terça-feira, 20 de agosto de 2013

Os pássaros na meia-idade

João Pereira Coutinho*
Quem disse que o mal tinha sempre uma justificação racional, ou teológica, ou científica?
 
Um dos grandes mistérios de Portugal é saber por que motivo as gaivotas lusas não se assustam com os humanos. Várias vezes caminhei por entre a bicharada, que continua tranquilamente as suas rotinas. 

Séculos e séculos de convívio apertado com uma pátria de marinheiros acabaram por domesticar as aves. Em Portugal, um filme de Alfred Hitchcock sobre gaivotas assassinas seria tão improvável como um filme sobre gaivotas assustadas. Elas não querem saber de nós para nada. 

O mesmo não acontece com os pássaros de Hitchcock, que fazem agora 50 anos. Será preciso resumir a história do filme? 

Talvez, para o auditório juvenil. Uma jovem "socialite" de São Francisco (a divina Tippi Hedren, em estreia cinéfila) conhece e apaixona-se por Mitch (Rod Taylor) numa loja de animais. Acaba por segui-lo até Bodega Bay (delicioso nome). As aves começam a atacar pouco depois. Mas por que atacam as aves, afinal? Passaram 50 anos e ninguém conseguiu explicar ainda. Existem tentativas. 

Anos atrás, cientistas da Universidade de Lousiana afirmaram que os pássaros atacavam por influência de uma toxina que os enlouquecia. O próprio Hitchcock, confrontando-se com o fenômeno na década de 60, teria encontrado aí a inspiração para as suas aves assassinas. O conto de Daphne du Maurier, que serviu de base para o roteiro, não passou de um pretexto. 

É uma boa tentativa de explicação. Que, como é evidente, retira o elemento mais importante do filme: o seu sinistro mistério. 

As aves atacam porque atacam. É a explicação mais simplória --e inquietante. Quem disse que o mal tinha sempre uma justificação racional, ou teológica, ou científica? 

Verdade que a nossa civilização não lida bem com essa possibilidade. Basta olhar para a história da cultura ocidental. O mal nasce da ignorância, diziam os clássicos gregos e seus herdeiros iluministas no século 18. O mal nasce da nossa irremediável perdição depois da Queda, dirão os doutores da igreja. O mal nasce da pobreza e da miséria, dirá o pessoal marxista de Porto Alegre. 

Ou então o mal nasce de um desequilíbrio orgânico ou químico que a ciência moderna acabará por resolver. Tudo é possível, exceto admitir que o mal está entre nós sem nenhuma explicação, nenhuma justificação. Nenhuma cura ou redenção. 

O primeiro som que escutamos em "Os Pássaros" é, precisamente, o som dos pássaros: na rua, quando a moça caminha; na loja, quando encontra o rapaz; e em todas as cenas do filme --o chilrear constante e vulgar, que faz parte da nossa paisagem cotidiana. 

Eis a assustadora premissa de Hitchcock: e se um dia aquilo que é banal se converte em uma sombra de destruição e morte? Pior ainda: e se essa sombra emerge com a mesma ferocidade misteriosa com que se dissipa? 

Mas existe uma segunda tentativa de explicação. Sabemos que as pragas bíblicas não aconteciam por acaso. Eram uma forma tangível de Deus castigar a licenciosidade dos homens. 

Um moralista misógino como Hitchcock, para quem as mulheres eram essa fonte permanente de fascínio e temor, não seria insensível à hipótese: as aves atacam, primeiro que tudo, o atrevimento de Tippi Hedren na caçada do seu homem. 

Não por acaso, ela é a primeira vítima de uma gaivota quando pretende seduzir Mitch. 

E a punição continua: quando ela decide ficar mais uns dias no vilarejo e, finalmente, quando ela se confronta no quarto com as aves enlouquecidas. Ao desfalecer perante os golpes animalescos, é o nome de Mitch que ela pronuncia --um gemido orgástico de prazer que é Hitchcock "vintage". 

Mensagem: Tippi Hedren é o agente corruptor que traz a desgraça para a comunidade. Sem surpresa, as aves só concedem uma trégua quando ela abandona a comunidade --assombroso plano final, em que o carro se afasta e as aves permanecem, guardiãs majestáticas. 

No panteão dos filmes de Hitchcock, é provável que "Os Pássaros" não esteja na "pole position". 

Um erro. Pela décima ou centésima vez, assisti ao filme para brindar aos seus 50 anos. E garanto que não encontrei uma única ruga nesta gloriosa meia-idade. O mesmo brilhantismo formal. E, claro, a mesma perversidade moral e metafísica. 

Tudo coisas que as gaivotas de Lisboa não conhecem. Olho para elas através do vidro, passeando calmamente entre os humanos. Sim, talvez sejam imunes a toxinas. Ou, então, são umas deliciosas devassas. 
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* Jornalista português. Escritor. Colunista da Folha.
Fonte: Folha on line, 20/08/2013
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