quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O cristão e a cultura dos ídolos

Timothy Keller*
 

Uma estranha melancolia 

Depois do início da crise económica global, em meados de 2008, seguiu-se uma série de suicídios de indivíduos até então ricos e bem relacionados. O diretor financeiro de Freddie Mac, a Empresa Federal de Empréstimos para Habitação, enforcou-se na cave da sua casa. O presidente da díreção da Sheldon Good, uma das principais empresas de leilões de propriedades imobiliárias dos EUA, deu um tiro na cabeça, ao volante do seu Jaguar vermelho. Um agente financeiro francês, que investia a riqueza de muitas das famílias importantes e monárquicas da Europa, e que perdera 1,4 mil milhões de dólares do dinheiro dos seus clientes, no esquema Ponzi de Bernard Madoff, cortou os pulsos e morreu no seu escritório de Madison Avenue. Um quadro superior dinamarquês do Banco HSBC enforcou-se no roupeiro da sua suite de 500 libras por noite, em Knightsbridge, Londres. Quando um executivo da Bear Stearns soube que não seria contratado por JPMorgan Chase, que comprara a sua empresa falida, tomou uma overdose de drogas e saltou do vigésimo nono andar do edifício onde se encontra o seu escritório. Um amigo declarou: «Essa coisa da Bear Stearns ... deu-lhe cabo do espírito». Mais parecia uma lúgubre reminiscência dos suicídios ocorridos na sequência do crash da bolsa, em 1929. 

Na década de 1830, quando Alexis de Tocqueville escreveu as suas famosas observações sobre a América, referiu uma «estranha melancolia, que paira sobre os seus habitantes ... no meio da abundância». Os americanos pensavam que a prosperidade poderia saciar a sua sede de felicidade, mas essa esperança foi ilusória, visto que, acrescentou Tocqueville, «as alegrias incompletas deste mundo nunca «satisfarão o coração [humano]». Esta estranha melancolia manifesta-se de muitas formas, mas conduz sempre ao mesmo desespero de nunca se encontrar aquilo que se procura. 

Há uma diferença entre desgosto e desespero. O desgosto é uma dor para a qual existem fontes de consolação. O desgosto deriva da perda de uma coisa boa, entre outras, de tal modo que, se você sofre um revés na sua carreira, poderá encontrar conforto na família para ultrapassar as dificuldades. O desespero, porém, é inconsolável, visto que deriva da perda de uma coisa suprema e essencial. Quando você perde a fonte última do seu sentido da vida ou da sua esperança, não existem fontes. alternativas a que recorrer. O seu espírito fica destruído. 

Qual é a causa dessa «estranha melancolia», que permeia a nossa sociedade, mesmo durante os períodos de atividade frenética, e que se transforma em desespero total, quando a prosperidade diminui? Tocqueville diz que isso se deve ao facto de se extrair alguma «alegria incompleta deste mundo» e de se construir toda a sua vida sobre ele. É essa a definição de idolatria.

Uma cultura cheia de ídolos 

Para as pessoas hodiernas, a palavra idolatria evoca imagens de povos primitivos a inclinarem-se diante de estátuas. O livro neotestamentário dos Atos dos Apóstolos contém vivas descrições das culturas do antigo mundo greco-romano. Cada cidade adorava as suas divindades preferidas e construía santuários à volta de imagens de culto. Quando Paulo foi a Atenas, viu que esta estava literalmente cheia de imagens dessas divindades (Atos 17,16). O Pártenon de Atenas ofuscava tudo o resto, mas havia outras divindades representadas em cada espaço público. Havia Afrodite, a deusa da beleza; Ares, o deus da guerra; Ártemis, a deusa da fertilidade e da riqueza; Vulcano, o deus forjador e do fogo.

A nossa sociedade contemporânea não é fundamentalmente diferente dessas sociedades antigas. Cada cultura é dominada pela sua própria série de ídolos. Cada uma tem os seus «sacerdócios», os seus totens e os seus rituais. Cada uma tem os seus santuários - quer se trate de torres de escritórios, de spas e ginásios, de estúdios ou de estádios -, onde têm de se fazer sacrifícios, a fim de obter as bênçãos de uma boa vida e de afastar as catástrofes. Não serão esses os deuses da beleza, do poder, do dinheiro e da realização pessoal, precisamente aquelas coisas que assumiram proporções míticas na nossa vida individual e na nossa sociedade? Podemos não nos ajoelhar fisicamente frente à estátua de Afrodite, mas muitas jovens mulheres de hoje caem na depressão e em distúrbios alimentares devido a uma preocupação obsessiva com a sua imagem física. Podemos não queimar incenso a Ártemis, mas, quando o dinheiro e a carreira são elevados a proporções cósmicas, fazemos uma espécie de «sacrifício de crianças», negligenciando a família e a comunidade para alcançar um posto mais elevado na empresa, e para ganhar mais dinheiro e prestígio. 

Depois de o governador de Nova Iorque, Eliot Spitzer, ter destruído a sua carreira, devido ao seu envolvimento numa rentabilíssima rede de prostituição, David Brooks observou que a nossa cultura produziu uma classe de altos executivos com «desequilíbrios, no estabelecimento de relações». Têm aptidões sociais para se relacionarem verticalmente, para melhorar a sua posição junto de mentores e chefes, mas carecem das mesmas para estabelecer laços genuínos, em termos de relações horizontais, com os cônjuges, os amigos e a família. «Muitos candidatos às presidenciais afirmam que se candidatam em prole das famílias, embora toda a sua vida tenha sido gasta em campanhas, longe da sua própria família.» À medida que os anos passam, chegam à tremenda conclusão de que «a sua grandeza não é suficiente e de que se sentem sozinhos». Muitos dos seus filhos e cônjuges vivem à margem deles. Eles procuram, então, curar essa ferida. Envolvem-se em aventuras amorosas ou tomam outras medidas desesperadas para medicar o seu vazio interior. Depois, vem a rutura familiar ou o escândalo, ou ambos. 

Sacrificaram tudo ao deus do êxito, mas não foi suficiente. Na Antiguidade, as divindades eram sedentas de sangue e difíceis de apaziguar. Hoje, continua a ser da mesma maneira.

Ídolos do coração

Durante o boom do ponto.com [dot.com] e do setor imobiliário, e da euforia bolsista dos últimos anos, teria sido difícil tornar este assunto convincente. Contudo, a grande derrocada económica de 2008-2009 pôs a nu aquilo a que hoje chamamos «a cultura da ganância». Há muito tempo, S. Paulo escreveu que a ganância não era apenas uma atitude desaconselhável: «A ganância é idolatria» (Colossenses 3,5). O dinheiro, advertia ele, pode assumir atributos divinos e, nesse caso, a nossa relação com ele assemelha-se a uma prestação de culto e homenagem. 

O dinheiro pode transformar-se numa dependência espiritual, e, como todas as dependências, oculta, das suas vítimas, as suas verdadeiras proporções. Nós vamos correndo riscos mais numerosos e maiores para obter uma satisfação, a partir daquilo por que ansiamos, até chegarmos à rutura. Quando começamos a recuperar, perguntamos: «Em que estávamos nós a pensar? Como pudemos ser tão cegos?» Acordamos como pessoas com ressaca, que mal se conseguem lembrar da noite anterior. Mas porquê? Porque é que agimos de forma tão irracional? Por que razão perdemos completamente de vista aquilo que está certo? 

A resposta da Bíblia é que o coração humano é uma «fábrica de ídolos».  

Quando a maioria das pessoas pensa em «ídolos», tem em mente estátuas... ou, então, a próxima estrela pop ungida por Simon Cowell [o criador dos programas televisivos Ídolos ou Portugal tem talento]. Embora o culto tradicional aos ídolos ainda ocorra em muitos lugares do mundo, o culto interno aos ídolos, no nosso coração, é universal. Em Ezequiel 14,3, Deus diz, referindo-se aos anciãos de Israel: «Estas gentes puseram os seus ídolos no seu coração.» Tal como nós, os anciãos devem ter questionado esta acusação: «Ídolos? Mas que ídolos? Eu não estou a ver ídolos nenhuns.» Deus estava a dizer que o coração humano pega em coisas boas, como uma carreira bem sucedida, o amor, bens materiais, e até a família, e transforma-os em realidades últimas. O nosso coração deifica essas coisas como sendo o centro da nossa vida, porque, em nosso entender, elas poderão dar-lhe sentido e segurança, proteção e autorrealização, quando as alcançamos. 

o tema central do enredo d'O Senhor dos Anéis é o Anel do Poder do tenebroso Lorde Sauron, que corrompe quem quer que tente utilizá-lo, por muito boas que sejam as suas intenções. O anel é aquilo a que o professor Tom Shippey chama «um amplificador psíquico», que pega nos desejos mais profundos do coração e os amplia, fazendo-os assumir proporções ídolátricas. Alguns dos personagens bons do livro querem libertar os escravos, preservar o território nacional ou castigar os malfeitores com penas justas. Tudo isso são objetivos bons. O Anel, porém, fá-los desejar seja o que for para alcançá-los, sem olhar a meios. Transforma aquilo que era bom num absoluto, que derruba qualquer outra fidelidade ou valor. Quem usa o anel torna-se, cada vez mais, escravo e dependente do mesmo, pois um ídolo é uma coisa sem a qual nós não conseguimos viver. Temos de tê-lo e, por isso, ele impele-nos a quebrar regras que outrora respeitávamos, a fazer mal a outras pessoas e, até, a nós próprios, só para o obtermos. Os ídolos são dependências espirituais que conduzem a um mal terrível, tanto no romance de Tolkien como na vida real.

Qualquer coisa pode ser um ídolo 

Os momentos culturais, como aquele que estamos a viver, dão-nos uma oportunidade. Hoje, há muitas pessoas que acolhem melhor a admoestação bíblica de que o dinheiro se pode tornar muito mais do que dinheiro. Pode transformar-se num poderoso deus que altera a vida e molda a cultura, num ídolo que despedaça os corações dos seus adoradores. A notícia menos boa é que nós estamos tão fixos no problema da cobiça que, habitualmente, vemos «ali, naqueles ricaços», que não nos apercebemos da verdade mais fundamental: que qualquer coisa pode ser um ídolo, e já tudo foi idolatrado. 

O código moral mais famoso do mundo é o Decálogo, os Dez Mandamentos. O primeiro de todos é: «Eu sou o Senhor, teu Deus ... não haverá para ti outros deuses na minha presença» (Êxodo 20,3). Isso suscita uma pergunta natural: mas que significa isso de «outros deuses»? A resposta surge de imediato: «Não farás para ti imagem esculpida nem representação alguma do que está em cima, nos céus, do que está em baixo, na terra, e do que está debaixo da terra, nas águas. Não te prostrarás diante dessas coisas e não as servirás ... » (Êxodo 20,4-5). Isso inclui tudo o que existe no mundo! A maior parte das pessoas sabe que, do dinheiro, se pode fazer um deus. A maioria também sabe que, do sexo, também se pode fazer um deus. Contudo, qualquer coisa na vida pode servir de ídolo, de alternativa a Deus, de falso deus. 

Ouvi, em data recente, o relato de um oficial de campo do exército, que usava de uma disciplina física e militar tão exagerada com as suas tropas, que lhes quebrava o estado de espírito. Isso levou a uma rutura de comunicações durante o combate, que resultou em baixas. Conheci uma mulher que tivera vários períodos de pobreza na sua infância e juventude. Em adulta, ansiava tanto por ter segurança financeira, que menosprezou muitas boas relações, com algum potencial, para casar com um homem rico a quem não amava realmente. Isso levou a um rápido divórcio e a todas as dificuldades económicas que ela tanto temia. Ao que parece, alguns dos principais jogadores da liga de baseball, na ânsia não só de jogar bem, mas de chegar ao Passeio da Fama, tomaram esteróides e outras drogas. Como resultado, o seu corpo ficou mais alquebrado e a sua reputação mais manchada do que se tivessem querido ser bons, em vez de fabulosos. As próprias coisas, sobre as quais estas pessoas tentaram construir a sua felicidade, transformaram-se em poeira nas suas mãos, porque eles tinham baseado toda a sua felicidade nelas. Em cada um desses casos, uma coisa boa, dentre muitas outras, foi transformada numa realidade suprema, de tal modo que as suas exigências ultrapassaram todos os valores concorrentes. No entanto, os falsos deuses desapontam sempre, e, muitas vezes, de forma destrutiva.

Será errado querer tropas disciplinadas, segurança financeira ou proezas atléticas? De maneira nenhuma. Mas estas histórias apontam para um erro comum das pessoas, quando ouvem falar do conceito bíblico de idolatria. Pensamos que os ídolos são coisas más, mas isso quase nunca é verdade. Quanto maior for o bem, mais probabilidade temos de esperar que ele satisfaça as nossas necessidades e esperanças mais profundas. Qualquer coisa pode servir de falso deus, sobretudo, as melhores coisas da vida.

Como fazer um Deus 

O que é um ídolo? É qualquer coisa mais importante para nós do que Deus, qualquer coisa que absorve o nosso coração e a nossa imaginação mais do que Deus, qualquer coisa da qual tentamos obter aquilo que só Deus nos pode dar.

Um falso deus é uma coisa tão central e essencial, para a nossa vida, que, se a perdermos, a nossa vida perderia praticamente todo o seu sentido. Um ídolo ocupa uma posição de controlo tão forte no nosso coração, que podemos gastar a maior parte da nossa paixão e energia, dás nossos recursos emocionais e financeiros nela, sem hesitar. Pode ser a família e os filhos, ou a carreira e o ganhar dinheiro, ou a realização pessoal e a aclamação por parte da crítica, ou salvar «o rosto» e a posição social. Pode ser uma relação romântica, a aprovação dos pares, a competência e a aptidão, circunstâncias de segurança e conforto, a própria beleza ou inteligência, uma grande causa política ou social, a moralidade e a virtude pessoal ou, até, o êxito no ministério cristão. Quando o sentido da nossa vida é orientar a vida de outra pessoa, podemos chamar-lhe «codependência», mas, na realidade, trata-se de idolatria. Um ídolo é tudo aquilo para o qual olhamos e dizemos, no mais íntimo do nosso coração: «Se eu tiver aquilo, sentirei que a minha vida tem sentido e saberei que eu próprio valho alguma coisa; então, sentir-me-ei importante e seguro.» Há muitas formas de descrever esse tipo de relação com essa coisa, mas a melhor talvez seja culto.

Os antigos pagãos não estavam a fantasiar, quando representavam praticamente tudo como deuses). Tinham deuses do sexo, deuses do trabalho, deuses da guerra, deuses do dinheiro, deuses da nação ... pelo simples facto de que qualquer coisa pode ser um deus que governa e serve como divindade no coração de uma pessoa ou na vida de um povo. Por exemplo, a beleza física é uma coisa agradável, mas, se nós a «deificarmos», se fizermos dela a coisa mais importante na vida de uma pessoa ou de uma cultura, então, teremos Afrodite, e não apenas a beleza. Teremos pessoas, e uma cultura inteira, atormentando-se por causa do aspeto, gastando quantias exorbitantes de tempo e dinheiro pela beleza e avaliando, disparatadamente, o caráter das pessoas com base nisso. Se qualquer coisa se torna mais fundamental do que Deus para a nossa felicidade, sentido da vida e identidade, essa coisa é um ídolo.
O conceito bíblico de idolatria é uma ideia extremamente sofisticada, que integra categorias intelectuais, psicológicas, sociais, culturais e espirituais. Existem ídolos pessoais, como o amor romântico e a família; ou o dinheiro, o poder e a realização; ou o acesso a determinados círculos sociais; ou a dependência emocional dos outros em relação a nós; ou a saúde, a boa forma física e a beleza exterior. 

Muitos procuram nessas coisas a esperança, o sentido e a autorrealização que só Deus lhes pode dar.
Há ídolos culturais, como o poder militar, o progresso tecnológico e a prosperidade económica. Os ídolos das sociedades tradicionais incluem a família, o trabalho árduo, o dever e a virtude moral, ao passo que os das culturas ocidentais são a liberdade individual, a auto descoberta, a riqueza pessoal e a autorrealização. Todas estas coisas, que são boas, podem assumir, e assumem de facto, umas dimensões e um poder desproporcionados no âmbito da sociedade. Prometem-nos segurança, paz e felicidade, desde que nós baseemos a nossa vida nelas. 

Também pode haver ídolos intelectuais, muitas vezes chamados ideologias. Por exemplo, os intelectuais europeus de finais do século XIX e princípios do século XX convenceram-se profundamente da visão de Rousseau da bondade inata da natureza humana, de que todos os nossos problemas sociais se deviam a uma fraca educação e socialização. A Segunda Guerra Mundial veio dissipar essa ilusão. Beatrice Webb, a quem muitos consideram a arquiteta do moderno estado-providência da Grã-Bretanha, escreveu: 

«Algures no meu diário - terá sido em 1890? - escrevi: "Apostei tudo na bondade essencial da natureza humana..." [Agora, trinta e cinco anos mais tarde, percebo] quão permanentes são os impulsos e os instintos maus do homem, quão pouco se pode esperar conseguir mudar alguns deles - como, por exemplo, [quanto à] atração pela riqueza e pelo poder - mediante qual­quer mudança da máquina [social] ... Não há conhecimentos ou ciência que ajudem a ultrapassá-los, a menos que consigamos vergar os maus impulsos.»

Em 1920, no seu livro Outline of History [História Universal], H. G. Wells elogiou a crença no progresso humano. Em 1933, em The Shape of Things to Come, assombrado com o egoísmo e a violência das nações europeias, Wells acreditava que a única esperança era que os intelectuais assumissem o controlo e conduzissem um programa educacional obrigatório, que defendesse sobretudo a paz, a justiça e a equidade. Em 1945, em A Mind at the End of Its Tether, escreveu: «O homo sapiens, como pretendeu chamar-se, está ... a chegar ao fím.» Que aconteceu a Wells e a Webb? Eles tinham pegado numa verdade parcial e tinham-na transformado numa verdade absoluta, segundo a qual tudo poderia ser explicado e melhorado. «Apostar tudo» na bondade humana significava tê-la colocado no lugar de Deus. 

Também existem ídolos, valores absolutos não negociáveis, em cada campo vocacional. No mundo dos negócios, a autoexpressão é suprimida pelo valor e o proveito últimos. No mundo da arte, porém, é ao contrário. Tudo é sacrificado à autoexpressão, e isso faz-se em nome da redenção. Pensa-se, sobretudo, que é disso que a raça humana precisa. Há ídolos por toda a parte. 

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Ama, confia e obedece 

A Bíblia usa três metáforas básicas para descrever como as pessoas se relacionam com os ídolos do seu coração. Elas amam os ídolos, confiam nos ídolos e obedecem aos ídolos.

Por vezes, a Bíblia fala dos ídolos, utilizando a metáfora esponsal. Deus deveria ser o nosso verdadeiro Esposo, mas, quando nós desejamos e nos comprazemos mais noutras coisas do que em Deus, cometemos adultério espiritual. O romance ou o êxito podem tomar-se «falsos amantes» que prometem fazer-nos sentir amados e apreciados. Os ídolos cativam a nossa imaginação e podemos identificá-los olhando para os nossos «devaneios». O que é que gostamos de imaginar? Quais são os nossos sonhos preferidos? Nós olhamos para os nossos ídolos em busca de amor, esperando que eles nos deem valor e um sentimento de beleza, importância e mérito. 

A Bíblia refere-se, com frequência, aos ídolos, utilizando a metáfora religiosa. Deus deveria ser o nosso verdadeiro Salvador, mas nós esperamos, ao invés, que a realização pessoal ou a prosperidade financeira nos deem a paz e a segurança de que precisamos. Os ídolos transmitem-nos um sentimento de que conseguimos controlar a nossa vida, e podemos identificá-los, analisando ainda os nossos pesadelos. De que é que temos mais medo? Qual é a coisa que, se a perdêssemos, a nossa vida deixaria de ter sentido? Fazemos «sacrifícios» para aplacar e agradar aos nossos deuses, pois acreditamos que eles nos protegerão. Esperamos que os nossos ídolos nos transmitam um sentimento de confiança e segurança. 

A Bíblia também se refere aos ídolos, utilizando uma metáfora política. Deus deveria ser o nosso único Amo e Senhor, mas tudo aquilo que nós amamos, e em que con­fiamos, é a isso que também servimos. Tudo aquilo que se transforma, para nós, em algo mais importante e insubstituível do que Deus, toma-se um ídolo escravizante. Neste paradigma, podemos localizar os ídolos, analisando as nossas emoções mais inflexíveis. O que é que nos provoca ira, ansiedade ou desânimo mais profundo? O que é que nos tiraniza com um sentimento de culpa que não conseguimos dissipar? Os ídolos controlam-nos, pois sentimos que temos de os ter, caso contrário, a vida perderia sentido. 

«Tudo o que nos controla é nosso dono e senhor. A pessoa que procura o poder é controlada pelo poder. A pessoa que procura aceitação é controlada pelas pessoas a quem quer agradar. Nós não nos controlamos a nós próprios. Somos controlados pelo dono das nossas vidas.» 

Aquilo que muita gente chama «problemas psicológicos» são simples questões de idolatria. O perfecionismo, a dependência do trabalho, a indecisão crónica, a necessidade de controlar a vida dos outros, tudo isso deriva de transformarmos as coisas boas em ídolos, que depois nos arrastam para o descalabro, quando tentamos apaziguá-los. Os ídolos dominam as nossas vidas.

A oportunidade do desencanto

Como vimos, há uma grande diferença entre o desgosto e o desespero, visto que o desespero é um desgosto insuportável. A maior parte das vezes, a diferença entre ambos é a idolatria. Um homem de negócios coreano matou-se, depois de perder, quase na totalidade, um investimento de 370 milhões de dólares. «Quando o índice da bolsa caiu abaixo de 1000 [pontos], deixou de comer e começou a beber quantidades excessivas de álcool, durante vários dias, acabando por decidir matar-se», contou a sua mulher à polícia. Em plena grande crise financeira de 2008-2009, ouvi um homem - chamado Bill  - contar que, três anos antes, se tornara cristão e que a sua segurança última passara do dinheiro para a sua relação com Deus, através de Cristo. «Se esta derrocada económica se tivesse dado há mais de três anos, bem, não sei como é que eu a teria enfrentado, como me teria conseguido aguentar. Hoje em dia, posso dizer-vos, sinceramente, que nunca me senti mais feliz na minha vida.» 

Embora pensemos que vivemos num mundo secular, os ídolos, esses deuses cintilantes da nossa época, detêm o direito da confiança funcional do nosso coração. Com a economia global num estado deplorável, muitos dos ídolos que adorámos, durante anos, ruíram à nossa volta. É uma grande oportunidade. Numa palavra, estamos a sentir «desencanto». Nas histórias antigas, isso significava que o feitiço lançado pelo feiticeiro malvado fora quebrado e que tínhamos hipóteses de escapar. Tais momentos acontecem-nos como indivíduos, quando algum grande empreendimento, atividade ou pessoa em quem tínhamos posto as nossas esperanças não consegue dar-nos aquilo que (em nosso entender) nos tinha prometido. Só muito raramente isso acontece a uma sociedade inteira. 

O caminho a seguir para escapar ao desespero consiste em discernir os ídolos do nosso coração e da nossa cultura. Mas isso não será suficiente. A única maneira de nos libertarmos da influência destrutiva dos falsos deuses é regressar ao único Deus verdadeiro. O Deus vivo, que se revelou tanto no Monte Sinai como na Cruz, é o único Senhor que, se o encontrarmos, poderá saciar-nos de verdade e que, se falharmos, poderá perdoar-nos de verdade.

Esta transcrição omite as notas de rodapé.

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* In Falsos deuses, ed. Paulinas
Fonte: Site de Portugal: http://www.snpcultura.org/cristianismo_face_cultura_idolos.html14.08.13

Um comentário:

  1. Sobre ética e psicanálise – Maria Rita Kehl – ano 2002
    ISBN 85-359-0221-x – editora schwarcz ltda


    p.28

    A versão “Freud explica” apaziguadora, é a mais solicitada. Em alguns casos, o que se pede à psicanálise é uma justificativa para o mal. Pede-se uma participação do saber psicanalítico como avalista de um pacto cínico: “O ser humano é assim, não há o que se possa fazer?”. Não era isso o que Freud pretendia quando chamou a atenção do mundo para o “terreno pantanoso” sobre o qual se edificam os grandes ideais morais da humanidade. Ele pretendia abalar a prepotência da moral burguesa e a vaidade do “homem de bem” do inicio do século XX, apontando o mal que se pratica, o sofrimento que se inflige ao outro e a si próprio em nome de um código que se acredita absoluto, inquestionável. Para Freud, admitir que, do ponto de vista do inconsciente, o mal não existe e a moral não importa não deve autorizar que nos tornemos imorais, mas apenas um pouco mais tolerante com as falhas alheias, um pouco mais humildes em relação a nossas qualidades.
    Hoje aceitamos sem escândalo esse “terreno pantanoso”, e ainda tentamos justificar, com a evidencia freudiana, nossas falhas de caráter. Uma leitura canalha da descoberta psicanalítica diria que, que se o inconsciente existe, tudo é permitido...................................

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