[Fotografia do artista plástico Elyeser Szturm feita especialmente para esta coluna de Ricardo Musse]
Por Ricardo Musse.
Max
Weber, com certa frequência, alerta para um possível descompasso entre
as intenções dos agentes sociais e o sentido histórico de suas ações;
defasagem que os marxistas atribuem a uma “cegueira ideológica”,
inerente ao particularismo do complexo de interesses de um determinado
grupo ou classe social.
Um
exemplo palmar desse efeito inesperado foi o recente envio, pelo
governo ao Congresso, de um orçamento deficitário para o próximo ano. A
intenção de chamar a atenção da sociedade para a gravidade da situação
das contas públicas e de destacar a irresponsabilidade dos deputados,
patente na criação reiterada de novas despesas, obteve um resultado
imprevisto (embora facilmente previsível): o rebaixamento da posição do
país por uma das agências norte-americanas de classificação de risco.
Numa
autêntica “escolha de Sofia”, a opção do governo privilegiou a dimensão
política em detrimento da lógica estritamente econômica que recomendava
uma ação contrária. Assim procedendo, deixou claro que, no momento,
considerava a crise política como uma influência decisiva sobre o
andamento, ou melhor, o não-andamento da economia. Mas
também explicitou sua dificuldade em intervir simultaneamente nas duas
esferas, bloqueando o circuito no qual a crise em um desses âmbitos
alimenta o desarranjo no outro e vice-versa.
Inesperada,
essa atitude promoveu uma inversão no direcionamento das ações
executadas ao longo dos dois mandatos da presidenta. Eleita, em grande
medida, graças ao sucesso econômico e social do governo Lula, Dilma
concentrou seus esforços na gestão da economia, seguindo o mantra
cunhado pelo publicitário responsável pela campanha eleitoral de Bill
Clinton: “é a economia, estúpido”.
Esse
senso comum da hegemonia neoliberal foi fortalecido pelas convicções da
presidenta e pelo pragmatismo que domina os movimentos de curto e longo
prazo do Partido dos Trabalhadores. Formada na cartilha de um marxismo
economicista (que atribui ao desenvolvimento das forças produtivas o
condão mágico de remodelar as relações de produção em favor dos
trabalhadores) e no desenvolvimentismo cepalino (apesar dos alertas de
Celso Furtado sobre as diferenças entre crescimento econômico e
desenvolvimento social), Dilma praticamente ignorou as injunções
internas da esfera política, no pressuposto de que o êxito econômico
gera e consolida automaticamente a supremacia política.
Fiel
a essa hierarquia de prioridades, o governo Dilma mostrou-se
despreocupado quando, no início do segundo mandato, a eleição para a
presidência da Câmara dos Deputados aferiu que dispunha ali do apoio de
menos de um terço dos parlamentares. Manteve-se alheio a essa situação e
só pareceu incomodado nas votações de medidas fiscais, surpreendido com
dificuldades que julgara inexistentes devido ao figurino do ajuste,
moldado seguindo os clamores da oposição, da mídia e do bloco
conservador.
A
nomeação de ministros, os movimentos da articulação política, a
distribuição de emendas, cargos e benesses – inerentes a esse monstrengo
político conhecido pelo eufemismo de “presidencialismo de coalizão” –
logo se revelaram inoperantes, possibilitando ao presidente da Câmara de
Deputados a aglutinação de um bloco conservador e um inaudito
protagonismo. Dilma só procurou alterar sua equipe e seu modo de agir na
terceira (e última) das badaladas, aviso público acerca do iminente
início da encenação da ópera-bufa “O golpe paraguaio II” (que a imprensa
teima em chamar de impeachment).
Tamanha
desatenção às peculiaridades da vida política – associada à expectativa
de que setores da sociedade civil comandam bancadas na Câmara e que,
portanto, bastaria trazer, para o ministério, líderes do agronegócio, da
indústria, dos evangélicos etc. –, prende-se a uma compreensão
equivocada acerca da constituição e do modus operandi da elite política brasileira.
O
governo (e o próprio PT) compartilha com os liberais a tese de que os
parlamentares seriam representantes de grupos com maior poder de
intervenção na vida econômica e social. Ignora-se, assim, o fato de que
os políticos agem, pelo menos em situações extremas, não apenas em
função de interesses pessoais (afinal, no mínimo, visam sua
sobrevivência eleitoral!), mas sobretudo em defesa do modelo que lhes
permite, enquanto grupo, manter seus privilégios estamentais.
Lendo
os reiterados avisos da oposição e do Congresso como mera birra de
perdedores ou como desejo inconsequente de um terceiro turno, o governo
demorou a perceber que os políticos estão cientes de que vivenciam uma
“situação extrema”.
O
cenário atual – que coloca sob ameaça tanto sua sobrevivência
individual, como estamental – resultou, ironicamente, de intenções e
ações perpetradas pelos próprios políticos (sobretudo pela oposição),
visando enfraquecer o governo e o predomínio do PT em eleições
majoritárias nacionais.
Estigmatizada
pela gestão marcadamente neoliberal de FH Cardoso e por um programa
econômico e social antipopular, a oposição orientou seus esforços
propagandísticos para o tema da corrupção. Buscava assim redirecionar o
ressentimento mobilizado pelo PT em sua retórica contra as “elites”. Uma
vez assumida, consensualmente, como única tática viável para
interromper a sequência de derrotas nas eleições presidenciais, a
implementação dessa estratégia seguiu uma dinâmica quase inexorável.
Esgotada
a eficácia de denúncias genéricas ou pontuais, muitas delas não
comprovadas; aguilhoada pela ameaça de completar duas décadas sem o
mando presidencial; e para surpresa do PT, a oposição aproveitou os
desdobramentos da Operação Lava Jato para estender suas denúncias à
caixa-preta do sistema político: à simbiose, lícita ou ilícita, entre as
empresas encarregadas de serviços e obras públicas e o financiamento
eleitoral das campanhas. A oposição amplificou a divulgação de
escândalos – assunto preponderante em seu discurso oposicionista e na
pauta da grande mídia –, materializando, com minúcias, a suspeição
acerca das premissas, nada igualitárias e pouco democráticas, da seleção
da representação política, até então visível apenas em amostras
esporádicas.
O
novo arcabouço jurídico que legitima o rigor e a intransigência do juiz
Sérgio Fernando Moro e, em especial, a corroboração de suas decisões
pelas instâncias superiores do Judiciário foram integralmente aprovado
pelo Congresso. Por meio de uma convergência entre setores do PT, que
lutavam por maior transparência e republicanismo, e as bancadas da
oposição, que pretendiam mostrar na prática seu empenho contra a
corrupção, aprovou-se, em curto espaço de tempo, a emenda constitucional
que concedeu ao Ministério Público o comando sobre as investigações
policiais, a lei que pune os corruptores, a institucionalização da
“delação premiada” e a extinção da prisão especial para portadores de
diplomas de curso superior.
Por
conta de sua afinidade social, política e até mesmo programática com
setores da Polícia Federal, do Ministério Público, do Judiciário e da
grande mídia, a oposição obteve êxito em sua estratégia de “sangrar” o
governo, encurralar o PT e manter-se incólume. O caráter “seletivo” das
investigações, prisões provisórias, delações, vazamentos, condenações e,
sobretudo, a ênfase na divulgação possibilitou-lhe, ao mesmo tempo,
promover uma ofensiva atordoante e amortecer as poucas tentativas de
contragolpe.
No
entanto, é possível observar aqui também uma contradição entre o
propósito almejado e o resultado alcançado. No afã de enfraquecer o
governo e o PT, criando condições para uma vitória no embate eleitoral, a
oposição contribuiu para o desnudamento em detalhes do funcionamento do
mecanismo eleitoral, numa revelação que coloca sob igual suspeição
todos os partidos possuidores de um número representativo de deputados. A
explicitação desse modus operandi e sua condenação pela quase
totalidade do eleitorado engrossaram o caldo de cultura necessário para
que o STF, julgando uma ação impetrada pela OAB, declarasse
inconstitucional as doações eleitorais de pessoas jurídicas.
Imprevisto,
esse resultado indesejado (como se pode ver pelas reações da oposição)
explode a lógica do sistema e ameaça os fundamentos do estamento
político. O caráter endógeno típico dessa camada, sua renovação
geracional com membros da mesma linhagem familiar ou por meio de
apadrinhados, assenta-se na consolidação de privilégios, numa
disparidade insuperável de acesso aos meios de campanha eleitoral que
favorece unicamente os que cultivam relações e gozam da confiança dos
detentores do capital.
No
fundo, o brado de “independência” e “autonomia”, que repercutiu
sobretudo entre os deputados, não passa de uma busca desesperada de
preservar as regras que possibilitam a reprodução e a primazia do
estamento político. Não por acaso os dois principais porta-vozes e
atores desse processo, Aécio Neves e Eduardo Cunha (o public relations
e o operador), situam-se entre os representantes mais destacados dessa
camada, um como herdeiro de uma valorizada tradição familiar, o outro
por sua capacidade de aglutinar tendências dispersivas do meio político.
Comandada
por Cunha e Aécio, e conduzida com o apoio da maioria dos deputados,
utilizando um arsenal de guerra que se estende da “pauta-bomba” às
tentativas de impeachment, a estratégia encetada contra o poder
executivo foi, portanto, incrementada pela conjugação de dois objetivos
distintos. A oposição vislumbra nesse caminho a possibilidade de
retornar ao governo sem os riscos e as dificuldades que certamente terá
de enfrentar no pleito de 2018. Posto em “situação extrema”, o estamento
político, por sua vez, antevê no controle sobre a presidência e, em
especial, sobre o Ministério da Justiça, o modo mais eficaz de manter
sua sobrevivência tanto no âmbito individual – já que quase uma centena
de parlamentares é alvo de processos criminais (fator que fortalece
ainda mais a liderança de Eduardo Cunha) –, como na esfera coletiva –
com a modificação pelo STF das normas acerca do financiamento de
campanha (cujo resultado estava consolidado antes mesmo do ministro
Gilmar Mendes pedir vistas do processo).
O
paradoxo no qual a oposição encontra-se enredada torna-se cada dia mais
flagrante. Não dispondo de capacidade decisória, nem de votos
suficientes para sustentar um pedido de impeachment, o bloco
formado por PSDB, DEM, PPS e SD alinhou-se a Eduardo Cunha, referendando
integralmente sua estratégia. Embora apresente e justifique suas
iniciativas como ações orientadas pelo combate à corrupção e em defesa
da moralidade pública, a oposição mostra-se despreocupada com a
possibilidade de colocar no poder um grupo que assume explicitamente o
propósito de deter o avanço das investigações e restaurar o
financiamento privado das campanhas eleitorais. Cegueira ideológica ou
simplesmente má-fé?
***
Elyeser Szturm é
artista plástico. Professor da UnB e doutor em artes visuais pela
Université de Paris VIII. Ganhou o Prêmio de viagem ao exterior do XVI
Salão Nacional da Funarte e o VII Salão da Bahia. Participou da Bienal
50 Anos, da 25a. Bienal de São Paulo, das mostras Território Expandido 3
e Faxinal das Artes, entre outras. A partir de hoje, passa a ilustrar a
coluna mensal de Ricardo Musse, no Blog da Boitempo.
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Ricardo Musse
é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor
em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório
de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.
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Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2015/10/16/uma-breve-analise-da-conjuntura/
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