Luiz Felipe Pondé*
A verdade da coragem não é querer vencer,
mas perder o medo de perder tudo que se tem
É possível um mundo melhor? Sim e não. Sim, é possível um mundo melhor a
começar por melhores remédios, casas, escolas, hospitais, aviões,
democracia (ainda acredito nela, apesar de ficar de bode às vezes).
Não, não é possível um mundo melhor porque algumas coisas não mudam,
como o caráter humano, suas mentiras e vaidades, sua violência, mesmo
que travestida de civilidade, nossas inseguranças, nossa miséria física e
mental, nossa hipocrisia. Nossas ambivalências sem cura. Os valores são
incomensuráveis. Você até pode achar que na vida vale mais a pena "ser"
do que "ter", mas isso pode ser apenas um modo infantil de ver as
coisas: não há "ser" sem o "ter" que sustenta tudo.
A famosa frase "que vão os anéis e fiquem os dedos" às vezes mais parece
ser bem o contrário, "que vão dedos e fiquem os anéis", porque os
diamantes são eternos, e os dedos, não.
Resumindo: mesmo a tecnologia e a ciência, grandes fatores positivos,
podem ser elas mesmas terríveis. Não é outro o sentido de se perguntar
"como educar depois de Auschwitz?", como se pergunta o filósofo Theodor
Adorno. Mesmo a democracia pode virar coisa de "black blocs" ou
demagogos que juram confiar na "sabedoria popular". E isso dá bode.
"Um mundo melhor não é um mundo sem violência ou
ambivalência, mas um mundo
onde existe o perdão."
Recentemente revi o filme "Em um Mundo Melhor", de Susanne Bier, de
2010. Trata-se de um filme bastante didático, bom para escolas. Um
médico sueco trabalha em algum lugar infeliz da África, enquanto sua
família derrete na Dinamarca onde mora.
Seu filho é objeto de bullying (chamam-no de "rato" pelo dentes feios
que tem e esvaziam o pneu da sua bicicleta o tempo todo). Ele nunca
reage. É tímido e tem medo dos mais fortes. Sabe que se reagisse
apanharia mais. Muitas vezes, a essência da coragem é perder o medo de
sofrer além do que já se sofre. A verdade da coragem não é querer
vencer, mas perder o medo de perder tudo que se tem.
Escolas de crianças são um escândalo. Um depósito de violência de todo
tipo. Um lugar especialmente indicado se quisermos duvidar da existência
de Deus usando o famoso argumento a partir do mal ("argument from
evil", como dizem os filósofos da religião americanos): se Deus existe e
é bom e todo-poderoso, como o mundo pode ser mau como obviamente é?
Há todo tipo de resposta para isso, e elas compõem o que em teologia se
chama "teodiceia". Qual é o sentido de ser bom na vida? Há garantias de
que o bem compensa? Não, não há, nenhuma.
Eu concordo com o filósofo Isaiah Berlin: não há teodiceia possível. Os
valores são incomensuráveis entre culturas, pessoas, épocas históricas.
Qualquer utopia não passa de um surto infantil projetado sobre o mundo.
Não vai mais longe do que uma história de Branca de Neve.
Voltando ao filme. O médico é contra violência física. E vive isso de
modo corajoso, não se pode negar. A vida que leva na África é prova de
seu caráter. Enfrenta um sujeito que bate na sua cara na Dinamarca,
quando está visitando sua mulher e filhos, de modo digno, revelando a
estupidez que está por trás do brutamontes idiota.
Ela quer o divórcio porque se sente sozinha, é óbvio, e, aparentemente,
além de deixá-la sozinha, ele andou comendo alguém por aí... Santo, mas
nem tanto... Você pode salvar o mundo enterrando sua família. Olha aí a
incomensurabilidade de que fala Berlin.
Ao final, seu princípio de não violência é testado na África e ele
perceberá que para tudo existe um basta, e às vezes a violência é tudo
que resta. Os pacifistas são também gente infantil.
Mas onde está esse mundo melhor no filme? A vida em casa degringola. O
filho humilhado encontra um amigo que o protege na escola. Um menino
corajoso, decidido e violento, que se move no mundo de modo oposto aos
princípios do médico.
Na verdade, o menino é um desesperado, solitário, que acaba de perder a
mãe de câncer, num processo doloroso que sutilmente o filme parece
indicar ter chegado à eutanásia.
O mundo melhor parece ser aquele no qual as pessoas podem errar, pedir
perdão e ser perdoadas. Um mundo melhor não é um mundo sem violência ou
ambivalência, mas um mundo onde existe o perdão.
---------------------
* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor. Colunista da Folha
ponde.folha@uol.com.brFonte: Folha on line, 19/08/2013
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário