Frei Bento Domingues O.P.
O Papa Francisco encarna, no mundo de hoje, o humanismo libertador de Jesus
Cristo.
1. Julia Kristeva, de pais cristãos,
nasceu na Bulgária, em 1941, onde frequentou a escola dominicana francesa.
Depois de uma pós-graduação na Universidade de Sofia, aos 24 anos, foi para
Paris.
Uma carreira brilhante fez dela uma
professora de várias universidades e uma figura cultural multifacetada:
filósofa, semióloga, psicanalista, romancista. Doutora honoris causa de
Harvard e prémio internacional Holberg, equivalente ao Nobel para as ciências humanas
apaixonou-se por uma espanhola do século XVI, Santa Teresa de Avila.
Que poderiam ter a dizer-se uma
psicanalista e uma santa católica? A resposta surgiu num romance de 750 páginas
[1]. Mais
ainda do que um romance, dizem os críticos, é “um tratado de vulcanologia sobre a
alma de fogo da santa espanhola”.
Casada há 48 anos com Philippe
Sollers, nesta época de mexericos sobre divórcios, ousou escrever uma narrativa
autobiográfica: Do
casamento como uma das belas-artes [2].
Para esta militante feminista,
existe um humanismo cristão intenso, incompreendido e que a cultura europeia
deve reinterpretar continuamente, se quiser sobreviver ao pensamento-cálculo.
Pertence ao génio do cristianismo – quando é fiel à sua vocação - a capacidade
de acolher e a arte de reciclar os contributos das culturas mais diversas.
Em vários cenários de diálogo entre
crentes e não crentes, esta grande intelectual, sente a urgência de despertar
os participantes para um novo humanismo, o humanismo do século XXI. Para
Kristeva, a chamada era da suspeita já não é suficiente para enfrentar os
desafios civilizacionais que estão a bater às portas da nossa época. Dispomos
de todos os recursos para ver e prevenir o desastre, mas, ao faltar um
humanismo inclusivo, não sabemos para que servem tantos meios. O chamado
desenvolvimento sustentável, sem a paixão por uma humanidade solidária que
cuida da renovação da natureza como casa de todos, sucumbe perante a teia das
máfias da ganância.
2. Nas
Jornadas de Assis (2011) J. Kristeva atreveu-se a formular dez princípios
– não são dez mandamentos – para pensar as pontes que importa reconhecer e
construir com todos os universos culturais do passado e da actualidade [3].
Na introdução à sua notável proposta, evocou
a figura incontornável de S. Francisco, lembrando que ele não buscava
tanto ser compreendido como compreender, nem ser amado como amar:
despertou a espiritualidade das mulheres com a obra de Santa Clara, colocou a
criança no coração da cultura europeia, ao recriar a festa de Natal. Antes de
morrer, como verdadeiro humanista, ante litteram, enviou uma carta a todos os
habitantes do mundo.
Na Divina Comédia, Dante Alighieri
continuou a unir, em Cristo, o divino com o humano, desenhando, numa língua
nova, o humanismo cristão. O divino e humano verdadeiros não são rivais. São
aliados eternos.
Filho da cultura europeia, o
humanismo é o encontro de diferenças culturais servido pela globalização e pela
informação. O novo humanismo deve respeitar, traduzir e reavaliar as muitas
variantes das necessidades
de crer e dos desejos de saber, bebendo no património universal de
todas as civilizações.
A história não pertence ao passado:
a Bíblia, os Evangelhos, o Alcorão, o Rigveda, o Tao habitam o nosso presente.
É utópico criar novos mitos colectivos, mas também não é suficiente
reinterpretar os antigos. Cabe-nos reescrevê-los, repensá-los, revivê-los,
dentro das linguagens da modernidade.
3. É
preciso desfazer os equívocos gerados em torno das palavras, humanismo e
cristianismo, para compreender e participar no projecto admirável de Kristeva.
Os fundamentalismos da crença religiosa e da crença ateia têm impedido
religiosos e ateus de escutar as vozes da complexidade material e espiritual do
mundo.
Para evitar as confusões, P. Ricoeur
recusava a designação de filósofo cristão, para evitar qualquer suspeita acerca
da autenticidade do seu método filosófico. Dizia-se um filósofo de expressão
cristã, assim como existem cristãos de expressão pictória, como Rembrandt ou de
expressão musical como Bach. Irritava-se quando lhe diziam: se você fosse
chinês haveria poucas possibilidades de ser cristão. “Não estão a falar de mim,
mas de um outro. Não posso escolher nem os meus antepassados nem os meus
contemporâneos. Nasci e cresci na fé cristã de tradição reformada. Mantenho-me
nessa tradição, confrontada indefinidamente, no plano de estudo, com
todas as tradições, adversas ou compatíveis, através de uma escolha contínua”.
Recusou a cristologia sacrificial que faz de Deus um monstro e do ser humano um
escravo. Não pode fazer parte de nenhum humanismo. Compreendo todos esses
cuidados.
O Papa Francisco encarna, no mundo
de hoje, o humanismo libertador de Jesus Cristo. Não só denuncia o que na
religião, na finança, ou na política mata a vida dos pobres e destrói a
natureza, como se manifesta tão humano que o divino respira em todos os seus
gestos.
[1] Thérèse mon amour, Fayard, 2008
[2] Du mariage considéré comme un des beaux-arts, avec Philippe
Sollers, Fayard, 2015
Fonte:
imagem da interneet
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