José Castello*
Releio,
aos saltos e mais uma vez, a inesgotável correspondência de Gustave
Flaubert. Esbarro, então, em uma carta, datada do ano de 1853, que me
paralisa. “O artista deve elevar tudo”, diz Flaubert. “Ele é como uma
bomba, há nele um grande tubo que desce até as entranhas das coisas, em
suas camadas profundas. Ele aspira e faz jorrar ao sol em feixes
gigantes o que era comum sob a terra e que não se via”. Na era dos
artistas habilidosos, dos Best Sellers impecáveis e dos efeitos de cena,
é muito inspirador refletir sobre suas palavras. Nos tempos do culto à
superfície, pensar em “elevação” se torna quase obsceno. Nos tempos de
terrorismos odiosos, usar a metáfora da bomba pode parecer um crime.
E,
no entanto, não dá mais para aceitar a imagem contemporânea do criador
como um ser correto e adaptado. Ela extrapolou todos os limites. Ela
ameaça não só a arte, mas o próprio homem. Agarro-me, ainda com mais
força, a Flaubert. Em outra carta, escrevendo no século 19 como se
vivesse no 21, ele admite: “A civilização não desbastou em mim a bossa
do selvagem, e apesar do sangue de meus ancestrais, eu creio que existe
em mim o Tártaro, o Cita, o Beduíno, o Pele Vermelha”. A imagem do
artista civilizado — que freqüenta as altas rodas, faz performances
charmosas e magnetiza as platéias _ não combina, em nada, com a que o
autor de Madame Bovary, romance de 1857, descreve a respeito de
si mesmo. Não é fácil reconhecer que, apesar do design estiloso do
contemporâneo, carregamos um selvagem no peito. Mais difícil ainda: em
vez de permitir que esse homem bruto nos domine, tirar partido de sua
força e de sua potência.
Vivemos
a era da técnica — vivemos o tempo da perícia, da habilidade e da
atuação. O tempo do desempenho e da competência. Flaubert, porém,
desprezava enfaticamente os engenhosos. Defendia a força, e não a
engenhosidade. No lugar da destreza, preferia a potência. Entendia que a
maior característica do artista era justamente ser forte, e não ser
hábil. “Logo, o que eu mais detesto nas artes, o que me crispa, é o
engenhoso”. Não se trata de fazer bem feito. Tampouco de ostentar
autoridade, ou competência. Trata-se de outra coisa bem mais difícil: da
doação. Ou o escritor se entrega a sua escrita, ou ele a faz com sangue
e com febre, ou nada o salvará. Nem a elegância, nem a correção, nem a
habilidade. Nada. Por isso o escritor não deve ser visto como um técnico
que desempenha adequadamente seu papel, mas como um homem que, entregue
a seus impulsos e à sua desordem interior, simplesmente se deixa fazer.
Faz até o que desconhece. Faz até o que não sabe que faz.
É
por isso que as palavras deformam e aniquilam aqueles que escrevem.
“Estou arrasado de fadigas e de fadiga e de tédio”, diz Flaubert no ano
de 1853. No período em que se dedica a escrever sua Bovary, ele
desabafa: “Esse livro me mata; nunca mais farei nada semelhante”. Não é
fácil lidar com sentimentos e impulsos extremos. Não é nada fácil
encarnar o outro. Exausto, retido sob o peso da própria escrita,
Flaubert reconhece, porém, que não lhe resta outro caminho. Que escrever
é isso: entregar-se, deixar-se aniquilar, submergir. Nada daquela
escrita asséptica e “bem editada” que tanto fascina os escritores _ e os
editores _ de hoje. Escrever é meter as mãos da imundície. É sujar-se
daquilo que se desconhece, ou nada que preste se fará.
Mas
não é isso o que diz o senso comum contemporâneo. Ele busca escritores
que sejam bons produtores _ ou, numa imagem que evoca os campos, bons
reprodutores de texto. O mercado literário persegue não apenas vendas,
mas a produção em série de imagens reconhecíveis. Não suporta o
desconhecido. O escritor deve atuar como um astro pop: dele se sabe
sempre o que esperar. A escrita? Ela é só um instrumento para a fama,
hoje se pensa. Talvez você pudesse ter se tornado um grande artilheiro,
ou um performer consagrado. Talvez fosse melhor assim _ se chega a
considerar. “Produtor de texto”, o escritor é reduzido à posição de
simples intermediário entre a palavra e o leitor. Não passa de um
atravessador _ como no mercado negro dos produtos proibidos.
Volto
a Flaubert, que não acreditava em nada disso. Sabia ele que a língua
não se deixa controlar. Chega a dizer, sem pudor: “Eu poderia ter sido
um grande poeta se a língua não se mostrasse indomável”. Pensava que o
verdadeiro poeta _ o verdadeiro escritor _ deve viver só e queimar todo
um lado do coração. Deve imolar-se, abdicando do transitório e do fácil.
Dizia sem nenhum receio de espantar os iniciantes: “Escrever é carregar
mármore”. Numa madrugada de 1853, descreve seu estado deplorável: “Eu
estou arrasado, o cérebro se põe a dançar no crânio. É embrutecedor”.
Vergado sob o peso das palavras, o escritor não tem tempo para as
formalidades e para as satisfações ligeiras. Deve suportar a si mesmo,
como um pedaço de mármore que carregasse sob as costas. Deve
resignar-se a lutar contra um objeto _ a palavra perfeita _ que jamais
alcançará. O escritor está sempre a errar, e é do erro que ele arranca
suas palavras. Algo muito diferente da palavra fácil e dócil dos
competentes.
Por
isso mesmo Flaubert se levanta contra os engenhosos, aqueles que buscam
apenas uma literatura “de resultados”. Não querem sujar suas roupas
elegantes. Não ousam chamuscar a própria imagem. Não se arriscam a
sofrer e a encarar o próprio fracasso. É verdade: os escritores que
escrevem com sangue não têm uma vida fácil. Escreve Flaubert: “A pérola é
uma doença da ostra e o estilo, talvez, a manifestação de uma dor mais
profunda”. Ainda assim, é preciso prosseguir. O sucesso não passa de
uma ilusão perigosa. Diz, em outra carta: “Se você quiser, ao mesmo
tempo, procurar a Felicidade e o Belo, você não atingirá nem um, nem
outro, pois só se chega ao segundo pelo sacrifício. A Arte, como o Deus
dos judeus, se nutre de holocaustos”. Os engenhosos que fiquem com suas
fórmulas e com seus malabarismos. A literatura está em outro lugar.
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* Jornalista. Escritor.
Fonte: http://www.suplementopernambuco.com.br/edicao-impressa/71-ensaio/1486-contra-os-engenhosos.html
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