segunda-feira, 12 de agosto de 2013

“É preciso criar novas formas de participação direta”

Em entrevista ao jornal El País, publicada neste domingo (11), o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, analisa a crise da democracia representativa e defende a necessidade de criar novas formas de participação direta para revitalizar a democracia e evitar que essa crise acabe resultando em saídas autoritárias. “Haverá uma saída para a situação atual; poderá ser uma saída autoritária, uma quebra do Estado democrático ou uma saída para recompor a democracia”.

Lisboa - Os cidadãos do Rio Grande do Sul não estavam contentes com os serviços públicos na área da saúde. Consideravam que havia grandes carências na rede assistencial de seu Estado, de 10 milhões de habitantes, um dos 26 que compõem o Brasil. Tiveram a sorte de contar com um mecanismo de participação direta para expressá-lo. No ano passado, o governo estadual os convidou a se pronunciar sobre as prioridades do orçamento. Por meio da internet, votaram que 12% da arrecadação devia ser destinada à saúde, quando, até então, esse índice era de 5,7%. E esse voto se materializou em decisão de Estado em 2013.

Tarso Genro esboça um sorriso ao fazer esse relato. O ex-ministro da Justiça e da Educação, do governo Lula, de passagem por Lisboa para um seminário sobre participação cidadã, aparece com uma estrela do Partido dos Trabalhadores presa na lapela. O político brasileiro, de 66 anos, é o governador do Rio Grande do Sul desde 2011 e uma referência mundial para os defensores da “tecnopolítica”, da participação dos cidadãos nas decisões mediante tecnologias digitais. Seu compromisso com a voz da cidadania iniciou em 1990, quando era vice-prefeito de Porto Alegre. Naquele ano, colocou em marcha os orçamentos participativos, mediante os quais a população começou a influir na decisão de que rua devia ser asfaltada ou que devia receber postes de iluminação.

O esvaziamento da democracia representativa
Tarso Genro é um homem de discurso apaixonado, Movimenta as mãos enquanto fala, quer convencer. Seus gestos são de alguém que tem claro que o que diz é fruto do puro bom senso. Assume que as democracias parlamentares também têm “sua lógica autoritária e excludente”. E aprofunda sua análise: “A democracia representativa foi se esvaziando até se esvaziar completamente e gerar um afastamento completo entre Estado e sociedade. E a esquerda não se preocupou em renovar profundamente a democracia”.

Foi prefeito de Porto Alegre entre 1993 e 1997, e entre 2001 e 2002. Sua aposta na democracia direta foi crescendo no ritmo das tecnologias digitais. Este respeitado integrante do PT brasileiro, com 53 mil seguidores no Twitter, faz funcionar a pleno vapor seu Gabinete Digital, uma ferramenta que permite aos habitantes do Rio Grande do Sul pronunciarem-se sobre prioridades políticas, controlarem o ritmo das obras, responderem a consultas específicas ou pedirem prestações de contas diretamente ao governador por meio de um portal.

El País: Você considera que a democracia participativa será capaz de frear a crescente insatisfação com a classe política?
Tarso Genro: A questão é mais profunda do que uma insatisfação com a política. O que ocorre, na minha opinião, é que há uma visão consolidada em uma grande parte da população sobre a inutilidade da política. Houve uma captura da política por parte do poder financeiro globalizado. Os governos se movem por uma lógica que obedece a esta captura. Os partidos têm uma margem decisória muito pequena porque a lógica financeira do orçamento foi capturada pelas necessidades do pagamento da dívida. Que papel desempenham os orçamentos participativos neste contexto: eles supõem uma relegitimação permanente do poder político. Hoje a representação política perde seu valor no dia em que os membros de um governo assumem seus cargos e não podem cumprir seus programas. Eu creio que a democracia representativa foi superada na modernidade. A distância entre representante e representado se tornou absoluta. É preciso combinar democracia representativa com democracia direta.

El País: E como se sai desta captura da política por parte dos mercados financeiros?
Tarso Genro: A situação de Portugal é distinta da do Brasil. Em Portugal, a demanda mais radical que se pode fazer, em minha modesta opinião, é articular um bloco político e social que diga: “Não pagaremos esta dívida, queremos reorientá-la, reestruturá-la; queremos separar a dívida verdadeira e justa da dívida injusta e manipulada pelos mercados”.

El País: E como se define que parte dessa dívida é justa?
Tarso Genro: Isso pode ser feito mediante estudos de peritos. Existe uma dívida que é real, contratual; e outra dívida que é uma manipulação dos mercados. Isso envolve uma decisão política. Sem a renegociação dessa dívida não há saída democrática. Em meu país a situação é diferente. Nós temos que desenvolver um modelo de crescimento econômico e social que nos permita libertar-nos progressivamente de uma dívida que absorve 40% da arrecadação. São formas de ruptura com a situação atual que tem que ser negociadas no marco da democracia; se não conseguirmos fazer isso, vamos ter uma série de explosões sociais que não sabemos para onde vão nos conduzir.

El País: Além da insatisfação com a classe política, há também o problema da corrupção que afeta tanto o partido que atualmente governa a Espanha como a oposição, assim como também o PT, no brasil. A que atribui esse problema da corrupção que afeta a tantos responsáveis políticos?

Tarso Genro: Sempre haverá corrupção, em maior ou menor medida. Mas a que vemos agora em Estados e partidos é consequência de todas as políticas neoliberais que permitiram as desregulações, as privatizações e a captura do Estado por parte do capital financeiro. Sempre houve corrupção nos estados democráticos, mas não com a extraordinária dimensão dos últimos 30 anos. Atrás de cada negócio envolvido em uma privatização, aparece depois o processo de corrupção que estava em sua base.

El País: A corrupção se deve aos processos de privatização?
Tarso Genro: De modo determinante, sim. A explosão da corrupção se deve às privatizações, à privatização dos processos políticos e á ingerência brutal do capital no financiamento dos partidos para manter seus objetivos. De todo modo, é preciso reconhecer que jamais haverá um Estado puro, nem uma comunidade pura.

El País: O Estado de Bem-Estar que levou tantos anos para se construir...

Tarso Genro: Jamais será restaurado.

El País: Você acredita nisto?
Tarso Genro: O Estado de Bem-Estar foi produto de um contrato político entre capital e trabalho, que organizou um sistema de proteção. Mas esse sistema não foi acompanhado de políticas fiscais no mundo desenvolvido, de modo que a socialdemocracia teve que se endividar para manter as conquistas sociais. Devemos pensar em um novo contrato social que contemple um sistema de proteção que combata desigualdades sociais.

El País: Com a experiência que você tem com as fórmulas de participação direta dos cidadãos na política, o que recomendaria a um governante que quisesse abrir esse tipo de canais?
Tarso Genro: Para o governante este tipo de fórmula resulta exaustiva porque ele tem que participar diretamente dela para que sejam merecedoras de confiança. Mas é algo que precisa ser feito. É preciso combinar câmaras de concertação estratégica, participação presencial, participação digital e conselhos regionais específicos, que é onde estão as pessoas que conhecem bem a sua região. É fundamental prestar atenção nos Conselhos de Desenvolvimento Econômico e Social, que não decidem por maioria, mas sim por convergência, por concertação.

El País: Que perigo há de os processos de participação cidadã que vocês adotaram terminem resultando em um simples instrumento de marketing político?
Tarso Genro: Esse é um perigo permanente. Processos desta natureza só são duráveis e sustentáveis na medida em que a cidadania se apropria deles. São como qualquer outra conquista democrática: pode ser manipulada, pode ser bloqueada ou revalorizada. Aí entra em jogo o desafio da imaginação e da criatividade política. É preciso contar também com a criatividade política da própria cidadania.

El País: Para onde caminha o mundo em que vivemos? Você otimista ou pessimista em relação ao futuro?
Tarso Genro: Confesso que, aos 66 anos, sou mais pessimista que otimista. Mas acredito que é possível construir saídas dentro da democracia. Porque haverá uma saída para a situação atual; poderá ser uma saída autoritária, ou uma quebra do Estado democrático para uma situação indeterminada. Temos um terço de possibilidades de criar saídas para recompor a democracia com novas formas de participação direta. Se não construirmos caminhos nesta direção é possível que assistamos a explosões e transformações econômicas e sociais incontroláveis, que podem ser apropriadas por algumas formas de autoritarismo.
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Tradução: Katarina Peixoto 
Fotos: Francisco Seco/El País
Fonte:  http://www.cartamaior.com.br/11/08/2013

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