"Não conheço ninguém que tenha escrito com tanta clareza sobre temas
complexos e sem fazer nenhum tipo de simplificação." Bastariam essas
poucas palavras para definir a admiração de Celso Lafer pela obra de
Norberto Bobbio (1909-2004), objeto antigo de sua atenção e estudo, ela
mesma e nas interseções com os campos de sua própria vivência
intelectual, no direito, na ciência política e nas relações
internacionais. No livro que agora chega às livrarias - "Norberto
Bobbio: Trajetória e Obra" -, o ex-ministro de Relações Exteriores e da
Indústria e do Comércio e atual presidente da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo explica e interpreta as ideias de Bobbio
em 16 textos, publicados entre 1980 e 2011. São ensaios que aproximam o
leitor daquela competência única do filósofo e pensador político
italiano, e que mostram a atualidade de suas análises, nas quais faz uma
homenagem permanente ao uso da razão e da tolerância - religiosa e de
opinião, particularmente. Preso por manifestar inconformismo com o
regime de Mussolini, negação de toda a essência de suas convicções,
Bobbio experimentou, e incorporou aos seus escritos, o significado da
"fúria dos extremos", nos quais identificava a glorificação da violência
- "que é, infelizmente, um dado que permeia a realidade contemporânea",
como disse Lafer em entrevista ao Valor.
Valor: Temos um governo que se diz de esquerda,
com alianças à direita, enquanto muitos defendem que esquerda e direita
não existem mais. Como interpretar esse fato à luz de Bobbio?
Celso Lafer: Bobbio escreveu um livro muito
importante chamado "Esquerda e Direita". Ele polemizou com os comunistas
na década de 1950, com o livro "Política e Cultura", para fazer a
defesa das liberdades, contra sua dissolução diante das aspirações
maiores da igualdade. Depois, polemizou novamente com a esquerda no
livro "Qual Socialismo?", inclusive com a esquerda extraparlamentar e
violenta da Itália, das Brigadas Vermelhas. O "Esquerda e Direita" é um
livro de polêmica com aquilo que foi a onda e a maré montante da visão
das coisas depois da queda do Muro de Berlim.
Valor: Bobbio era de esquerda ou de direita?
Lafer: Bobbio sempre se dizia um socialista
liberal, o que às vezes parece uma contradição. Ao fazer a defesa da
permanência da dicotomia liberdade e igualdade, ele mostra que a
diferença entre esquerda e direita continua sendo um tema da agenda
política. E diz: uma perspectiva de direita é aquela que realça a
diferença entre as pessoas; uma perspectiva de esquerda realça aquilo
que as pessoas têm em comum. Não devo ignorar o fato de as pessoas terem
diferenças, mas não posso fazer com que isso suprima a estrela polar,
como ele diz, sobre o valor da igualdade.
Valor: E no Brasil?
Lafer: O Brasil não tem nenhuma direita assumida. Ao
contrário, por exemplo, da França, onde Le Pen é uma expressão clara
disso. Ou na Itália, onde o horror de Bobbio, e uma das últimas batalhas
dele, foi contra Berlusconi e o que representava o 'berlusconismo'. O
que caracteriza, talvez, a situação brasileira, é um pouco o que diz o
presidente Fernando Henrique: é o conservadorismo e o atraso, que é como
a direita se configura no Brasil.
Valor: Seria essa então - conservadorismo e atraso - a grande diferença da direita brasileira?
Lafer: Como diz Fernando Henrique, isso perpassa a
sociedade como um todo. Inclusive, aqueles que se consideram de
esquerda. É um pouco o capítulo da identidade. Você tem um tipo de
identidade coletiva e um tipo de identidade individual. A identidade
coletiva se faz pela semelhança, uma visão comum de como se chegar a
alguma coisa em torno do bem comum. Em tese, um partido representa uma
identidade coletiva. E a identidade individual se faz pela diferença, o
que há de específico. Apliquei essa reflexão para a trajetória de
Bobbio, dizendo que, do ponto de vista de sua presença no cenário
político italiano e internacional, ele é um homem de esquerda. Dentro
das diversas correntes de esquerda, e ele advoga a ideia de pluralismo,
cabe-lhe essa identidade socialista liberal que, se é indutora de
contradições pela própria formulação, tem uma lógica de
complementaridade que leva a enxergar melhor as coisas.
Valor: Como integrante da resistência contra o
fascismo, Bobbio discutiu a "fúria dos extremos". Pode-se dizer isso
também da violência contemporânea?
Lafer: Um dos componentes desses extremos é a
glorificação da violência. "O sangue regenerador dos povos" é uma frase
que aparece nos textos dos fascistas italianos e que está presente hoje
na violência. A violência é um dado que permeia a realidade
contemporânea. Um segundo componente dessa fúria dos extremos é a ideia
de que você dissolve o indivíduo no todo. O lema do nazismo era "você
não é nada, seu povo é tudo". Essa era a desqualificação totalitária do
papel do ser humano e da sua dignidade própria. Se você olha hoje para o
fundamentalismo religioso, um dado do mundo contemporâneo, você também
dissolve o indivíduo no todo desses movimentos.
Valor: É possível ver hoje quem são os "fanáticos" que Bobbio apontava na "fúria dos extremos"?
Lafer: Esse é um ponto forte de Bobbio, no ensaio
"As Razões da Tolerância", no qual discute porque devo tolerar.
Portanto, o que faço com os fanáticos, os intolerantes? O capítulo das
razões da tolerância começa com o tema religioso. Como um homem de
convicções profundas de natureza religiosa aceita uma verdade religiosa
diferente daquela na qual ele acredita? A primeira dimensão da noção de
tolerância, que é importante para um Estado laico, um Estado de direito,
para os direitos humanos, é a ideia da liberdade religiosa. A ideia de
que está na esfera da pessoa a sua escolha religiosa. A segunda dimensão
da tolerância é a liberdade de pensamento, de opinião. Você aceitar que
o outro tenha algo a dizer e que devo escutar o que essa pessoa tem a
dizer, é uma ideia que está ligada à construção das regras do jogo
democrático. Depois, diz Bobbio, há uma outra razão para a tolerância,
de ordem prática: ou perseguição ou tolerância. A terceira alternativa
não existe. Há, kantianamente, uma razão de ordem prática de
convivência, que me leva à tolerância e a me opor aos fanatismos.
Finalmente, a razão mais profunda, que permeia as convicções de Bobbio, é
a de que a realidade é ontologicamente complexa, essencialmente
complexa, e é plural. Portanto, a tolerância é uma maneira de eu lidar
com essa diversidade plural da realidade.
Valor: Bobbio também fala sobre aqueles que se opõem a essa tolerância.
Lafer: Ele diz que tolerância pode também significar
falta de rigor. Você tolera porque não tem rigor moral. Casa de
tolerância, para usar uma linguagem antiga, também exprime essa noção de
laxismo moral. Bobbio defende, enfim, o rigor de uma ética laica que
permita afastar da noção que ele defende de tolerância qualquer
flexibilidade de falta de princípios, ou uma flexibilidade oriunda de
uma falta de princípios.
Valor: Há uma qualidade, na obra de Bobbio, para a qual o senhor chama a atenção, que é a clareza diante das complexidades.
Lafer: Há em Bobbio uma clareza inexcedível. Não
conheço ninguém que tenha escrito com tanta clareza sobre temas
complexos, e sem fazer nenhum tipo de simplificação. Uma das razões
pelas quais acho que a obra de Bobbio é de impacto é essa clareza e a
maneira pela qual ele elucida problemas complicados. E uma das maneiras
pelas quais ele elucida é uma espécie de grande arte combinatória. Ele
vai combinando: esquerda, direita; liberdade, igualdade; governo das
leis, governo dos homens; governo visível, governo invisível; estrutura,
função; público, privado; guerra, paz. Ele se vale dessas dicotomias
para lidar com essa realidade ontologicamente complexa. E com isso vai
iluminando e esclarecendo as coisas.
Valor: O mundo contemporâneo parece não admirar muito uma qualidade como a "clareza".
Lafer: Você tem toda razão. Alguns querem as trevas.
Bobbio é um grande escritor. Você lê sua obra e sente a força de uma
grande clareza. Bobbio diz: "As luzes da razão podem ser mais fracas,
mas são as únicas das quais dispomos". É nisso que ele se empenha, é a
aposta dele. E a minha também.
"Norberto Bobbio: Trajetória e Obra".
Celso Lafer. Editora Perspectiva. 256 págs., R$ 40,00
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Reportagem Por Adauri Antunes | Para o Valor, de São Paulo
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