Sérgio Augusto*
Aprendi com Santo Agostinho que foi Santo Ambrósio quem
inventou a leitura silenciosa. Consta que até o século 4 as pessoas liam
em voz alta, vocalizando o texto, para que a maioria, analfabeta,
também pudesse usufrui-lo. A leitura, deduzo, parecia uma oração, não o
ato de introspecção que dela não consigo dissociar. Sou capaz de ler e
escrever ouvindo música instrumental, mas intromissões vocais costumam
atrapalhar minhas ideias, me desconcentram. Em determinadas
circunstâncias, qualquer palavra falada adquire a dimensão de uma
algaravia. O silêncio é o meu hábitat mental natural.
Não me sinto um excêntrico. No mundo cada vez mais barulhento,
cacofônico e compulsivamente loquaz em que vivemos, a preferência pelo
resguardo acústico não caracteriza uma anomalia, justo o contrário, é
anseio de muita gente. Não chegaria ao exagero de Harold Cleaver, o
epônimo protagonista de um romance de Tim Parks, que jogou tudo para o
alto e foi viver recluso no cume de uma montanha no Tirol. Inutilmente,
diga-se. Envolvido exclusivamente pela sonoridade da natureza, passou a
ouvir mais alto o pulsar do seu coração e o ruído dos pensamentos.
Parafraseando Villa-Lobos, o barulho de fora não tem nada a ver com o
barulho de dentro (da cabeça).
A figura de Cleaver foi a primeira coisa de que me lembrei ao tomar
conhecimento do próximo ciclo de palestras organizado pelo prof. Adauto
Novaes, "Mutações: O Silêncio e a Prosa do Mundo", que daqui a quatro
dias se inicia no Rio e em São Paulo. Também me lembrei de Hans Karl
Bühl, protagonista de uma cômica parábola de Hugo von Hoffmansthal, que
descobre entender melhor a si próprio quando está calado, da atriz muda
de Quando Duas Mulheres Pecam, de Ingmar Bergman, e de Kaspar Hauser.
Silêncio e mutismo são dois temas correlatos que às vezes se cruzarão
ao longo das 25 conferências programadas, quase todas centradas sobre a
dicotomia (e a relação dialética) entre fala/palavra e silêncio. Que eu
saiba, Kaspar Hauser e seu amedrontador mutismo não serão abordados,
mas Hurbinek, o estranho menino mudo de três anos de idade, vizinho de
cama de Primo Levi em Auschwitz, sim - pelo prof. Renato Lessa, que
escolheu para discutir as sutis relações entre a verdade e o silêncio.
Nunca se falou tanto no mundo. Somos a civilização dos falastrões, da
tagarelice dos celulares, da conversa fiada online, do Twitter, do
Facebook. Só nos Estados Unidos registrou-se um aumento de quase 7
trilhões de palavras faladas depois da invenção da internet.
"Nunca se falou tanto, nunca se pensou tão pouco", observa Novaes no
texto de apresentação do ciclo, que não pretende estabelecer um Fla-Flu
entre a fala ("o corpo do espírito"), sem a qual "seremos reduzidos a
seres sem política, sem tolerância, sem poesia, em síntese, sem o
humano", e a recusa a falar, mas sobretudo refletir sobre a incapacidade
contemporânea de aceitar o silêncio, que está longe de ser uma negação
da palavra, e, conforme irá lembrar o foucaltiano Frédéric Gross, e não
será o único a fazê-lo, também dá sustança ao pensamento.
Ao liberar nosso espírito "constantemente parasitado por ruídos de
fundo, saturados de informações constantemente renovadas, sempre
cativado por imagens ou textos que se sucedem numa tela", o silêncio
interior favorece a reflexão, amplia a profundidade analítica. Silêncio e
palavra são faces da mesma moeda, "gestos que querem significar algo e
estão mutuamente implicados", sintetiza Newton Bignotto, cuja palestra
terá como eixo as experiências vividas por escritores, músicos,
pensadores e místicos que "preferiram o silêncio ao burburinho dos
signos como uma maneira de desvendar a natureza das descobertas que
almejavam comunicar".
Até por desconfiar do poder das palavras na deformação das ideias,
Paul Valéry recolheu-se a um longo silêncio intelectual e amoroso,
durante o qual, porém, produziu seus preciosos Cahiers. Não caberia
compará-lo a Rimbaud, que desistiu de escrever aos 20 anos, mas alguma
afinidade entre ambos existe. Outros foram mais radicais, silenciando-se
com o suicídio (Kleist, Lautréamont, para citar os dois destaques no
pioneiro ensaio de Susan Sontag, A Estética do Silêncio) ou sendo afinal
"punidos" pela loucura (Hölderlin, Artaud). Mais exemplos ilustram esse
aspecto do silêncio como ato de rebeldia, resistência, integridade e
recusa a compactuar com o prosaico e a mediocridade em dois dos
primeiros seis estudos reunidos por George Steiner em Linguagem e
Silêncio.
Pela taxonomia de Abbé Dinouart, autor de L'Art de se Taire, existem
dez espécies de silêncio, do prudente ao estúpido. Para ele, o primeiro
grau da sabedoria consiste em saber calar-se; o segundo, em saber falar
pouco e moderar-se no discurso; o terceiro, em saber falar muito sem
falar mal e sem muito falar. Não conheço ninguém que discorde disso.
Ludwig Wittgenstein na certa assinaria embaixo.
Mais até do que John Cage e sua, com perdão da palavra, emblemática
peça "musical" com 4 minutos e 33 segundos de silêncio, o filósofo
vienense promete ser a referência com maior trânsito entre os
palestrantes. Quem conhece o sétimo e último aforismo do Tractatus
Logico-Philosophicus sabe por quê. "Sobre o que não se pode falar,
deve-se calar", propõe o aforismo, a mais expressiva denúncia dos
limites da palavra, do inefável, do inexprimível, a mais manjada
iniciação filosófica ao silêncio.
Wittgenstein e seu Tractatus serão meticulosamente explorados por um
expert no assunto, o prof. João Carlos Salles, da Universidade Federal
da Bahia. O tratado, publicado em 1921 e mais tarde criticado pelo
próprio filósofo, estrutura-se pela ausência de uma segunda parte, por
sinal, a mais importante, segundo Salles, e que justamente por isso "não
foi nem poderia ser escrita, embora seja seu ponto de equilíbrio ou,
quem sabe, seu abismo".
E agora, como Wittgenstein e Hamlet propuseram, silenciemos.
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* Cronista do Estadão
Fonte: Estadão on line, 18/08/2013
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