Christophe Ventura, da Medelu*
Desde 2011, diversos choques contestatórios percorrem o mundo em
diferentes regiões: sul da Europa, mundo árabe, América do Norte –
Canadá e Estados Unidos – Turquia, América do Sul e Ásia.
Além das especificidades de cada um, todos esses movimentos partilham
de pontos comuns: eles se ampliam, rejeitam as políticas de
austeridade, a corrupção e criticam os sistemas políticos e as ações (e
até a falta delas) dos Estados.
Nesse contexto, os partidos políticos, principalmente os do governo
(tanto os de direita como os de esquerda), são interpelados e
vilipendiados – para não dizer jogados ao descrédito público. Esta
“crise da política tradicional” ja foi largamente comentada e analisada.
É provavel que tenha atingido seu paroxismo na Itália, onde engendrou
uma nova situação: aumento generalizado (sociológico e territorial) da
abstenção eleitoral; desaparecimento, nesse contexto, da esquerda
proveniente do movimento operário abaixo do limiar de credibilidade;
erosão dos partidos do sistema; enrijecimento ideológico das direitas;
escorregão neoliberal das forças social-democratas; emergência do
movimento social/eleitoral anti-partidos tradicionais Movimento Cinco
Estrelas – (M5S); multiplicação de movimentos sociais locais (contra
projetos inúteis, por uma redefinição da democracia local, etc). [1]
Em uma obra não traduzida – Finale di partito [2] (Fim de
Partido [3]) – o intelectual e cientista político italiano Marco Revelli
se interroga a respeito destes fenômenos contemporâneos. Ele analisa,
em particular, essa crise de confiança dos cidadãos nos partidos
políticos.
Para ele, a forma partidária herdada da segunda revolução industrial
casa harmoniosamente com a organização dos grandes sistemas de produção –
as fábricas – “centralizados e burocratizados, mecanizados e
padronizados, rígidos e rigorosamente territorializados, pensados pela
programação e planejamento de um longo período”. Tratava-se então de
operar na conscientização e na integração políticas de novas massas de
trabalhadores recentemente passados do estado de multidões camponesas,
linguísticas e culturais ao estado de classe operária. Essa tarefa
necessitava, no contexto de emergência do capitalismo industrial, de uma
referência de organização vertical, adaptada às estruturas econômicas e
sociais e baseada no princípio de delegação e de representação.
Tratava-se de organizar a luta no seio das unidades de produção que
engendravam as relações de produção territorializadas. Assim, “o partido
de massa era (..) o microcosmo no qual se refletia o microcosmo social
paralelo (…). Ele era destinado a refletir, no espaço parlamentar, o
jogo conflituoso (e de negociação) entre os grupos sociais unidos” e a
oligarquia. Neste contexto, o “representante” beneficiava da confiança
do “representado”, com quem ele partilhava a proximidade territorial e,
por vezes, o espaço de trabalho. Assim, a “máquina política” respondia à
máquina capitalista.
O partido inspirava-se igualmente, por sua organização, no modelo de Estado e de administração que ele ambicionava conquistar.
O fim do modelo fordista de produção, a internacionalização e a
segmentação de cadeias produtivas, o “livre” comércio, a financeirização
da economia capitalista, a emergência da economia desmaterializada e de
serviços foram, segundo o autor, o início de uma desestruturação
progressiva e irreversível dos modos de organização do trabalho e de
modelos de classes.
A erosão da homogeneidade sociológica e da classe de trabalhadores e o
aumento do nível educacional tinham gerado a aparição da “política
líquida” [4], espelho e produto da diversificação de fluxos econômicos e
sociais na esfera política. Nós assistimos assim à uma “liquefação do
corpo eleitoral” vindo da fragmentação de “pertencimentos sociais
estáveis”. Para Marco Revelli, “o partido político ‘clássico’ (…) era a
forma mais adaptada para responder à uma demanda social tipicamente
“materializada” (…) de eleitores mecanicamente agregados em grupos
relativamente homogêneos de populações largamente definidas por seus
papéis produtivos respectivos e caracterizados por um nível médio ou
baixo de escolaridade. Tratava-se da forma própria de representação na
modernidade industrial”.
Agora, a família de trabalhadores é múltipla e as novas gerações
vindas dos anos 1970, 1980 e 1990 têm características sociopolíticas
diferentes. Não são mais os trabalhadores manuais orientados pelas
grandes organizações sindicais e políticas que pesam na dinâmica das
relações sociais, mas os estudantes, os técnicos, trabalhadores
intelectuais mobilizados na economia dos serviços (setor terciário), o
telemarketing, etc. Esses formam os novos batalhões de classes
média-baixas urbanas e precárias que têm acesso aos ganhos públicos e ao
emprego, mas de maneira intermitente.
Mesmo que sociologicamente minoritários, muito mais fragmentados e
heterogêneos que seus “descendentes”, “mais aculturados e zelosos por
sua própria independência, mais insubmissos à relação
comando-obediência”, eles constituem os grupos mais ativos nas
mobilizações sociais e os mais diretamente associados às novas formas
sócio-econômicas desencadeadas pela mutação do capitalismo e de suas
contradições. Ainda assim, neste contexto, “sua instrução elevada é
correlacionada às formas de ações políticas não convencionais” [5], à
rejeição dos quadros organizacionais e ideológicos das formas políticas
existentes, à reivindicação de uma ação “apolítica” – uma vez que, na
verdade, seus slogans e valores são hiper-políticos (probidade, respeito
da vontade popular, reivindicação em favor dos serviços públicos e de
bens comuns, limitação do poder monetário, demanda de uma nova ordem da
sociedade, etc.). Seria uma forma “sub-política” da política ou da forma
“política da segunda modernidade”. [6]
Qualquer que ela seja, para o autor, sabe-se que o “controle
monopolístico do espaço público pelos partidos está terminado” . Assim
como o Estado nacional, que imitaram na sua organização, os partidos
exercerão uma “soberania limitada” na sociedade.
Nesta, vários poderes coabitam atualmente: o poder financeiro, o
poder político (rebaixado e vítima de uma crise de confiança), o poder
midiático (amplamente controlado pelo financeiro), o poder do corpo
social (capaz de interferir esporadicamente com o poder político e de
perturbar o consenso das oligarquias), o cyberpoder (que mobiliza o
conjunto de atores de um campo inédito).
Na sua parte, os novos atores da contestação serão a questão de uma
amarga e determinante batalha ideológica futura entre direita e
esquerda.
Nesta sequência, uma nova dialética entre os partidos políticos da
transformação e os novos movimentos da sociedade deve imperativamente se
inventar.
NOTAS
[1] Sobre todos estes assuntos, ler o site www.democraziakmzero.org
[2] Marco Revelli, Finale de partito , Giuli Einaudi editore, Turin, 2013.
[3] Este título é um jogo de palavras construído a partir da
expressão “Finale di partita”(Fim da partida) que é igualmente o título
de uma peça do dramaturgo Samuel Beckett
[4] O conceito de “vida líquida” foi teorizado pelo sociólogo e
filósofo Zygmunt Bauman. Este último continua pouco conhecido na França
ou em alguns países onde suas obras foram, apesar de tudo, trazidas. Nós
citamos, entre outros: O custo humano da mundialização (Hachette,
Paris, 1999), A vida em migalhas (Hachette , Paris, 2003), A Vida
Líquida (Rouergue, Chambon, 2006) e A decadência dos intelectuais. Dos
legisladores aos intérpretes (Actes Sud, Arles, 2007). Sobre seu
pensamento, ler Ignacio Ramonet, “Para um outono quente na Espanha?”.
[5] Citação pelo autor do cientista político estadunidense Ronal Inglehart
[6] Segundo as expressões do sociólogo alemão Ulrich Beck retomados pelo autor.
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* Tradução: Cristiana Martin
(Outras Palavras)
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