segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Papa Francisco, encarnação do novo humanismo

Frei Bento Domingues O.P. 
 

O Papa Francisco encarna, no mundo de hoje, o humanismo libertador de Jesus Cristo.

1. Julia Kristeva, de pais cristãos, nasceu na Bulgária, em 1941, onde frequentou a escola dominicana francesa. Depois de uma pós-graduação na Universidade de Sofia, aos 24 anos, foi para Paris.

Uma carreira brilhante fez dela uma professora de várias universidades e uma figura cultural multifacetada: filósofa, semióloga, psicanalista, romancista. Doutora honoris causa de Harvard e prémio internacional Holberg, equivalente ao Nobel para as ciências humanas apaixonou-se por uma espanhola do século XVI, Santa Teresa de Avila.

Que poderiam ter a dizer-se uma psicanalista e uma santa católica? A resposta surgiu num romance de 750 páginas [1]. Mais ainda do que um romance, dizem os críticos, é um tratado de vulcanologia sobre a alma de fogo da santa espanhola”.

Casada há 48 anos com Philippe Sollers, nesta época de mexericos sobre divórcios, ousou escrever uma narrativa autobiográfica: Do casamento como uma das belas-artes [2].

Para esta militante feminista, existe um humanismo cristão intenso, incompreendido e que a cultura europeia deve reinterpretar continuamente, se quiser sobreviver ao pensamento-cálculo. Pertence ao génio do cristianismo – quando é fiel à sua vocação - a capacidade de acolher e a arte de reciclar os contributos das culturas mais diversas.

Em vários cenários de diálogo entre crentes e não crentes, esta grande intelectual, sente a urgência de despertar os participantes para um novo humanismo, o humanismo do século XXI. Para Kristeva, a chamada era da suspeita já não é suficiente para enfrentar os desafios civilizacionais que estão a bater às portas da nossa época. Dispomos de todos os recursos para ver e prevenir o desastre, mas, ao faltar um humanismo inclusivo, não sabemos para que servem tantos meios. O chamado desenvolvimento sustentável, sem a paixão por uma humanidade solidária que cuida da renovação da natureza como casa de todos, sucumbe perante a teia das máfias da ganância.

2. Nas Jornadas de Assis (2011) J. Kristeva atreveu-se a formular dez princípios – não são dez mandamentos – para pensar as pontes que importa reconhecer e construir com todos os universos culturais do passado e da actualidade [3].

Na introdução à sua notável proposta, evocou a figura incontornável de S. Francisco, lembrando que ele não buscava tanto ser compreendido como compreender, nem ser amado como amar: despertou a espiritualidade das mulheres com a obra de Santa Clara, colocou a criança no coração da cultura europeia, ao recriar a festa de Natal. Antes de morrer, como verdadeiro humanista, ante litteram, enviou uma carta a todos os habitantes do mundo.

Na Divina Comédia, Dante Alighieri continuou a unir, em Cristo, o divino com o humano, desenhando, numa língua nova, o humanismo cristão. O divino e humano verdadeiros não são rivais. São aliados eternos.

Filho da cultura europeia, o humanismo é o encontro de diferenças culturais servido pela globalização e pela informação. O novo humanismo deve respeitar, traduzir e reavaliar as muitas variantes das necessidades de crer e dos desejos de saber, bebendo no património universal de todas as civilizações.

A história não pertence ao passado: a Bíblia, os Evangelhos, o Alcorão, o Rigveda, o Tao habitam o nosso presente. É utópico criar novos mitos colectivos, mas também não é suficiente reinterpretar os antigos. Cabe-nos reescrevê-los, repensá-los, revivê-los, dentro das linguagens da modernidade.
3. É preciso desfazer os equívocos gerados em torno das palavras, humanismo e cristianismo, para compreender e participar no projecto admirável de Kristeva. Os fundamentalismos da crença religiosa e da crença ateia têm impedido religiosos e ateus de escutar as vozes da complexidade material e espiritual do mundo.

Para evitar as confusões, P. Ricoeur recusava a designação de filósofo cristão, para evitar qualquer suspeita acerca da autenticidade do seu método filosófico. Dizia-se um filósofo de expressão cristã, assim como existem cristãos de expressão pictória, como Rembrandt ou de expressão musical como Bach. Irritava-se quando lhe diziam: se você fosse chinês haveria poucas possibilidades de ser cristão. “Não estão a falar de mim, mas de um outro. Não posso escolher nem os meus antepassados nem os meus contemporâneos. Nasci e cresci na fé cristã de tradição reformada. Mantenho-me nessa tradição, confrontada indefinidamente, no plano de estudo, com todas as tradições, adversas ou compatíveis, através de uma escolha contínua”. Recusou a cristologia sacrificial que faz de Deus um monstro e do ser humano um escravo. Não pode fazer parte de nenhum humanismo. Compreendo todos esses cuidados.

O Papa Francisco encarna, no mundo de hoje, o humanismo libertador de Jesus Cristo. Não só denuncia o que na religião, na finança, ou na política mata a vida dos pobres e destrói a natureza, como se manifesta tão humano que o divino respira em todos os seus gestos.

[1] Thérèse mon amour, Fayard, 2008
[2] Du mariage considéré comme un des beaux-arts, avec Philippe Sollers, Fayard, 2015
Fonte:
imagem da interneet

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