domingo, 11 de agosto de 2013

Saudades do meu pai

Juremir Machado da Silva*

Dia dos pais, dia de lembrar do meu, que já não está mais aqui.
Minha lembrança com um texto que está sempre 
vivo dentro de mim.

Cabo Vito

Vito foi um homem simples. Tão simples quanto a natureza que o deslumbrava. Amava as madrugadas e as noites de lua cheia. Como um menino, adorava andar pelos campos de Palomas, nas manhãs de chuva de verão, com os pés descalços. O frescor da água e o perfume do campo o embriagavam.

A campanha — o pampa — foi o seu único mundo. Mais do que isso, o seu imaginário: um grande lago de paixões, de lembranças, de gestos e de amizades que o fizeram, em todos os momentos, dedicar-se aos seus. Vito foi, do seu jeito, o próprio pampa.

Cabo da Brigada Militar, peão de estância, domador, carreirista e jogador de truco, tudo lhe caía bem se tivesse o cheiro da simplicidade e o odor de figo ou de goiaba maduros.

No truco, cantava o impossível com a espontaneidade de um bom ator.

Jogava com a alma pelo simples prazer da surpresa. Homem modesto, não desfrutou os grandes vinhos, mas sabia descobrir as qualidades dos pequenos. O cotidiano era para ele cheio de néctares extraídos do brilho do sol, da brisa ao entardecer, das noites em que contava histórias.

Isso mesmo: Vito foi um grande contador de causos, desses que se podia ouvir, primeiro, à beira do fogo de galpão e, depois, na cozinha das tantas chácaras que cuidou. Tinha histórias de tropeadas, de morte e de assombração, de carreiras de cancha reta e de perseguições a contrabandistas que manchavam de  vermelho o verde da fronteira. Muitas vezes, o narrador aparecia como personagem: “Me lembro uma vez, lá na Invernada da Brigada, eu ainda era soldado novo… Todo dia, pelas quatro da manhã, um velho gaúcho encilhava um zaino faceiro não longe da minha cama. Eu me levantava para matear e já me preparava para lhe pedir que me trouxesse erva da cidade quando homem e cavalo desapareciam no ar…”

Em Palomas, ficou conhecido como Cabo Vito. Era o comandante do destacamento da vila, o homem que aplicava injeções, o ginete corajoso e o pai de sete filhos que gostavam de livros. Certa época, a sua autoridade no vilarejo deve ter impressionado (ou assustado) um pouco os mais jovens, pois um guri de oito anos, na escola Rodolfo Costa, respondeu assim à pergunta da prova: qual a maior autoridade da cidade? “O cabo Vito”.

Conhecia os mistérios da campanha como poucos. Nas tropeadas, sabia de atalhos pelos campos da Florentina, da Madureira, do Upamaroti, da Coxilha Negra, de tudo quanto era rincão daqueles pagos. Nunca aprendeu a dizer não. A generosidade era o seu forte. Não tinha muito para dar, mas o que possuía estava sempre à disposição. Plantador de melancias para vender na beira da BR-158, era preciso mantê-lo afastado da tenda, pois de todos que chegavam era amigo e a todos presenteava com uma fruta.
Cabo Vito, na minha imaginação, era quase uma lenda, a do homem que dominava os segredos do pampa. Numa semana, mostrava habilidade como “esquilador”; noutro mês, era alambrador e botava em pé léguas de cerca de arame. Gostava de contemplar a liberdade dos pássaros e acho que se sentia como um deles. Ou talvez fosse um potro digno destes versos gaudérios: “Bagual que nunca se amansa por mais golpeado que seja”. Vito era manso e indomável ao mesmo tempo.

Dele emanava a garra, a energia, a vontade de nunca se entregar. Esteve mobilizado para uma possível invasão do Uruguai quando do sequestro pelos tupamaros do cônsul brasileiro Gomide. Não temia o combate. Mas, cristalinamente, buscava a paz. Esteve casado por 47 anos. A família era o seu outro pampa. Nos bailes de campanha, foi bom de dança. Gostava de uma música que dizia algo assim: “Eu viverei eternamente no cantar da cotovia…”

Lembro-me dele, numa noite de luar, quando a cavalo, fomos até o Rincão de Palomas. A sombra desenhava a sua imagem nas coxilhas. Esboçava um verdadeiro gaúcho. A lua era uma bola redonda que sorria para nós. Vito disse-me, ali, que a liberdade era cada um sentir-se de fato parte do seu próprio chão. Desconheço homem que tenha sido mais livre. Eis alguém de quem uma família pode orgulhar-se.

Enterrado no cemitério branco de Palomas, depois que a chuva lavou e perfumou o pampa, tem o verde infinito dos campos em torno da sua última morada. Três gaúchos bem pilchados, montados em cavalos de passo firme, cruzaram por ali, ao acaso, na hora da despedida. Quem sabe foi Deus quem os mandou. Palomas exalava paz naquele instante. Parecia que o homem e a natureza se fundiam numa harmonia perfeita. Não pode haver emoção maior. A estradinha úmida e marrom serpenteava ao pé do Cerro de Palomas, costeando o horizonte. O céu tornou-se, de repente, limpo e suave, como a lagoa da infância. Quase se ouvia um galope nas nuvens. Eram somente as lágrimas de todos os que o amaram.

Victor Pires da Silva morreu dia 5 de fevereiro de 2002, aos 78 anos de idade. Cabo Vito era meu pai.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: Correio do Povo, 11/08/2013
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