pássaros" é, precisamente, o som dos
pássaros: na rua, quando a moça caminha; na loja, quando encontra o
rapaz; e em todas as cenas do filme --o chilrear constante e vulgar, que
faz parte da nossa paisagem cotidiana.
Eis a assustadora premissa de Hitchcock: e se um dia aquilo que é banal
se converte em uma sombra de destruição e morte? Pior ainda: e se essa
sombra emerge com a mesma ferocidade misteriosa com que se dissipa?
Mas existe uma segunda tentativa de explicação. Sabemos que as pragas
bíblicas não aconteciam por acaso. Eram uma forma tangível de Deus
castigar a licenciosidade dos homens.
Um moralista misógino como Hitchcock, para quem as mulheres eram essa
fonte permanente de fascínio e temor, não seria insensível à hipótese:
as aves atacam, primeiro que tudo, o atrevimento de Tippi Hedren na
caçada do seu homem.
Não por acaso, ela é a primeira vítima de uma gaivota quando pretende seduzir Mitch.
E a punição continua: quando ela decide ficar mais uns dias no vilarejo
e, finalmente, quando ela se confronta no quarto com as aves
enlouquecidas. Ao desfalecer perante os golpes animalescos, é o nome de
Mitch que ela pronuncia --um gemido orgástico de prazer que é Hitchcock
"vintage".
Mensagem: Tippi Hedren é o agente corruptor que traz a desgraça para a
comunidade. Sem surpresa, as aves só concedem uma trégua quando ela
abandona a comunidade --assombroso plano final, em que o carro se afasta
e as aves permanecem, guardiãs majestáticas.
No panteão dos filmes de Hitchcock, é provável que "Os Pássaros" não esteja na "pole position".
Um erro. Pela décima ou centésima vez, assisti ao filme para brindar aos
seus 50 anos. E garanto que não encontrei uma única ruga nesta gloriosa
meia-idade. O mesmo brilhantismo formal. E, claro, a mesma perversidade
moral e metafísica.
Tudo coisas que as gaivotas de Lisboa não conhecem. Olho para elas
através do vidro, passeando calmamente entre os humanos. Sim, talvez
sejam imunes a toxinas. Ou, então, são umas deliciosas devassas.
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* Jornalista português. Escritor. Colunista da Folha.
Fonte: Folha on line, 20/08/2013
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