quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O tempo de uma nova comunidade

 
Pesquisadores brasileiros falam sobre o interesse e a atualidade do pensamento de Giorgio Agamben e analisam as conexões possíveis entre o momento político presente e sua obra, que investiga temas como a violência do Estado 
e as margens da lei e da sociedade 

O que mais impressiona nas manifestações (...) é, de fato, a relativa ausência de conteúdos determinados de reivindicação...”. Em elaborações mais ou menos parecidas, algumas vezes acompanhadas de expressões de perplexidade como “afinal, o que querem os manifestantes?”, frases como esta foram repetidas exaustivamente desde que as revoltas de junho começaram, espalhando pelas ruas do país milhares de manifestantes em torno de pautas de reivindicação difusas — como em tantos outros protestos de rua que eclodiram nos últimos dois meses — ou com demandas específicas, como as do Movimento Passe Livre. A frase completa, no entanto, é do filósofo Giorgio Agamben, se refere aos protestos da Praça da Paz Celestial, e está publicada em “A comunidade que vem”, lançado na Itália em 1990.

Quem chama atenção para a semelhança entre o Brasil do século XXI e o que Agamben pensa sobre a China de 1989 é Cláudio Oliveira, professor do departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenador da coleção Filô Agamben e tradutor do livro, lançamento da Autêntica e um dos três títulos do autor que estão chegando às livrarias por editoras diferentes, indicando o interesse e a atualidade do pensador italiano (ver box).

Atualidade que é a marca de um filósofo difícil de ser enquadrado nas concepções tradicionais de filosofia, dividida classicamente entre antiga, medieval, moderna e contemporânea, onde ele, nascido em 1942 deveria se situar. Mas como suas influências principais já são de autores contemporâneos, como Martin Heidegger, Walter Benjamin, Michel Foucault, Jacques Derrida e Hannah Arendt — onde se pode localizar muito da sua influência para pensar a política — Agamben acaba sendo símbolo de uma renovação filosófica do século XXI.

Em A comunidade que vem, Agamben pensa sobre aquilo que, até recentemente, não parecia ser um modo político de pensar uma comunidade: não fundada em ideais de identidade e universalidade. Com as manifestações de junho, a rejeição a instituições políticas como partidos ou sindicatos, a “comunidade que vem” se torna uma chave para pensar o que Agamben chama de “singularidades quaisquer”.

Oliveira lembra como o filósofo aponta para essa ausência de conteúdos determinados como um paradigma do seu pensamento político: “A política da singularidade qualquer, isto é, de um ser cuja comunidade não é mediada por nenhuma condição de pertencimento”, escreve Agamben no mesmo capítulo sobre a comunidade que vem. Essa ausência de pertencimento se refletiu nas ruas brasileiras em slogans como “sem partido” ou “sem bandeiras”, forma de fazer política que também pode ser pensada a partir de Agamben, para quem o grande alvo — na China, mas, segundo Oliveira, também no Brasil — era o próprio Estado. Por isso, o tradutor destaca como nova característica da política o que Agamben identifica como não mais a luta pela conquista ou pelo controle do Estado, mas a luta entre o Estado e o não-Estado.

Outros caminhos podem ser traçados para fazer conexões entre a obra de Agamben e o momento político brasileiro. Pela Boitempo Editorial, chega às livrarias Opus Dei — Arqueologia do ofício, tomo 5 do volume II de sua principal obra, “Homo sacer”, que começou a ser publicada na Itália em 1995 e comporta até agora sete livros, dos quais seis já estão traduzidos no Brasil. Ao contrário do que pode sugerir o título, “Opus Dei” não é uma investigação sobre a poderosa organização católica homônima, mas uma arqueologia do conceito de ofício que, segundo Agamben, exerceu profunda influência sobre a cultura moderna. Um debate que também pode se ligar aos protestos de junho, quando ele diz que “real é só o que é efetivo e, como tal, governável”. O livro faz parte da série de obras na qual ele pensa o homo sacer, figura que Agamben, no seu método arqueológico, resgata do direito romano. Homo sacer é aquele que pode ser morto sem que sua morte configure um assassinato.

— O caso mais paradigmático de homo sacer dos últimos tempos é o do brasileiro Jean Charles, morto no metrô de Londres, pela polícia inglesa. Há inúmeros outros, como o do morador alvejado pela polícia do Rio enquanto empunhava uma furadeira elétrica em sua casa, e agora o caso de Amarildo, cujo destino ainda permanece um enigma — argumenta Cláudio Oliveira.

Para a professora de Filosofia Georgia Amitrano (UFU), Agamben também permite pensar um paradoxo da política atual no momento brasileiro. Trata-se do estado de exceção — título de um dos volumes de “Homo sacer” —, cuja contradição é criar na lei a possibilidade de suspensão da lei. Como exemplo, Georgia cita o decreto estadual que criou a Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas (CEIV) — modificado pelo governo depois de críticas sobre trechos supostamente inconstitucionais.

— Agamben menciona as prisões de Guantánamo, mas podemos pensar que, com o decreto, o governo do estado se vale de um dispositivo legal para suspender a lei — explica ela, cuja tese de doutorado foi sobre Hannah Arendt, uma das autoras que inspirou o pensamento político de Agamben.

Outro exemplo dessa lei que suspende a lei quem cita é Edson Telles, professor de filosofia política da Unifesp, também um leitor de Agamben e Arendt e organizador de O que resta da ditadura (Boitempo Editorial). Para ele, a Lei Geral da Copa, que institui regras específicas, promove uma suspensão das leis ordinárias como a que o país vivenciou durante a Copa das Confederações:

— Em torno dos estádios, os direitos de cidadania a livre circulação e manifestação foram suspensas, instituindo-se um pequeno território, dentro do Estado nacional regido pela Constituição brasileira, no qual cada um dos indivíduos que lá se encontrava devia submeter-se a um regime policial militar. A característica perigosa e original deste estado de exceção é que ele ocorre, diferentemente de uma ditadura, com a autorização dos poderes instituídos. Ao legitimar estes pequenos momentos de exceção, como os vistos durante a repressão aos movimentos sociais, o Estado democrático permite a existência de uma bolha autoritária dentro de si.

Dele discorda o professor de Filosofia Marcos Nobre (Unicamp/Cebrap), autor do recém-lançado Choque de democracia — Razões da revolta (Companhia das Letras), para quem, embora as exigências da FIFA sejam “abusivas e inaceitáveis”, não podem ser caracterizadas como estado de exceção.

— Nossa democracia é ainda muito pouco democrática. Mas é democracia — argumenta Nobre.

Num ponto, no entanto, todos concordam: o aparato policial ainda é o que resta da ditadura, e a repressão policial acabou sendo, para Nobre, a gota d’água.

— As pessoas se disseram algo como “não temos qualquer influência sobre o sistema político e, ainda por cima, mandam a polícia reprimir pessoas que estão protestando contra o preço abusivo e a péssima qualidade do transporte público? é demais, inaceitável” — observa ele, para quem a luta pelo direito de manifestação está ligada diretamente ao combate do processo de blindagem do sistema político e ao protesto contra o baixíssimo grau de democratização da instituição policial.

Condições que são, do ponto de vista de Teles, legado da ditadura militar brasileira e da militarização das polícias: — As polícias foram organizadas para combater o imaginário inimigo interno ao invés de fazer a segurança pública. Fruto desta doutrina instituída pela ditadura, temos hoje pelo menos dois efeitos: de um lado, as polícias não têm competência para a realização de um trabalho preventivo de segurança pública, atuando sempre com atraso e dentro de uma lógica repressiva e destruidora; por outro lado, mesmo após a democratização, esta polícia manteve a interpretação de que o opositor ou militante de movimentos sociais é um dos principais alvos de sua ação.

Neste ponto, Cláudio Oliveira acredita que se pode retomar as observações de Agamben, autor que, ao falar sobre a China, chamou atenção para o que o tradutor também observa na situação brasileira: a violência, aparentemente desproporcional, da reação do Estado.

— Agamben entende essa violência como o reconhecimento de que o grande alvo das manifestações não era essa ou aquela reivindicação. As manifestações do Rio nos mostram que nem é mais preciso que uma autoridade declare oficialmente o estado de exceção, cada policial se encarrega ele mesmo de declará-lo em suas ações cotidianas. Diante dele todos nos tornamos vida nua, cada um de nós como um homo sacer

Carla Rodrigues
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Fontes: 2013-08-03 - O Globo - Prosa e Verso
http://boitempoeditorial.com.br - Imagem da Internet

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