Conheço
pessoas que possuem pavor de utopias. Eles temem as utopias não pelas
utopias, mas porque utopias atraem utópicos e, não raro, alguns utópicos
querem fazer o que não se pode fazer: forjar a realidade como cópia
da utopia. Ora, utopias realizadas podem muito bem ser o inferno na
terra. As utopias embutidas no nazismo e no comunismo nos conduziram do
mal ao pior. Utopias interiores à social democracia se saíram melhores,
mas não deixam de dar grandes dores de cabeça.
Assim, encontramos o conservador liberal que acaba por dizer: “não me
venha com utopias!” Esse conservador liberal é o tipo de pessoa que diz
amar a liberdade. Conta que os “bonzinhos”, os que querem realizar
utopias, transformam a justiça pedida em injustiça e a liberdade em
opressão. Ele está certo?
O conservador que diz que ama a
liberdade parece trair a si mesmo. Diz não gostar de utopias, mas ele
mesmo carrega no braço alguma coisa semelhante. Nada há de mais utópico
que a situação na qual ele põe fé. Ele fala de uma sociedade articulada
ao chamado “estado mínimo”. A impressão que tenho é que deixa de lado o
melhor filósofo libertário conservador de todos os tempos, Robert
Nozick.
Nozick escreveu muitos livros, mas eu best seller foi Anarquia, estado e utopia,
dos anos setenta. Ele não colocou “anarquia” e “utopia” no título à
toa. Ele realmente imaginava a situação desejada algo que poderia
lembrar a anarquia, mas que, ainda assim, mantinha um tipo de estado – o
estado mínimo. Ora, para ele, isso era uma utopia. Ele insistiu: é um
quadro que está na cabeça de “visionários e sonhadores”. Talvez ele
estivesse dizendo, com isso, algo como “não façam isso em casa”. Mas ele
não disse explicitamente isso. Além do mais, muitos conservadores
amantes da liberdade individual não o leram, e pegaram a ideia de
“estado mínimo” de economistas, e estes, sabemos bem, não titubeiam em
descrever seus modelos como científicos e perfeitamente realizáveis.
Assim, um conservador que diz que ama a
liberdade e teme utopias, deveria ficar atento para o fato de que há
utopias que podem querer se realizar e que estão no interior dos
projetos que defende. Deveria pensar que há os que – como Reagan e
Thatcher – em um determinado momento funcionaram como Lênin: quiseram
fazer na prática aquilo que seria atrativo para sempre se ficasse só no
papel. Hoje em dia o conservador liberal não fala mais desses
governantes. Mas não fala porque esses governantes, ao tentarem colocar
na prática a utopia do “estado mínimo”, não fizeram tão diferente do que
Lênin fez e deixou outros – Stalin à frente – continuar fazendo, ou
seja, forjando a marteladas a realidade de modo a fazer brotar a estátua
da utopia preferida. E isso não foi nada alvissareiro.
O liberal conservador diz ter medo de
utópicos, mas, se lembramos disso tudo, temos de dizer que esse temor
não é autêntico. Ele é antes de tudo conservador, atavicamente
conservador, e bem menos liberal do que diz, por isso mesmo, não possui
restrições aos economistas ligados ao projeto Reagan-Thatcher que fez
água tanto quanto o projeto do socialismo de tipo soviético. A diferença
é que o projeto de tipo soviético se fez em função de construir um
império, enquanto que o projeto Reagan-Thatcher foi criado já em cima de
um império. Assim, Reagan e Thatcher mataram menos que Stalin. Este
segundo teve de fazer o serviço que as potências capitalistas já haviam
feito. O capitalismo de estado fez em poucos anos o martírio que o
capitalismo levou séculos para deixar como marca.
Tentando ignorar tudo isso, o
conservador liberal se acredita como vanguardeiro, se entende como
rebelde libertário e, aqui no Brasil, conta para a juventude antes uma
meia verdade que uma história digna de ser contada. O que conta é que se
a juventude quiser ser juventude e rebelde dever ser como ele. Seria
paladino de um mundo utópico, mas que não se diria utópico. Ele não está
correto fazendo isso. Ele é sim construtor de sociedades utópicas que
pregam a liberdade. Mas ao falar em liberdade individual se esquece que,
no fundo, está também falando de liberdade de mercado de um modo pouco
promissor à liberdade individual. Como temeroso em relação às utopias,
deveria ser temeroso também aos seus gurus e em relação às suas utopias.
Seus gurus não são tão menos arredios ao projeto prático do que Lênin
foi.
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*Paulo Ghiraldelli, 55, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ –
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br
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