sexta-feira, 9 de agosto de 2013

As regras da Copa e a voz da rua

Alberto Carlos Almeida*
Todos conhecem a frase de inspiração marxista: "o futebol é o ópio do povo". Marx escreveu, em 1843, na sua "Crítica da Filosofia do Direito de Hegel", que a religião era o "ópio do povo". Marx foi muito claro ao afirmar que a religião era o suspiro da criatura oprimida. Para ele, a classe trabalhadora não fazia a revolução socialista porque, dentre outras coisas, seu sofrimento era aliviado pela religião, que prometia uma vida após a morte recompensadora justamente por que na terra eles eram pobres e oprimidos.

O ópio anestesia. A religião e o futebol, para alguns, também. Já há muitos anos é parte de diálogos corriqueiros e artigos de jornais o argumento de que a população pobre brasileira é "anestesiada" pelo futebol. A recente onda de protestos causou surpresa para muitos analistas, que, por causa dela, vieram a afirmar que "o futebol deixou de ser o ópio do povo". As duas afirmações, a de que o futebol sempre fora e agora deixava de ser um anestésico para o sofrimento, mostra quanto inúmeros brasileiros desconhecem seu próprio país. Além disso, mostra como a memória de todos, não apenas do povo, mas também de segmentos da elite, é curta.

Em 1994, depois de 24 anos sem ganhar uma Copa do Mundo, o Brasil sagrou-se tetracampeão nos Estados Unidos. Naquele ano, o futebol teria funcionado como o "ópio do povo", uma vez que o governo Itamar Franco elegera presidente seu ex-ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Apenas quatro anos mais tarde, porém, essa explicação do comportamento do brasileiro que mistura política e futebol não mais encontraria confirmação. A seleção brasileira sofreu uma derrota acachapante na final para a França e acabou por ficar em segundo lugar. Todavia, Fernando Henrique foi reeleito presidente no primeiro turno.

Em 2002, a visão de que o futebol é o ópio do povo sofreria novo revés. O Brasil seria pentacampeão na primeira Copa sediada conjuntamente por dois países, Coreia do Sul e Japão, e mesmo assim o candidato do governo, José Serra, seria derrotado pela oposição, representada por Lula. Nas duas eleições subsequentes, o Brasil não se sagrou campeão, a Itália venceu a Copa de 2006 e a Espanha, a de 2010. Mesmo assim, nesses dois anos o governo venceu a eleição presidencial, em 2006, com a reeleição de Lula, e em 2010, com a vitória de Dilma.

Considerando-se as cinco eleições presidenciais ocorridas desde que Fernando Henrique foi eleito presidente pela primeira vez, apenas em 1994 o futebol foi o "ópio do povo". Em todas as outras, ele não anestesiou nem aliviou os efeitos da pobreza. O futebol também não foi capaz de motivar a população contra o governo, pois, em vários anos de derrotas em Copas do Mundo, o governo acabou vencendo a eleição presidencial. Assim, causa enorme espanto que muitas pessoas fiquem surpresas com o fato de a onda de protestos ter acontecido e atingido seu pico justamente durante a Copa das Confederações.

No caso da Copa das Confederações, o futebol foi a "cocaína do povo". Em vez de anestesiar, como faz o ópio, serviu de excitante, como tendem a fazer os psicotrópicos que estimulam o sistema nervoso central. É possível que, na ausência de uma Copa das Confederações, os protestos de junho não tivessem acontecido. Àqueles que desprezam a importância do futebol na sociedade brasileira recomenda-se a leitura de Roberto Da Matta. Ele foi o primeiro a mostrar, fundamentado em sólidas evidências empíricas, que o futebol é para os brasileiros muito mais do que um simples entretenimento e, provavelmente por isso, foi um dos mais importantes estopins dos protestos de junho.

O futebol funciona como um elemento crucial para a socialização de brasileiros nas regras de um jogo. Desde muito cedo, todos nós aprendemos, independentemente de sermos meninas ou meninos, que há competição entre diferentes times e que eles disputam, honestamente, dentro de quatro linhas e têm que respeitar determinadas regras. As regras são claras para todos e, na medida em que as crianças crescem, aprendem a entender coisas mais complexas, como é o caso da situação de impedimento. O futebol é a maneira mais abrangente, democrática, simples, direta, precoce e fácil de ensinar às crianças que é necessário agir de acordo com um certo conjunto de normas.

O futebol ensina muito mais do que isso. Mostra que é possível divergir, que é possível ser adversário e conviver pacífica e respeitosamente. As pessoas convivem em situações de família, de trabalho e de vizinhança, cada qual com seu time - e, após os resultados de jogos e campeonatos, os derrotados têm que aceitar a gozação feita pelos vitoriosos. Os dois lados, vencedores e perdedores, sabem que se trata de uma situação transitória e que o vencedor de hoje será, com grande probabilidade, o derrotado de amanhã. A convivência pacífica é a regra, assim como é a aceitação da gozação. Aprendemos como é possível ser adversário sem ter que se transformar em inimigo.

O futebol, no Brasil, é o reino por excelência da meritocracia. Não há jogador que vá a campo porque é puxa-saco do técnico. Ou o desempenho é permanentemente de excelência ou ele é barrado, e cede lugar a alguém em melhor forma. Tampouco há espaço para qualquer versão que seja de nepotismo. Filhos, irmãos ou parentes de jogadores já consagrados que decidem seguir a mesma carreira do parente célebre precisam mostrar que de fato são bons de bola para terem um lugar ao sol. É por meio do futebol que aprendemos a utilizar a régua da meritocracia.

Não é simples entender o papel que o futebol tem em nossas vidas. Dizia o grande pensador francês Alexis de Tocqueville, quando abordava os fenômenos sociais e culturais: quanto mais presente uma coisa é, menos se nota que existe. É assim com o futebol no Brasil. Isso é resumido na frase "o Brasil é o país do futebol".

A Fifa decidiu organizar uma Copa das Confederações e uma Copa do Mundo no país do futebol, um lugar onde, em dias de jogos da seleção, todos param de trabalhar para assistir. Acontece que a Fifa de hoje não é a mesma Fifa dos anos 1980. A regulação que ela exerce sobre esses eventos é enorme. As regras da Fifa determinam as características dos estádios, o que será vendido em seu interior, a maneira de chegar a suas imediações, o que os torcedores podem ou não fazer quando vão aos jogos, como se conta o tempo de jogo e até mesmo o formato da rede. Tudo é regulado nos mínimos detalhes. Fazer isso na Alemanha é aceitável, pois não se trata do país do futebol. Fazer isso no Brasil significa mexer com todo mundo. Mexeu com o futebol, "mexeu comigo".

Não foi mero fruto do acaso que a torcida brasileira tenha decidido quebrar uma das regras da Fifa. O hino nacional só pode ser tocado, de acordo com tais regras, por um minuto e meio. A torcida disse para a Fifa o seguinte: "Alto lá, aqui não, aqui você não mexe, o hino é meu e o futebol é coisa séria, é minha filosofia de vida. Vou cantar o hino que me representa e ver as pessoas que me representam no campo, mas não vou fazer dentro de suas regras, vou fazer do meu jeito".

Os protestos têm a ver com o fato de o futebol mobilizar todos os brasileiros e também, provavelmente, com o fato de a Fifa ter imposto inúmeras regras que não fazem o menor sentido. É claro que as causas dos protestos são múltiplas: mau uso dos recursos públicos, simbologia aristocrática de exercício do poder, impunidade dos políticos, serviços públicos de baixa qualidade etc. Mas tudo isso contou com um detonador, algo que diz respeito a todos nós: o futebol e a exigências da Fifa em nossa casa. Aí é demais.

Recentemente, a Fifa manifestou preocupação com o que pode vir a ocorrer no Brasil durante a Copa do Mundo. A Fifa não está acostumada a organizar esse evento no país do futebol. Para minimizar os riscos de que a Copa do Mundo seja palco de novas manifestações, a Fifa ajudaria muito se fosse mais flexível em suas inúmeras regras e permitisse que os brasileiros fizessem uma Copa do Mundo que fosse a cara do Brasil. Quanto mais próximo disso, menores os riscos da Fifa.
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* Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro". alberto.almeida@institutoanalise.com www.twitter.com/albertocalmeida
Fonte: Valor Econômico on line, 09/08/2013

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