domingo, 18 de agosto de 2013

O homem com medo de utopia

Paulo Ghiraldelli Jr.*
 
Conheço pessoas que possuem pavor de utopias. Eles temem as utopias não pelas utopias, mas porque utopias atraem utópicos e, não raro, alguns utópicos querem fazer o que não se pode fazer: forjar a realidade como cópia da utopia. Ora, utopias realizadas podem muito bem ser o inferno na terra. As utopias embutidas no nazismo e no comunismo nos conduziram do mal ao pior. Utopias interiores à social democracia se saíram melhores, mas não deixam de dar grandes dores de cabeça. Assim, encontramos o conservador liberal que acaba por dizer: “não me venha com utopias!” Esse conservador liberal é o tipo de pessoa que diz amar a liberdade. Conta que os “bonzinhos”, os que querem realizar utopias, transformam a justiça pedida em injustiça e a liberdade em opressão. Ele está certo?

O conservador que diz que ama a liberdade parece trair a si mesmo. Diz não gostar de utopias, mas ele mesmo carrega no braço alguma coisa semelhante. Nada há de mais utópico que a situação na qual ele põe fé. Ele fala de uma sociedade articulada ao chamado “estado mínimo”. A impressão que tenho é que deixa de lado o melhor filósofo libertário conservador de todos os tempos, Robert Nozick.

Nozick escreveu muitos livros, mas eu best seller  foi Anarquia, estado e utopia, dos anos setenta. Ele não colocou “anarquia” e “utopia” no título à toa. Ele realmente imaginava a situação desejada algo que poderia lembrar a anarquia, mas que, ainda assim, mantinha um tipo de estado – o estado mínimo. Ora, para ele, isso era uma utopia. Ele insistiu: é um quadro que está na cabeça de “visionários e sonhadores”. Talvez ele estivesse dizendo, com isso, algo como “não façam isso em casa”. Mas ele não disse explicitamente isso. Além do mais, muitos conservadores amantes da liberdade individual não o leram, e pegaram a ideia de “estado mínimo” de economistas, e estes, sabemos bem, não titubeiam em descrever seus modelos como científicos e perfeitamente realizáveis.
Assim, um conservador que diz que ama a liberdade e teme utopias, deveria ficar atento para o fato de que há utopias que podem querer se realizar e que estão no interior dos projetos que defende. Deveria pensar que há os que – como Reagan e Thatcher – em um determinado momento funcionaram como Lênin: quiseram fazer na prática aquilo que seria atrativo para sempre se ficasse só no papel. Hoje em dia o conservador liberal não fala mais desses governantes. Mas não fala porque esses governantes, ao tentarem colocar na prática a utopia do “estado mínimo”, não fizeram tão diferente do que Lênin fez e deixou outros – Stalin à frente – continuar fazendo, ou seja, forjando a marteladas a realidade de modo a fazer brotar a estátua da utopia preferida. E isso não foi nada alvissareiro.

O liberal conservador diz ter medo de utópicos, mas, se lembramos disso tudo, temos de dizer que esse temor não é autêntico. Ele é antes de tudo conservador, atavicamente conservador, e bem menos liberal do que diz, por isso mesmo, não possui restrições aos economistas ligados ao projeto Reagan-Thatcher que fez água tanto quanto o projeto do socialismo de tipo soviético. A diferença é que o projeto de tipo soviético se fez em função de construir um império, enquanto que o projeto Reagan-Thatcher foi criado já em cima de um império. Assim, Reagan e Thatcher mataram menos que Stalin. Este segundo teve de fazer o serviço que as potências capitalistas já haviam feito. O capitalismo de estado fez em poucos anos o martírio que o capitalismo levou séculos para deixar como marca.

Tentando ignorar tudo isso, o conservador liberal se acredita como vanguardeiro, se entende como rebelde libertário e, aqui no Brasil, conta para a juventude antes uma meia verdade que uma história digna de ser contada. O que conta é que se a juventude quiser ser juventude e rebelde dever ser como ele. Seria paladino de um mundo utópico, mas que não se diria utópico. Ele não está correto fazendo isso. Ele é sim construtor de sociedades utópicas que pregam a liberdade. Mas ao falar em liberdade individual se esquece que, no fundo, está também falando de liberdade de mercado de um modo pouco promissor à liberdade individual. Como temeroso em relação às utopias, deveria ser temeroso também aos seus gurus e em relação às suas utopias. Seus gurus não são tão menos arredios ao projeto prático do que Lênin foi.
---------------------
*Paulo Ghiraldelli, 55, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ –  
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário