AVIER MARÍAS | ESCRITOR
Javier Marías, de ‘Assim começa o mal’, lançado no Brasil, completa 64 anos irritado
Um dos maiores escritores espanhóis contemporâneos, Javier Marías acaba de completar 64 anos e se diz irritado com a política na Espanha, a Internet e outras coisas mundanas. Seu romance Assim começa o mal – uma trama de embustes e segredos durante a Transição espanhola,
considerada por muitos críticos o melhor livro de ficção de 2014 –
acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras. Confira o
bate-papo do autor com o EL PAÍS, de que é colaborador prolífico.
Pergunta. Você reuniu 95 artigos publicados no EL PAÍS SEMANAL sob o título Juro No Decir Nunca La Verdad
(“juro não dizer nunca a verdade”, lançado na Espanha pela Alfaguara).
Eles refletem um período em que seu desassossego civil cresceu. O que
lhe sossega?
Resposta. Sou bastante desassossegado, inquieto, às
vezes nervoso. Desde que amanhece. Talvez me acalme quando saio para
caminhar sem celular. Eu o uso nas viagens. Sinto-me mais a salvo quando
não estou ao alcance de ninguém.
P. Dizia Kafka que despertar é o momento mais arriscado do dia.
R. Para mim é o pior. Aos 25 ou 30 anos, era o de ir
dormir: eu começava a me preocupar com o futuro. Agora, acordo
atemorizado: custo a me acostumar à ideia de que devo começar o dia.
Estes quatro anos de legislatura [na Espanha]
foram irritantes e injustos"
P. E já não há mais sossego.
R. Vejo as manchetes e tudo me parece mais grave do que é. O sobressalto me dura até que eu me molhe, até submergir na banheira.
P. E depois se molha escrevendo...
R. Você escreve na imprensa para se banhar nas suas
opiniões ou para não calá-las demais. Tento raciocinar, explicar por que
alguma coisa me parece estúpida, injusta ou errada.
P. O que a realidade lhe fornece como escritor?
R. Ela me serve para estar mais atento. Se eu só
fosse romancista, correria o risco de ficar com a cabeça nas nuvens.
Escrever na imprensa me deixa um pouco mais desperto.
P. A classe literária tende a ter a cabeça nas nuvens?
R. Há aqui [na Espanha] a tradição de romancistas
que colaboraram na imprensa. A maneira de um romancista enxergar a
realidade pode ser útil num país.
P. Pode-se interpretar por seus artigos que sua irritação cresceu?
R. É difícil saber se isso é porque me tornei mais
resmungão! Ou porque há mais motivos para estar de mau humor. Ou porque
agora chego aos 64 anos, uma idade que os Beatles consideravam
revoltante. Mas estes quatro anos de legislatura [na Espanha] foram
irritantes e injustos.
P. Você qualifica esta época de grosseira e brega. Seriam adjetivos contraditórios, mas complementares?
R. Se não estiverem unidos, às vezes se alternam na
mesma pessoa. Há uma grosseria deliberada e, depois, o mesmo indivíduo
solta uma breguice descomunal no artigo seguinte, se falamos de
escritores da imprensa.
P. Você fala também de baixeza, de vilania. O que houve, Marías?
R. Nunca fomos um país muito educado; os períodos
democráticos verdadeiros foram escassos e duraram pouco, com exceção do
atual. E parece que houve uma regressão. Há um pouco de baixeza na
Espanha que reemergiu agora. Jovens que nasceram nos anos oitenta agora
insultam este período; esse propósito de desprestígio me enche de
perplexidade: é o melhor de todos os que tivemos. Nessa atitude há uma
espécie de pulsão autodestrutiva que se dá aqui e que espero que não se
consolide.
P. Poderia ser ufanismo da ignorância?
R. Sim. Ignora-se a história, falseia-se... Esqueci
de dizer: a Internet tem coisas maravilhosas, mas há algo que é
novidade: pela primeira vez a imbecilidade está organizada. Sempre houve
imbecilidade; imbecis iam ao bar, tornavam públicas as suas
imbecilidades, mas é agora que se organizam, com grande capacidade de
contágio. E há um problema agregado: as pessoas se intimidam diante de
internautas exaltados e se desculpam sem motivos. E as pessoas sofrem
represálias. É truculência. E não há melhor forma de a truculência
triunfar do que se intimidando e se amedrontando. A Espanha é um país
particularmente adepto da truculência.
P. Você diz que estamos em perigo de regressão.
R. Sempre. Há agora sintomas de que isso pode dar
errado. O dano é uma constante da vida espanhola: há uma espécie de
pulsão autodestrutiva que agora dá as caras outra vez. Tomara que eu
esteja errado, mas, sim, vejo perigo.
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Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/24/cultura/1443105759_175114.html
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