Primeiro quase não havia o tempo. Ainda que o avanço do dia pudesse
ser medido pelos relógios de sol e da noite pelos de água (parecidos com
esses que ainda enfeitam shopping centers), os horários mais confiáveis
ainda eram a alvorada, o sol a pino e o anoitecer. Por milênios, para
as civilizações, medir o tempo - exceto os responsáveis pelos sinos das
igrejas que anunciavam as missas - nunca foi propriamente uma obsessão.
Então, em algum ponto entre os séculos XVIII e XIX, a história mudou.
Máquinas e fábricas e, mais tarde, trens e cabos telegráficos lançaram o
mundo em um ritmo de vida com relógios, horários e pressa, muita pressa
- a revolução industrial.
Dois séculos depois, a humanidade vive uma doença do tempo, afirma o
sociólogo alemão Hartmut Rosa, em "Beschleunigung und Entfremdung"
(aceleração e alienação), ensaio ainda não publicado no Brasil. Fazendo
eco a uma reclamação generalizada, ele aponta que o excesso de
atividades anulou os ganhos que a tecnologia trouxe ao tempo das
pessoas. O resultado é uma epidemia mundial de estresse, ansiedade e
insônia.
"Vivemos para realizar tantas opções quanto possível da paleta
infinita de possibilidades que a vida nos apresenta", diz. Viver
intensamente a vida se tornou o principal objetivo do nosso tempo. "No
fim do dia, nunca fizemos todas as coisas que deveríamos ter feito. Não
trabalhamos o suficiente, não nos importamos o suficiente com as nossas
crianças e pais, não estamos em dia com as notícias. O número de
dimensões em que é suposto 'otimizar' a nossa vida, literalmente,
explodiu nos últimos anos e não importa o quão rápidos e eficientes
somos, nunca é o suficiente."
Rosa, autor de outros trabalhos sobre a velocidade na vida moderna e
professor da Universidade de Jena, na Alemanha, aponta que nosso atual
ritmo de vida é fruto de três tipos de aceleração: mecânica, da mudança
social e do passo da vida. Iniciada com a revolução industrial, a
aceleração mecânica modificou as comunicações, a produção e os
transportes. Como consequência, provocou mudanças nas sociedades que
alteraram o ritmo da vida. Resultado: mais aceleração.
Se de Júlio César a Napoleão a velocidade máxima para alguém ir de um
ponto ao outro continuou a mesma - a de um cavalo -, os motores,
primeiro nos trens e navios no século XIX, depois nos aviões e
automóveis cem anos depois, encurtaram distâncias e aproximaram o mundo.
O mesmo ocorreu nas comunicações a partir da invenção do telégrafo. As
fábricas adotaram os horários para organizar a produção e a humanidade
ganhou uma companhia: os relógios. Os operários agora precisavam morar
perto do trabalho e isso os agrupou nas cidades, criando as metrópoles
modernas.
Vistas na época, essas mudanças traziam a promessa de que seres
humanos finalmente seriam capazes de moldar sua vida em comum e criar
sociedades que os pensadores clássicos e da Renascença tinham imaginado.
O resultado deveria ser uma era de razão em que a felicidade, a
prosperidade e a liberdade deveriam ser para todos. No entanto, desde o
início, quanto mais a tecnologia economizava tempo, mais ocupados todos
se tornaram.
"A lógica da competição militar e dos Estados teve um papel nisso, e a
ideia de que podemos ter algo parecido com uma 'vida eterna antes da
morte' se a gente for rápido o bastante para fazer um número indefinido
de coisas antes de morrer, também", explica Rosa. Mas o papel mais
importante é do capitalismo. "Para crescer, economias capitalistas
precisam acelerar e inovar incessantemente. Se param de crescer e
acelerar, perdem empregos, empresas fecham as portas, as receitas do
Estado entram em declínio e, como consequência, o sistema político perde
legitimidade."
Esse processo, que já seguia em ritmo forte desde a revolução
industrial, adquiriu uma velocidade alucinante a partir dos anos 1970,
com a revolução dos computadores. Cada nova tecnologia passou a ser
anulada pela produtividade. E com a globalização não só trabalhadores,
mas também países, entraram em competição. "Como o trabalho cada vez
mais especializado aumenta a produção, aumenta a quantidade de produtos e
serviços que precisam ser consumidos", diz a dupla de sociólogos
americanos John P. Robinson e Geoffrey Godbey. O resultado é um impulso
para o consumo constante, seja de produtos, serviços ou viagens.
Em resposta, a própria percepção do tempo começou a mudar. James Tien
e James Burnes, professores de matemática aplicada do Instituto
Politécnico Rensselaer, nos Estados Unidos, analisaram o crescimento das
estatísticas de produtividade e emissão de patentes em 1897 e 1997 para
concluir que a percepção da passagem do tempo para um jovem de 22 anos é
8% mais rápida do que para alguém da mesma idade um século atrás. Para
alguém com 62 anos, a vida hoje se passa 7,69 vezes mais rápida. A
aceleração, dizem outros estudos, continua aumentando essa sensação.
As consequências são conhecidas de médicos desde quase o surgimento
das máquinas. No fim do século XIX, denunciava-se uma epidemia de
neurastenia, causada pelo ritmo de vida nas cidades. Com o avanço dos
estudos, Larry Dossey, médico americano, criou, nos anos 80, a expressão
"doença do tempo" para descrever a crença obsessiva de que o tempo está
passando e a única solução é acelerar o ritmo de vida. Dois psicólogos
cardíacos americanos, Diane Ulmer e Leonhard Schwartzburd, da
Universidade de Berkeley, concluíram em um estudo, "Coração e Mente",
que a pressa extrema e constante pode afetar a personalidade e as
relações sociais, levando também a estresse, insônia, problemas
cardíacos e de concentração.
A sensação de pressa também cria um estado de busca de ganhos
imediatos, mesmo se há chance de uma recompensa maior no futuro, e reduz
a propensão para fazer economia. "Descobrimos que até mesmo a exposição
a símbolos de fast-food pode aumentar automaticamente a pressa, mesmo
sem a pressão do tempo", diz Chen-Bo Zhong, psicólogo canadense da
Universidade de Toronto que conduziu, com Sanford E. DeVoe, o estudo
"Fast-Food e Impaciência". No Japão, onde a pressa se junta à pressão
social, colapsos são tão comuns que há no vocabulário uma palavra,
"karoshi", para os casos de trabalhadores que morrem com sobrecarga de
trabalho.
Economistas se deram conta do fenômeno depois que o sueco Staffan
Linder (1931-2000), publicou, nos anos 70, "A Classe Ociosa
Atormentada", prevendo que os trabalhadores se tornariam atarefados
demais para o lazer. Décadas depois, não só as previsões se confirmaram -
segundo a socióloga americana Juliet Schor, 37% do tempo de lazer foi
perdido nas nações industrializadas desde meados dos anos 70 - como a
aceleração tecnológica mudou drasticamente a economia.
"Tem sempre um mercado aberto. Tem que estar sempre ligado no celular
ou Skype", comenta Gabriel Franke, operador de mesa da corretora XP
Investimentos. Com o "home broker" e as bolsas eletrônicas, cotações
mudam segundo após segundo, afetando todos, e as negociações nos
mercados podem seguir em qualquer hora ou lugar. "Às vezes tem cliente
que está posicionado numa operação que tem influência de mercado lá fora
e aí fico de olho mesmo. E alguns mercados, como o de moedas, nunca
fecham." Tempo para o lazer? "Acabo tendo algum no domingo."
A percepção da passagem do tempo para um jovem
de 22 anos é 8% mais rápida do que para
alguém da mesma idade um século atrás
Os efeitos são ainda mais sentidos no mundo digital. Segundo Eric
Schmidt, CEO do Google, o volume de informação produzida entre o início
das civilizações e 2003 hoje é criado a cada dois dias. A capacidade de
processamento dos computadores, seguindo a chamada Lei de (ex-presidente
da Intel Gordon) Moore, continua a dobrar a cada 18 meses. Mas também
há aceleração drástica no crescimento da população (o número de pessoas
nascidas desde 1950 é o mesmo dos primeiros quatro milhões de anos da
humanidade) e até no número de doenças descobertas (28 novas infecciosas
desde os anos 70, de acordo com a Organização Mundial de Saúde).
A aceleração, porém, não é a mesma para todos. Em um estudo chamado
"A Geografia do Tempo", o psicólogo social americano Robert Levine, da
Universidade da Califórnia, pesquisou a maneira como os habitantes de 31
cidades pelo mundo vivenciam o tempo. Em um exercício curioso, os
pesquisadores mediram a velocidade das pessoas para percorrer um trecho
de 18 metros. Os japoneses caminham mais apressados. Os brasileiros -
ele viveu por um ano no país e se sentiu torturado pela falta de
pontualidade local - ficaram com o 28º lugar. Em um trabalho parecido,
pesquisadores da Universidade de Hertfordshire, na Inglaterra,
concluíram que a cada dez anos as pessoas faziam o mesmo trecho um
segundo mais rápido.
"Embora eu não tenha dados empíricos, acredito que o ritmo acelerou
no país, mas seletivamente", observa Levine. "À medida que a agitação
atual demonstra, o crescimento econômico permanece limitado a certas
pessoas e lugares e, na maioria das vezes, o mesmo pode ser dito sobre o
ritmo resultante da vida."
Empregos, relacionamentos, amizades, até laços familiares, nada mais é
para sempre. Um aspecto positivo é que as sociedades se tornaram mais
heterogêneas, com o reconhecimento das minorias, direitos das mulheres,
estilos de vida alternativos e novas formas de relacionamento. Quanto
mais a tecnologia se acelera, mais rapidamente os países, os ocidentais,
por enquanto, se tornam mais plurais. Hoje, 585 milhões de pessoas
vivem em países onde o casamento gay é legalizado. Doze anos atrás, esse
número era zero. Em junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos retirou
algumas proteções aos negros americanos, considerando que não são mais
necessárias.
O lado negativo é o que levou Rosa a escrever o ensaio, um processo
que ele chama de "alienação". O termo, tomado emprestado de Karl Marx, é
o resultado final das mudanças sociais, quando o próprio ritmo da vida é
alterado, exigindo novas tecnologias, que vão criar mais mudanças
sociais e mais alterações do ritmo da vida, como em um círculo que se
retroalimenta. "Alienação envolve um estado em que as pessoas já não se
sentem em casa no seu mundo porque têm que mudar de lugar, trabalhos,
ferramentas, rotinas, amigos e, talvez, até mesmo famílias o tempo
todo", aponta Rosa.
Esse fenômeno estaria por trás de alguns conflitos sociais da
atualidade. Parte das pessoas, segundo ele, não consegue dar conta das
complexidades do mundo atual e busca refúgio no conservadorismo. Se não
se tornam dogmáticas, radicalizando posições como no conflito permanente
entre democratas e republicanos nos Estados Unidos, propõem, como
ocorre atualmente na Alemanha, o abandono das discussões em nome da
rápida adaptação às mudanças.
Má notícia para os políticos. Como a sociedade se move a um ritmo
cada vez mais alucinante, há um abismo entre a política e as pessoas.
"Essa fenda é a consequência de uma falta de sincronia entre o ritmo da
política, de um lado, e a velocidade da mudança social no outro. A
política tornou-se lenta demais", reflete o sociólogo alemão. "Em muitos
casos, a política não é mais o marca-passo das tendências de mudança
social, só está preocupada em apagar incêndios."
Segundo CEO do Google, o volume de
informação produzida entre o início das civilizações
e 2003 é criado, hoje, a cada dois dias
Trata-se de uma ameaça às democracias. Os políticos, afirma, estão
deixando de ser relevantes, abrindo espaço ao surgimento de líderes
populistas. Os argumentos saem de cena em troca de ressentimentos e
instintos irracionais. Seria uma das razões que atualmente levam
multidões às ruas em todo o mundo. "O nosso sistema é muito
burocratizado e com várias normas que no fim das contas afastam as
pessoas", faz coro o professor Rafael Alcadipani, coordenador de
pesquisas organizacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), que tem
estudado os protestos recentes no país. "A política precisa dar
respostas e isso não tem acontecido."
Seja com os artistas e escritores do romantismo, transcendentalistas
ou os do Arts & Crafts, movimentos pela desaceleração acompanham a
própria história da aceleração. Sua versão moderna desde os anos 90
prega a opção pela lentidão. O pioneiro, o movimento "slow-food" (comida
lenta), foi fundado pelo italiano Carlo Petrini em 1986 em reação à
presença de uma filial do McDonald's no centro histórico de Roma e reage
ao fast-food. Inspirados nos viajantes-escritores do século XIX, os
praticantes do "slow-travel" (viagem lenta) advogam o envolvimento dos
turistas com os locais visitados. Artistas do "slow-art" (arte lenta)
produzem - e também defendem que seja assim a apreciação das obras - com
todo o tempo do mundo.
Há ainda a "slow-fashion" (rejeita as roupas produzidas em massa,
preferindo as costuradas à mão), o "slow-data" (chega de produzir tanta
informação) e o "slow-stocks" (prega recompensas do mercado aos
acionistas que mantiverem suas ações por mais tempo). Cada um leva a seu
campo a luta contra o relógio. E, como tudo começou com a tecnologia,
por que não reduzir o ritmo da ciência?
"Precisamos ter tempo para pensar muito cuidadosamente sobre cada
avanço científico - a fim de descobrir a melhor maneira de usá-lo no
mundo real", afirma Carl Honoré, escocês radicado no Canadá, autor do
best-seller "Devagar". Em 1990, ele esperava um voo no aeroporto de
Roma, quando leu um texto chamado "A História de Dormir de um Minuto",
em que autores condensavam clássicos das histórias infantis para pais
sem tempo. Foi o ponto de partida para se tornar um militante da
desaceleração. "Eu não acho que devemos reduzir a ciência. Pelo
contrário. Eu acho que precisamos usar a ciência de forma mais sensata. E
a sabedoria e a lentidão andam de mãos dadas."
Outra iniciativa: na Inglaterra e nos Estados Unidos, foi criado o
"Banco do Tempo", onde pessoas trocam serviços, como pequenos consertos e
cuidar de crianças e idosos, por um certo número de horas que dá
direito a contratar outras pessoas para as próprias necessidades. A
solução lembra a premissa do filme "O Preço do Amanhã", do diretor
neozelandês Andrew Niccol, no qual cada humano precisa comprar mais
tempo para seguir vivendo.
"Eu sou muito cético quanto a esses movimentos", rebate Hartmut Rosa.
"Na verdade, sempre houve movimentos sociais e culturais contra a alta
velocidade da modernidade. Por exemplo, em Paris, por volta de 1900,
houve uma moda de andar com tartarugas em uma coleira, como forma de
protesto. Mas, no fim, a velocidade sempre vence."
Resta ainda a pergunta: aonde a aceleração nos levará? Alguns
estudiosos como Raymond Kurzweil, otimistas, apontam para a
singularidade tecnológica, um grande salto científico, previsto para o
século XXI, capaz de resolver quase todos os problemas - econômicos,
ambientais, sociais. Para o sociólogo alemão, contudo, o pior perigo é a
aceleração se tornar uma forma de totalitarismo. E ele não tem nenhuma
sugestão para controlar o monstro. "No momento eu não tenho sequer um
esboço de como isso poderia ser feito."
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