Arnaldo Jabor*
Vi o filme novo de Bruno Barreto, Flores Raras, previsto para entrar
em cartaz esta semana. Uma história de amor entre duas mulheres nos anos
50/60 no Rio. O filme tem uma delicadeza rara hoje em nosso cinema,
cheio de neochanchadas para arrasar quarteirões e embrutecer mais ainda o
imaginário das plateias. Flores Raras não; tem um clima quase "de
época" na mise-en-scène, pois retrata ainda o tempo da delicadeza e da
ilusão - praias, montanhas e sol cegando a cidade para seus problemas. É
um dos belos filmes de Bruno, como Dona Flor ou o Romance da Empregada.
Duas mulheres se amam: Lota e Elizabeth Bishop.
Muita gente não sabe quem foi Elizabeth Bishop, nem é obrigada a
saber. Trata-se de uma grande poeta americana que, em 1951, passou pelo
Brasil, apaixonou-se pela brasileira Lota de Macedo Soares, intelectual
da elite carioca, e aqui ficou por 16 anos, entre grandes alegrias,
sofrimentos, crises de alcoolismo e extraordinários poemas. Lota era
assessora de Carlos Lacerda e comandou a construção do nosso "Central
Park" - no Aterro do Flamengo, contra os vorazes políticos picaretas que
queriam tomar conta da área. Ali, consumiu sua saúde e seu amor por
Bishop. Sempre ouvi falar de Elizabeth Bishop, mas só fui ler seus
poemas há poucos anos, quando saiu a excelente tradução de Paulo
Henriques Britto. Por que não li na época, eu que gostava tanto de
poesia? Porque (deliciem-se, patrulheiros...) como ela era "caso" de
Lota, assessora de Carlos Lacerda, o inimigo máximo da esquerda
janguista, ficava feio ler seus trabalhos. Ela era uma "americana
lésbica" e, certamente, "reacionária" - palavras devastadoras para nós.
Éramos assim em1967.
No entanto, Bishop não era apenas uma "boa poetisa". Ela está no
nível de Marianne Moore, Roberto Lowell e outros; tem uma poesia seca e
dolorida, um amor transbordante e contido, uma poesia afetiva das
"coisas", como fez Francis Ponge, João Cabral, Moore e, lá longe, John
Donne. Elizabeth Bishop fez uma poesia não lamentosa, uma poesia crítica
e seca, com forte nostalgia romântica, sem a melancolia paralisada de
outro gênio como Emily Dickinson.
Bishop escreveu muitos poemas sobre o Brasil dos anos 50 e 60, nos
quais se vê, mesclada a uma irritação "calvinista" com nossas mazelas,
uma profunda compaixão pelo desamparo social, um amor raríssimo pela
fragilidade do povo, poucas vezes encontrado em poetas brasileiros.
Elizabeth Bishop não era de "esquerda nem de direita", como se dividiam todos naquela época (e ainda hoje).
Era uma liberal americana, com olhos anglo-saxões, que assistiu como
uma "brasilianista artística", a anos cruciais de nossa história: a
morte de Getúlio, JK, Jânio, e até o golpe militar de 1964. É curioso
ver que sua vida piora enquanto o Brasil piora. E Elizabeth tem nesse
tempo a antevisão dolorosa do futuro difícil que esperava nosso País.
Ela vê uma infraestrutura secular de equívocos que estão nas
instituições como um veneno que tudo contamina. Elizabeth viu além das
ideologias, além dos dogmas.
Ela escreve: "Como país, acho que o Brasil não tem saída - não é
trágico como o México não; é apenas letárgico, egoísta, autocomplacente,
meio maluco". Mas, mesmo assim, tem amor por ele: "Um País onde a gente
se sente de algum modo mais perto da verdadeira vida, a de antigamente.
(...) Com todos os seus horrores e estupidez, uma parte do mundo
perdido ainda não se perdeu aqui".
Seu olhar profundo se detinha sobre os sintomas do que nos acontecia e
poderia continuar acontecendo. Ela viu os indícios de tragédia e
paralisia que se ocultavam por trás do egoísmo da direita udenista e
também da iludida generosidade "de esquerda", ela viu que uma maldade
profunda nos regia, que uma impiedade secular comandava nosso atraso.
Ela poderia ter escrito, no mesmo tom de Eça de Queiroz, cem anos antes,
sobre o Brasil:
"O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Não há princípio
que não seja desmentido nem instituição que não seja escarnecida. Já
não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se
progressivamente na imbecilidade e na inércia. Os serviços públicos
abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta a
cada dia. A ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. A intriga
política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País. Não é uma
existência; é uma expiação".
Seus poemas sofisticadíssimos desciam ao nosso chão:
"Sob a falsa amendoeira/ uma puta ainda menina/dança um chá-chá-chá,
girando/como um átomo na esquina (...) na sombra negra de meu prédio/ um
negro levanta a camisa/ pra mostrar um curativo/ cobrindo negra ferida/
com um bafo de cachaça/ potente feito bazuca/ aponta a bandagem branca/
e me diz coisas malucas/ dou-lhe dinheiro e boa-noite/ por força do
hábito. Ah!/ não haveria uma palavra/ mais relevante pra lhe dar?"
Perguntem a qualquer ladrão de gravata de Brasília e todos dirão de mãos postas e olhos em alvo que "o povo é sagrado".
Nós costumamos idealizar epicamente o povo ou o ignoramos com
empáfia; nós costumamos rir de sua ignorância ou transformamos a zona
geral, a bagunça, em uma espécie de orgulho cultural, como se o fracasso
permanente e outras bossas fossem uma "riqueza macunaímica" - o tesouro
de nosso destino de "malandros inzoneiros".
Elizabeth Bishop não. Ela olha cada ferida aberta, olha o negro
bêbado, a cadela leprosa na rua, a solidão do bandido Micuçu no morro da
Babilônia, o doente morrendo na maca no rio Amazonas, os bolos
coloridos de mau gosto na padaria, as sandálias de plástico das pobres
mães com bebês em Ouro Preto, provérbios em para-choques de caminhões,
os pobres diabos jogando absurdas peladas no capim por toda a parte, os
tatus e corujas fugindo da queimada, crianças doentes brincando na lama,
toda essa desgraça vegetando no meio de majestosas paisagens cortadas
por cachoeiras e florestas. E chora, tomando porres homéricos nos
botequins mais sujos.
Bishop amava o Brasil com olhos mais fundos do que nós.
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* Jornalista. Cineasta. Escritor.
Fonte: Estadão on line, 13/08/2013
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