JARRETY, M.
Presses Universitaires de France (PUF), Paris, 1999
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Saímos agora de uma época em que a disjunção radical do autor e da
obra conduzia a enxergar a relação do autor com o mundo, no que concerne
ao essencial, apenas sob a forma de um engajamento que, justamente, o
desligava em grande medida daquilo que o havia feito escritor, e que o
estabelecia entre os intelectuais. O prestígio que seus livros lhe
proporcionavam poderia sem dúvida fundar a autoridade que se lhe
reconhecia: ela se dissociava, contudo, em grande medida, daquilo que
ele pôde ter escrito e procedia menos do autor em si mesmo que da figura
pública que fora construída a partir dele. Assim socializado, rebaixado
à vertente da história cultural e do político, a presença do autor no
mundo encontrava-se, por um lado, desvinculada dos valores que
precisamente os seus livros colocam em ação, e dos quais só se retinha,
no melhor dos casos, princípios abstratos, isto é, separados a uma só
vez da experiência privada que os forjara e da forma que lhes conferia
sua força. Quanto às proposições que sua palavra pública formulava, a
eficácia exigia fatalmente que elas não fossem apenas a sua.
Pois bem, essas posições coletivas de escritor engajado, preocupados
em colocar ao serviço da comunidade o reconhecimento que seus livros lhe
proporcionam, não seria possível confundi-las com os valores singulares
que, por sua vez, trabalham uma obra, e que, por outro lado, a definem
ao mesmo tempo que se descobre nela a ética do escritor. Confusão que o
termo de moralista certamente facilita, se ele supõe que o escritor se
volta a outrem, entendido como leitor, tudo junto, e como o objeto de
estudo ou de interesse. Num primeiro sentido, tão logo a saliência de
uma palavra um pouco sentenciosa demais ou bem prescritiva permita que o
escritor que a prefere seja qualificado de moralista, e às vezes
independentemente do que sua obra realmente afirma: é, por um lado, a
ambiguidade, de Camus. Em um segundo sentido, tão logo uma leitura
demasiado apressada dos textos justifique que também seja designado como
tal o escritor cujos livros, por uma temática de aparência pessimista
ou uma forma de aparência fragmentária, parecem se inscrever na
continuidade da era clássica: elude-se então de bom gado a questão de
saber se essa obra responde a uma exigência pessoal que a separa das
outras – eis um traço da modernidade – ou se ela se volta,
contrariamente, em direção a uma comunidade suscetível de compartilhar
aquilo que ela afirma.
Falar de moral na escritura seria então analisar as flutuações desses
dois sentidos e as incertezas propriamente literárias que eles supõem, e
repensar, por esta perspectiva, o que é que liga moralmente um Sujeito à
sua obra e ao mundo. Não que se tratasse de retornar a um biografismo
qualquer, nem de reduzir a diferença entre o ser empírico e a instância
da escritura, e sim de buscar como uma experiência existencial informa,
por um lado, a obra que não a exprime como tal – ela a põe em distância
e, no entanto, a mantém – e define, para alguns escritores, a
preocupação ética de não eludir, durante o ato mesmo de escrever, os
valores que essa preocupação supõe, e que a escritura mesma permite
formular. Uma preocupação de verdade procede dela, cujo outro nome, e
talvez melhor pois desvinculado de toda tentação de absoluto, é autenticidade,
que não separa o escritor do sujeito que ele permanece sendo: não pelo
que ele afirma no século, mesmo se sua obra for lida, mas pelo que Yves
Bonnefoy denomina a verdade da palavra. A análise não cessará de
reforçar aqui, portanto, a distinção necessária entre uma moral recebida
como código de prescrições coletivas que remete fatalmente a
imperativos derivados de valores absolutos e às vezes transcendentes, e
uma ética definida, por outro lado, como essas regras de vida
individuais e imanentes, relativas à felicidade de quem as escolhe por
si mesmo. Destarte, uma vez que não se tratará de enxergar a maneira
pela qual uma moral compartilhada se exprime numa obra, nem como esta
poderia reafirmar aquela, ou, do contrário, contestá-la, e sim a maneira
pela qual valores singulares são construídos para governar, por um
mesmo movimento, tanto uma existência quanto uma obra, fica evidente que
este livro teria sido mais justamente intitulado Éthique et écriture.
Mas se a ética se tornou, hoje em dia, uma apelação eufemística,
pusilânime e, enfim, mundana, de uma moral que não se confessa de medo
de que seja recusa sua medida necessariamente prescritiva, enquanto que
por detrás dela, porém, é na realidade a moral que avança mascarada para
conjurar justamente o perigo de toda ordem moral – e o termo ética
arriscava prestar-se a mal-entendidos, de modo que me pareceu, por fim,
mais eficaz optar por La morale dans l´écriture, cujo benefício é, por outro lado, o de manter mais claramente a referência aos moralistas.
Referência frágil, pois o escritor moderno se aprofunda em diferenças
sensíveis em relação a eles. Ele não é mais o depositário de valores
que compartilharia a comunidade social ou religiosa à qual ele se
encontra integrado, e porque o romantismo fez do indivíduo um Sujeito,
contra uma moral comum, senão verdadeiramente universal, cada vem a ser
insensivelmente o fundador de uma ética singular. A entrada de força da
História abre então uma segunda diferença: desde o final do século
XVIII, o pensamento do mundo se historiciza, sob a forma de um progresso
possível ou na desilusão que se segue. Diversas obras contemporâneas o
testemunham, e certamente aquelas que são escritas na virada da Segunda
Guerra mundial. A situação do escritor, a solidariedade com o presente
da História e com a comunidade que ele encarna, se encontram
perturbadas, estremecidas às vezes – e confirmam frequentemente o exilo
que rebaixa o sujeito sobre ele mesmo, se for verdade, para retomar uma
fórmula de Gracq, que o sentimento do não predomina nele sobre o sentimento do sim.
Porque, enfim, essa evolução é acompanhada daquilo que se nomeia
comodamente a Morte de Deus, acontecimento este que é ele mesmo
histórico no pensamento ocidental, os valores comuns se encontram tanto
mais corroídos quanto a passagem a uma moral pós-kantiana fundada sobre a
responsabilidade própria ao Sujeito, muito mais que sobre a submissão a
um corpo de valores compartilhados, encontra sua verdadeira medida no
comportamento próprio de cada um. O sentido do termo de moralista
encontra-se, por isso, radicalmente alterado – ao ponto de nos fazer
duvidar da possibilidade de ainda recorrer a ele sem demasiada confusão.
De tais questões, pareceu-me que poderia haver alguma pertinência em
mostrar como elas trabalham as obras de Camus, de Char e de Cioran, por
aquilo que os distingue com evidência – sua escritura antes de mais
nada, a aceitação ou a recusa de uma forma de engajamento, uma presença
no mundo contestada de modos diversos, valores orientados à comunidade
ou, pelo contrário, separados dela – mas igualmente aquilo que os
aproxima suficientemente para que os estudos a serem lidos não sejam
destituídos de coerência. Pode ter acontecido, com efeito, que cada um
deles tenha sido qualificado como moralista, e por razões de tal maneira
diferentes que tentarei mostrar que elas não são nunca totalmente
convincentes: o primeiro, pela preocupação com que se prestou a fundar
uma moral, e o vigor com que se pôs a defender publicamente valores que
ele alçava de bom grado ao universal; os dois outros pelo parentesco que
alguns de seus fragmentos, reunidos sobre uma proposição de tonalidade
às vezes geral, citados frequentemente de maneira ornamental, poderiam
ter com a cunhagem da máxima. Essa qualidade de moralista tinha,
evidentemente, muito a ver com o vigor de afirmações que desmascaram de
bom grado, e à amarga lucidez que suas obras testemunham: não é
indiferente, portanto, que estes três escritores tenham conhecido as
provações – e as desilusões – próprias à mesma geração. O que se
descobre neles de pessimismo, eles lhe opõem, não obstante, uma
contestação potente no desejo, segundo a bela fórmula de Char, de se
forjar uma santidade da infelicidade. Esta falha aberta entre o
que se pode viver como felicidade e pensar como infelicidade é, então,
essencial, ainda que ela seja marcada em cada um deles de maneira
diferente: pela harmonia com o mundo sensível segundo Camus ou mesmo
Char, pela confissão, em Cioran, de um amor pela vida sua obra desmente
mas que, não obstante, deixa entrever na jubilação da escritura.
A mesma recusa da ordem presente se manifesta em todos os três, mas
ela toma uma forma diferente para cada um, abrindo à revolta, mas ao
cuidado do outro, em Camus, a uma vontade de ruptura pessoal em René
Char, e ao sofrimento, em Cioran, de estar implicado na aventura humana
entendida ao mesmo tempo como experiência da História e do ser: uma
radical recusa da comunidade o acompanha e, a propósito do outro
[enquanto alteridade, outrem], uma distância que não suprime a
detestação, e que o distingue tanto de Camus quanto de Char. Estes não
perdem a desesperança de endereçar-se ao homem: Cioran, pelo contrário, o
abandona à sua queda. Resta, porém, para cada um deles – e isso pode
ser talvez o essencial daquilo que faz sua modernidade e que foi até
agora insuficientemente sublinhado – a nostalgia mais ou menos manifesta
de uma anterioridade perdida, e, ao mesmo tempo, a preocupação, que
será necessário avaliar em sua justa medida, por uma forma de
transcendência que é também, talvez, uma forma de nostalgia. Com a
permissão dada ao sentido que o cristianismo teria podido impor e que
cada um deles recusa, na recusa mantida de uma espera simplesmente
carregada de esperança, todos os três preservam, assim, em sua relação
com o mundo, a preocupação essencial com uma plenitude diferentemente
esperada, e de uma soberania essencial que se trata de conquistar, no
enfrentamento, para Char, daquilo que lhe parece condenável ou mesmo
desprezível, no desejo, para Camus, de uma ação compartilhada, capaz de
abrir a uma harmonia mais justa, e totalmente ao inverso, em Cioran, na
recusa de se submeter a uma má História em que o desastre humano não
pode senão aumentar. Pensamentos do presente, em todo caso, que,
rompendo com as ideologias confortáveis do progresso, desfaz
constantemente a ilusão de um futuro projetado como melhor, ou seja,
separado, e só se apegam a uma maneira de melhor viver em uma lucidez
constantemente reconquistada que é precisamente o que abre, em cada um
deles, a tensão essencial entre o mais sombrio pensamento do real e, não
obstante, a aceitação do que é.
Quanto aos valores forjados por esses três escritores, o essencial
não será, portanto, estuda-los no prolongamento que eles puderam ter no
exterior, mas no embasamento interior, isto sim, que eles constituíram
para suas obras. Do lado exterior, com efeito, cada um deles, face a seu
tempo, escolheu uma posição diferente: Char combateu com as armas e
Camus com a pluma; quanto a Cioran, após a complicação dos anos romenos e
o infeliz apoio à Guarda de Ferro fascistizante, ele se recusou
ariscamente a assumir toda posição pública, preferindo se estabelecer em
uma solidão essencial e não se responsabilizar pelas consequências
daquilo que ele escreve. Do interior, porém, a dimensão plenamente ética
de sua obra se descobre identicamente na recusa radical, formulada com
frequência de maneira univitelina, a expressar o que quer que seja que
não tenha sido intimamente experimentado – na experiência justamente
daquilo que permanece uma maneira de drama pessoal: de onde o aval
concedido por todos os três a toda proposição abstrata, ou seja,
separada do mundo, como a todo pensamento desvinculado daquele que o
enuncia. A questão da recepção se coloca, portanto, em termos distintos a
cada vez pois, se Camus direciona sua obra de bom grado aos leitores
suscetíveis de se reconhecerem nela, René Char o distancia mais – é
particularmente o que se denomina seu hermetismo –, e Cioran
deliberadamente a rebaixa em nome da irrealização pessoal que a funda.
Ler essas obras na maior proximidade com aquilo que elas significam não é
trair essa diferença em que se afirma particularmente a tensão entre a
moral e a ética, a difícil partilha entre uma e outra que, ademais – e é
isso precisamente que me reterá aqui –, governa o sentido que pode
haver, afinal de contas, em escrever.
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Tradução do francês: Rodrigo Menezes
Fonte: http://emcioranbr.wordpress.com/fortuna-critica/jarrety/
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