Luiz Felipe Pondé*
"Amor Pleno", novo filme de Terrence Malick, é um exemplo do que o
místico espanhol do século 16 San Juan de la Cruz chamou de "noite
escura da alma". Não é à toa que o padre (Javier Bardem) tem um discurso
muito colado ao do místico espanhol. Ele é o personagem central da
narrativa. Como sempre, sem teologia e filosofia, não se entende
Terrence Malick.
Por consequência, o filme está próximo do texto bíblico "Cântico dos
Cânticos", peça fundamental da literatura mística ocidental, influência
marcante no místico espanhol: "Onde Te escondestes que não Te encontro,
meu Deus?". No "Cânticos", o amor entre Deus e a humanidade é
representado pelo amor entre um homem e uma mulher, suas agonias,
prazeres e ausências. "A Noite Escura da Alma" é, como "Cânticos", um
texto erótico.
"O amor de Cristo pela sua igreja é como o amor de um homem e uma
mulher", diz Bardem. Eis a chave para entendermos o poema místico que é
"Amor Pleno". No cristianismo, amor não é mero afeto, mas a ação que nos
faz existir. Sem ele, a vida esvazia.
Nesta chave, o amor entre Ben Affleck e "suas" duas mulheres está também
"sob" o véu da noite escura da alma, assim como está o amor do padre
por Deus e o mundo. Ele é incapaz de amar, elas sofrem por isso.
O filme encerra com a imagem do Mont Saint-Michel, na França, local onde
o casal vai no começo de seu amor. Esta abadia é símbolo da vida
monástica medieval. Os filósofos vitorinos (Hugo e Ricardo da Abadia de
São Vitor, século 12), em sua teoria sobre o amor, entendiam que o amor,
posteriormente dito romântico, era da mesma substância do amor de Deus.
Assim como é difícil para nós mantermos o amor por Deus, é difícil
sustentarmos o amor entre um homem e uma mulher. Nossa natureza "caída"
não suporta o "peso" do amor. Este "peso" assume várias formas, entre
elas, o compromisso com ele, principalmente no vazio que o cotidiano
instaura em nosso coração e corpo sedentos.
Nossa natureza tende "para baixo", para o tédio e a insatisfação, como
diz a mulher francesa no filme quando se refere às duas mulheres que
existe nela: uma tende para o amor, para o alto, a outra para baixo,
para a terra.
Não é à toa que ela, a francesa, após uma longa conversa com a amiga
italiana, niilista e entediada, chega ao adultério, símbolo máximo do
tédio e da degradação do amor. Quando nos distanciamos do amor, nos
dissipamos num desejo que nos leva ao nada.
Mas, o que vem a ser esta "noite escura da alma"? Quando falamos de
mística, pensamos normalmente em êxtase, em "gozo místico". Mas, a
"noite escura" é o momento em que a alma, conhecedora de Deus, deixa de
senti-lo no seu cotidiano, o que a leva à solidão, ao desespero e à
dúvida. Uma verdadeira mística da agonia.
Neste momento, o padre lembra a máxima do Evangelho: "Você deve amar",
portanto, o amor não é mero sentimento, mas sim uma ação, como é dito no
filme. Agir com amor, mesmo que não sintamos o amor. Para ele,
continuar cuidando dos doentes, para o casal, continuar a cuidar um do
outro, porque longe do amor, somos todos doentes, umas criaturas da
noite que vagam numa escuridão sem fim. No escuro, não é só o outro que
desaparece, mas nós também.
O padre chega mesmo a lamentar o fato que, em seu ministério, ele deve
"fingir" sentimentos que não tem, assim como um casal deve continuar a
amar (esta é a condição do amor como "ação" e não mero sentimento) mesmo
quando a paixão desaparece.
Quando nos sentimos longe do amor (de Deus), vemos nosso nada, isso
deixa nossa alma inquieta, sedenta. Como é dito em "Árvore da Vida",
filme anterior de Malick, a vida sem amor "flashes by", apenas passa.
Esta é a chave para passarmos do "Árvore da Vida" ao "Amor Pleno". A
responsabilidade dos que "amam menos", como diz o padre, se referindo a
ele e a Ben Affleck, é maior, porque são eles que enxergam melhor o
vazio no coração da vida.
Os ecos da "noite escura" atingem toda a existência, para além da
teologia, adentrando a solidão nossa de cada dia. O drama maior não é
não ser amado, mas ser incapaz de amar.
----------------------
* Pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP,
pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor
da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo,
religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles,
"Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão
impressa de "Ilustrada".
Fonte: Folha on line, 12/08/2013
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário