Fernando Luís Schüler*
Em seu livro recentemente lançado no Brasil, "A Civilização do
Espetáculo", Mario Vargas Llosa faz uma candente defesa da alta cultura e
de certo tipo de cultura tradicional que por vezes chamamos de
"moderna". Sua crítica volta-se contra o que compreende como a
banalização da vida contemporânea. É um livro idiossincrático, escrito
por Mario, em primeira pessoa. Simplesmente expressa seu desconforto,
diz que não voltará à Bienal de Veneza, que prefere manter-se a
distância segura desta era da imagem rápida, dos tubarões de Damien
Hirst, da "cultura mainstream", na expressão de Frédéric Martel. Vargas
Llosa é particularmente cáustico com o destino dos intelectuais em nossa
época: eles só interessam "se seguir o jogo da moda e se tornar um bobo
da corte".
Thomas Sowell, em seu "Os Intelectuais e a Sociedade", argumenta na
direção contrária: o peso relativo dos intelectuais na sociedade vem
aumentando. Sua influência não é exercida, como no passado, diretamente
sobre os detentores do poder. Ela é exercida sobre a opinião pública,
por meio dos sistemas de educação, nas universidades, para as audiências
culturais e, em particular, pela grande mídia. O argumento é engenhoso.
A democracia e a mídia eletrônica fizeram crescer o peso da opinião
pública sobre os governos, e o crescimento contínuo da renda faz que
mais e mais intelectuais possam ser sustentados.
Sowell, é de supor, não tem lá grande simpatia pelos intelectuais.
Afirma ser um desafio, para qualquer pessoa bem informada, encontrar
"três formas nas quais nossa vida é melhor como resultado das ideias de
sociólogos e desconstrucionistas". Exagero. A crítica de Sowell é menos a
esta ou aquela disciplina e mais a certo tipo de argumentação
intelectual, avessa ao bom senso, feita de impressões e gosto nenhum
pela estatística. Essas coisas que todos sabem ou ao menos deveriam.
A crítica de Sowell dirige-se ao intelectual generalista ou
"intelectual público". Chomsky seria um bom exemplo. Dado que ele seja
um bom linguista, supõe-se que seja capaz de dissertar com a mesma
competência sobre temas de economia ou política internacional. E tenha
maior autoridade moral, relativamente ao comum dos mortais, para
considerar isto ou aquilo. Sowell acha risível tal suposição. O ponto,
diz ele, é que os intelectuais teriam pouco ou nenhum incentivo para
agir com responsabilidade. Sua matéria-prima são as ideias,
relativamente às quais não lhes é esperado ou cobrado nenhum resultado
objetivo. Seu trabalho começa e termina no plano das palavras e seu
critério de sucesso é, o mais das vezes, a aprovação de seus pares ou de
uma audiência mais ampla, nos jornais ou na internet.
Um engenheiro, tanto quanto um médico, tem alta probabilidade de
sofrer uma punição em face de um erro empiricamente verificável em seu
trabalho. Na atividade intelectual, simplesmente não é requerida
verificação empírica. A correlação me parece descabida, mas é possível
compreender o que ele quer dizer.
Ainda mais ácida é a crítica aos intelectuais formulada pelo
historiador inglês Paul Johnson, em sua coletânea de ensaios "Os
Intelectuais". Eles merecem pouco crédito, argumenta Johnson. Basta
observar sua folha corrida nada recomendável, no século XX. Não faltou
um só ditador, ao longo do século, que não possuísse um plantel de
escritores e artistas a seu serviço. Entram nessa conta a adesão de
Heidegger ao nazismo; de Giovanni Gentile e Pirandello ao fascismo; de
Sartre ao maoismo e, durante bom tempo, à União Soviética. Na América
Latina, a lista seria particularmente longa, certamente pontificada pelo
autor de "Cem Anos de Solidão", Gabriel García Márquez, e secundada por
ilustres brasileiros. O tempo se encarregará de lapidar a memória de
cada um.
Goste-se ou não, o fato é que os intelectuais são particularmente
suscetíveis ao fascínio da ideologia. Há muitas razões para isso. Paul
Johnson percebe a ideologia como uma forma de religião secular que, a
partir do fim do século XVIII, gradativamente substituiu a autoridade da
igreja e da tradição cristã no Ocidente. O intelectual como espécie de
cura moderno, que "mesmo sendo deísta, cético ou ateu, estava tão
disposto quanto qualquer pontífice ou presbítero a dizer como os homens
devem agir diante dos problemas dessa sociedade". O primeiro intelectual
a encarnar à perfeição esse papel foi Rousseau. Suas ideias se fizeram
história, e ainda que não seja difícil estabelecer o nexo entre sua
filosofia e o terror jacobino não se trata de um raciocínio trivial.
Em certos momentos, tanto Johnson como Sowell, e mesmo Llosa, parecem
confundir a tradição intelectual, na modernidade, com o pensamento
totalitário. De minha parte, prefiro compreender o pensamento
totalitário como negação da modernidade. Quem sabe um erro. A
modernidade é feita da afirmação da democracia, da tolerância política e
cultural, da integração entre os povos, seja econômica, seja política, e
pela paz. Steven Pinker publicou recentemente um livro monumental, "Os
Anjos Bons da Nossa Natureza", demonstrando que vivemos, neste início de
século XXI, o período mais pacífico da história humana. Cresce o número
de democracias, multiplicam-se as missões de paz, a sociedade de
direitos afirma-se gradativamente. Ganha realidade o projeto kantiano,
expresso na "história com um propósito cosmopolita". É em torno da ideia
motriz kantiana que se encontra o melhor da tradição moderna: o homem é
um fim em si mesmo. A inviolabilidade do indivíduo, o respeito à
diferença e ao dissenso. O pensamento totalitário tem feito muito
barulho, mas tem sido continuamente derrotado.
A modernidade resulta de um itinerário de lucidez intelectual.
Lucidez da palavra e do gesto. Émile Zola e seu "J'Accuse...!" é
exemplar. Há muitas ideias em seu artigo, publicado em janeiro de 1898,
no diário "L'Aurore". Mas há, sobretudo, o gesto de defender um homem de
carne e osso, o capitão Dreyfus, e corrigir uma injustiça empiricamente
verificável. Lucidez usualmente exige um pouco de coragem. O caso
representou um alto custo pessoal para Zola, incluindo um período de
autoexílio na Inglaterra. A justiça se fez e o conceito de intelectual
público recebeu seu sentido contemporâneo. Cento e trinta anos antes,
Voltaire fez o mesmo no suplício de Jean Calas, comerciante protestante
executado na roda sob a falsa acusação de parricídio. Voltaire dedicou
dois anos à defesa da reabertura do caso. Ao cabo, a memória de Calas
foi reabilitada.
No século XX, lúcidos foram George Orwell e Albert Camus. Orwell foi,
na definição de Lionel Trilling, essencialmente um homem virtuoso,
apegado à escrita objetiva, admirador do bom senso das pessoas comuns.
Dizia que há coisas tão estúpidas que apenas um intelectual poderia
acreditar nelas, um homem comum jamais o faria. Socialista ou liberal,
manteve-se fiel à defesa da dignidade da vida humana diante do Estado ou
de qualquer força que esmaga o indivíduo em nome da razão. Isso está no
"1984", quando Winston Smith, destruído pela tortura, diz a O'Brian:
"Algo vos derrotará, a vida vos derrotará". O'Brian retruca: "Alguma
razão para que isso aconteça?" "Não sei o quê, um espírito, um
princípio... não sei... o espírito do homem", responde Smith.
O ponto é o "não sei o quê". Seu olhar é sobre o espelho: "Era
espantosa a curvatura da espinha". Ele percebe aí o destino do "homem
novo". Ele aprecia a classe média baixa e seus valores, "o amor pela
privacidade pessoal, pela ordem, pelos bons modos, o ideal de equidade e
responsabilidade", nas palavras de Trilling. Por fim, sua empatia com
os mais pobres, de "carne e osso". Orwell viveu como um vagabundo nos
submundos de Londres, internou-se em albergues e alistou-se como
voluntário na guerra civil espanhola. Morreu cedo. Trilling diz que não
foi um gênio. Não sei bem o que é um gênio.
A respeito de Camus, Sartre errou. Na resposta que ofereceu a Camus,
na polêmica que se seguiu à publicação de "O Homem Revoltado", usou de
um argumento "ad hominem" vulgar, sugerindo que Camus revelara
"incompetência filosófica" e seu livro era feito de "conhecimentos de
segunda mão". Sugere que a moralidade de Camus pertence ao passado. A
história revelaria o oposto. Sartre prosseguiu fiel ao sovietismo. Em
1954, após uma viagem à URSS, disse ter encontrado por lá a mais
completa liberdade de expressão. Só viria a revisar sua posição, ainda
que parcialmente, quando os tanques soviéticos invadiram a Hungria, em
1956.
A moralidade de Sartre é que ficou pelo caminho. Sua ruptura com
Camus é vista frequentemente como um subproduto da Guerra Fria. Bobagem.
Sartre pertence à "démarche" da Guerra Fria. Camus é sua negação.
Vargas Llosa define seu argumento dizendo que "toda tragédia política
começou num dia em que se admitiu que era lícito matar um homem em nome
de uma ideia". O sentido é o mesmo que o fez recusar o suicídio, em "O
Mito de Sísifo", e agora o leva à crítica da revolução e seu suposto
direito de matar. Nossa consciência do absurdo, da razão falha, nossa
propensão ao autoengano, favorece a vida, não o contrário. O seu
"pensamento do meio-dia" é, antes de tudo, de um apelo à humildade
intelectual.
Na época atual, dificilmente um acontecimento como o embate Sartre X
Camus despertaria algum interesse público. Algo também obtido pelos
artigos de Hannah Arendt, no início dos anos 60, sobre o julgamento de
Eichmann, na "New Yorker", tema do filme de Margarethe von Trotta.
Talvez o último artigo a surtir certo efeito global foi, sugestivamente,
o texto de Francis Fukuyama "O Fim da História", de 1989, logo antes do
grande boom da internet. A atividade intelectual sofreu um efeito de
diluição e perda de relevância no oceano de informação do mundo-mídia.
Quem sabe seu destino seja tornar-se, essencialmente, um produto de
entretenimento. Alto entretenimento, bem entendido, eventualmente com
alguma função educativa.
Vargas Llosa tem razão ao dizer que a atividade intelectual é hoje
mais trivial. Pesquisa conduzida pela Nielsen/McKinsey revelou que o
número de blogs, na internet, ao redor do mundo, cresceu de 36 para 200
milhões, desde 2006. A rápida progressão da internet faz que todos nós,
de algum modo, nos tornemos intelectuais. Apareceu mesmo o "intelectual
Facebook", espécie surgida nas redes sociais. Ele eventualmente consegue
dizer tudo o que deseja em 200 caracteres, talvez cometa menos erros do
que muitos intelectuais cometeram no passado. Se o fizer, estaremos
protegidos, visto que pouca gente lhe prestará atenção.
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* Fernando Luís Schüler é doutor em filosofia (UFRGS), curador do projeto Fronteiras do Pensamento e diretor-geral do Ibmec do Rio
Fonte: Valor Econômico on line, 23/08/2013
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