João Pereira Coutinho*
Viajo para Washington. Encontro a cidade em festa. Não admira. Cinquenta
anos atrás, em 28 de agosto de 1963, Martin Luther King passou pela
capital e, na presença dos 250 mil manifestantes que fizeram a Marcha
sobre Washington, proferiu um dos discursos mais famosos do século 20.
Digo "famoso", mas infelizmente pouco lido. Pena. Relendo o discurso de
Luther King por estes dias, entendi melhor o talento e a eficácia do
homem na luta pelos direitos civis dos negros. Nada revela tão
claramente uma inteligência quanto as palavras que ela escolhe.
Para começar, o texto é uma peça notável de oratória cristã. O fato é
por vezes ignorado: Luther King foi sobretudo influenciado por Thoreau e
Gandhi, dizem os especialistas, e a sua estratégia de resistência não
violenta é tributária dos dois.
Certo, certíssimo. Mas, antes de Thoreau e Gandhi, recordo aos
especialistas que Luther King foi formado na adolescência pelo teólogo
Benjamin Mays, que incutiu no pupilo uma ideia revolucionária e simples:
se os ensinamentos da Bíblia não servem para mudar os homens, então a
Bíblia serve para muito pouco.
Luther King aprendeu a lição: primeiro, ao tornar-se também teólogo e
pastor batista no Alabama. E, depois, ao aplicar o arsenal teológico à
causa dos direitos civis.
A cadência e o vigor retórico de Luther King são próprios de um pastor em frente ao seu rebanho.
E o uso de metáforas --o sonho de que um dia um povo longamente
escravizado chegará a um oásis de liberdade e justiça-- também só é
possível em alguém que leu o Antigo Testamento e transpôs para a causa
dos direitos civis as provações épicas dos israelitas nos seus múltiplos
e trágicos exílios.
Mas a grandeza de Luther King não acaba aqui. Se o reverendo Luther King
fosse um "Muçulmano Negro", espumando de ódio contra o "homem branco",
talvez o discurso de 1963 fosse uma peça maniqueísta em que a luta pelos
direitos civis seria apenas uma luta de negros contra brancos.
Luther King nunca comprou essa primária versão dos fatos. Como o próprio
repetidamente afirmava, a luta não era entre negros e brancos. Era
entre a justiça e a injustiça, independentemente da cor das vítimas e
dos opressores.
Não é por acaso que, no discurso de 1963, o "sonho" de Luther King era
chegar ao dia em que brancos e negros se sentariam na mesma "mesa da
humanidade". Essa mensagem de "integração" seria impensável nas
diatribes separatistas e violentas de Malcolm X e da Nação do Islã.
O que não significa que o radicalismo dos "Muçulmanos Negros" não tenha
ajudado a causa de Luther King. Eis a terceira marca da sua
inteligência: apresentar a luta pelos direitos civis como a "via média"
entre dois extremismos gêmeos. O extremismo dos separatistas brancos. E o
extremismo dos separatistas negros.
Na sua "Letter from Birmingham Jail", escrita no presídio anos antes da
Marcha sobre Washington, Martin Luther King já era explícito na
condenação daqueles que "perderam a fé na América"; dos que "repudiaram o
cristianismo"; e dos que apresentam o homem branco como "um demônio
incorrigível".
Tradução: se a América desejava evitar uma guerra civil racial, garantir
direitos civis aos negros era melhor do que jogá-los na insurreição
armada.
Felizmente, a América escutou Martin Luther King, não Malcolm X. Em
1964, o Congresso aprovava o Civil Rights Act, infligindo o golpe de
misericórdia na segregação laboral, escolar, social. Os direitos
eleitorais plenos viriam logo a seguir, em 1965. E hoje?
Fato: como relembra o "Wall Street Journal", o rendimento das famílias
negras ainda representa 66% do rendimento das famílias brancas. Mas é
também importante lembrar que, há 50 anos, metade da população negra
vivia na pobreza. A cifra, hoje, ronda os 28%.
E, claro, escusado será dizer que, em 2013, a cor da Casa Branca não é mais branca.
Martin Luther King esteve na cidade em 1963 para imaginar o dia em que
os seres humanos não seriam julgados pela cor da pele, mas pelo seu
caráter.
Às vezes, as verdades mais antigas são as mais revolucionárias. E Luther
King era esse admirável paradoxo: um conservador revolucionário. São os
únicos revolucionários que eu respeito.
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* João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência
Política. É colunista do "Correio da Manhã", o maior diário português.
Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record).
Escreve às terças na versão impressa de "Ilustrada" e a cada duas
semanas, às segundas, no site.
Fonte: Folha on line, 27/08/2013
Imagem da Internet
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