quarta-feira, 28 de outubro de 2015

“O peronismo acabou; hoje é uma marca decadente”


Dirigente e militante peronista argentino

Entrevista com Julio Bárbaro
Dirigente peronista

Rodrigo Cavalheiro

O movimento de Perón foi um esforço de integração dos excluídos e
uma barreira contra o marxismo, 
diz ideólogo Julio Bárbaro



O peronismo acabou, garante o dirigente peronista Julio Bárbaro, de 73 anos. Decano da corrente política que governou a Argentina por 25 dos últimos 32 anos de democracia, a experiência não o fez se aproximar dos grupos guerrilheiros ligados à esquerda do movimento. "Que a ditadura seja genocida não significa que a guerrilha seja lúcida", escreveu num artigo, elogiado em uma carta de seu amigo Jorge Bergoglio, que o recebeu no Vaticano no ano passado já como [papa] Francisco. Sempre pertenceu à ala católica do movimento.

Proibido pelos médicos de dar entrevista para TVs e rádios após a colocação de um stent, ele recebeu o jornal O Estado de S. Paulo na semana passada no apartamento que aluga na Recoleta. "Sou dos poucos que não ficaram ricos e foram morar em Puerto Madero", afirma orgulhoso. Considera os Kirchners "o triunfo da esperteza e da falta de conteúdo". A essência do peronismo, que para ele nunca foi um partido, mas uma ideia de inclusão social acima das ideologias, deixou de existir. "O peronismo hoje é uma marca de hambúrguer. Posta numa almôndega, vende."

A seguir, a íntegra da entrevista.

Um decano do peronismo consegue explicar o que ele é?

Julio Bárbaro: O peronismo não foi um partido, foi a integração dos excluídos à sociedade. Perón usa essa ideia para promover a igualdade. Foi também uma barreira contra o marxismo, que fracassou em todos os lados. Fracassou na Rússia, na China, em Cuba. Esse marxismo hoje é usado pelo governo argentino para cobrir os negócios kirchneristas. O kirchnerismo, que é um capitalismo sem piedade e sem ideia de desenvolvimento, incorpora os marxistas para fazer sua defesa. Inclui o sectarismo deles, mas não a distribuição econômica. Hoje temos a decadência do peronismo.

Perón não imaginava um peronismo assim?

Bárbaro: Perón faz uma última tentativa de evitar a guerrilha. Ele diz à esquerda que a guerrilha nunca vai ganhar de um exército regular. Que a ditadura seja genocida não significa que a guerrilha seja lúcida. Recebi cartas de Jorge Bergoglio concordando comigo. A guerrilha foi um fracasso, um suicídio, mas os militares genocidas foram tão ruins que devolveram prestígio a alguém não merecia. Não temos um José Mujica, um guerreiro de verdade, que aparece e se apresenta como pacificador. Aqui somos todos falsos. O kirchnerismo e o menemismo herdam a memória, mas não as ideias. [1]

Pesquisas da própria campanha do candidato governista Daniel Scioli indicam que seu principal problema é não ser visto como um líder. Estão tentando mudar essa imagem para chegar aos 45% que lhe dariam a vitória no primeiro turno, colocando-o em encontros como estadista, ao lado de presidentes. Isso funciona?

Bárbaro: Se eu fico perto dos jovens, não perco idade. Ele tem de se apresentar como presidente, não como o comandado pela Cristina. Eu disse a ele que ninguém chega ao poder de joelhos. Se ela seguir com a humilhação a ele, não será nada. Ninguém vota em um humilhado. Isso não se resolve com uma foto com ninguém.

Em todos os discursos, ele menciona o papa Francisco. Para o papa ele é uma boa pessoa?

Bárbaro: Sim. Mas eu também, sou mais amigo que ele do papa. Que tem a ver? O papa serve na Argentina para algo mais importante. O papa é um argentino com um pensamento transcendente que a maioria dos argentinos não queria ver. Fui intermediário entre Bergoglio e Néstor Kirchner (em 2004, o presidente se ofendeu em uma missa em que o cardeal criticou a corrupção). Como era amigo dos dois, tentei reaproximá-los. Mas Néstor não queria ver ninguém que não pudesse dominar. Néstor não era um estadista, não fez nada importante. Era um esperto. Néstor é o triunfo da esperteza. É o pior que os argentinos têm como identidade. Temos um papa capaz de ir ao Muro das Lamentações com muçulmanos e judeus, mas ficamos com os vendedores de ódio.

O papa é peronista como dizem?

Bárbaro: Perón deu ideias importantes. Os fiéis de Bergoglio eram peronistas, ele não. Ele nunca apoiou a guerrilha. Fiz política toda a minha vida e nunca fui violento, sem deixar de estar no centro dos conflitos. O caminho para a justiça é a democracia, não a violência.
JUAN DOMINGO PERÓN (1895 - 1974):
Foi um militar e político.
Presidente da Argentina de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974.

É possível um governo não peronista na Argentina?

Bárbaro: Sim, o que não se pode é governar sem assumir a realidade. Peronismo foi um pedaço da realidade, mas já não existe como tal. Sumiu com Perón. Perón lia As Vidas Paralelas de Plutarco, Cristina e Néstor nunca leram nada. Estamos falando de advogados medíocres que fazem discursos mais medíocres. Perón era um estadista.

O sr. trabalhou quatro anos com Néstor e disse que era amigo dele. Quando houve a ruptura?

Bárbaro: Quando assumiu Cristina. A partir dali eu me retirei. Eles não são capazes de falar com ninguém que não os obedeça. Sempre fui muito amigo dele. Ele vivia a quatro quadras daqui, me ligava às 22 horas e me dizia "Cristina não vem, vamos jantar". Duas vezes por semana, durante anos. Sabia os vinhos, os lugares, tudo. Quando ele vai assumir, digo que não quero trabalhar com ele. Pergunta-me por que: Porque você é autoritário e não gosto que me humilhem. Não vamos durar muito. Quando assume, diz que somos muito amigos para que eu não aceite nenhum cargo.

O que ofereceu?

Bárbaro: Disse que me daria um cargo que não dependia dele. O problema do autoritarismo é que convoca gente sem lucidez. Não entra um Mangabeira Unger, um Marco Aurélio Garcia. Aqui, se não for tosco e obediente, não chega a ministro. São pessoas que ficam aí aplaudindo como idiotas. Nunca ser ministro, senador ou deputado esteve tão em baixa como agora.

A figura de Carlos Zannini (secretário técnico do governo e vice na chapa de Scioli) é perigosa como a oposição diz?

Bárbaro: Ele é um imbecil, não é que seja perigoso. Eu o desprezo. A política tem uma parte escura, a parte do negócio. Quando essa parte se transforma em pública, é que a degradação chegou ao máximo. Eu vi algumas vezes. Ele fala de negócios, eu de política. Não tem nenhum poder, mas dá vergonha que esteja aí. E dá vergonha que Scioli o aceite. Scioli é essa parte da Argentina que não quer se responsabilizar por nada. Tudo está bem, todos somos lindos, todos nos amamos, todos nos afundamos, mas eu não vejo, não noto, me distraio. Isso não é sabedoria. É ser irresponsável.
DANIEL SCIOLI
Governador da Província de Buenos Aires - candidato da situação, ou seja, apoiado
pela atual presidente Cristina Kirchner
Ficou em 1º lugar no primeiro turno das eleições presidenciais argentinas

Pesquisas indicam que ele [Scioli – candidato de Cristina Kirchner] não perdeu votos com as últimas inundações. Por quê?

Bárbaro: Bobagem. Pesquisas não são confiáveis. Eu estava com Néstor quando o Estado decidiu dar uma grande quantia de dinheiro para as consultorias de opinião. Nem deveria dizer, mas há grande quantidade de institutos que sobem três pontos diminuem quatro. É uma piada. Eu conheço, a mim não enganam. Por baixo, 80% dos institutos são subornados. Outro dia estávamos tomando vinho com um dos mais importantes que disse essa estupidez, de que Scioli não é atingido. Eu disse "minta para eles que te pagam, não para mim". É como o amor da prostituta, dura enquanto dura o cheque. Não me fale de pesquisas, eu mesmo fiz o pagamento algumas vezes. Basta.

Acredita que [Scioli] possa ganhar em primeiro turno?

Bárbaro: Não ganhará. Não há uma grande oposição, mas estou convencido de que se houver segundo turno esse governo cai.

Essas denúncias de fraude em eleições regionais o atingem?

Bárbaro: Sim. Não se pode dizer que mais ou menos que algo. Se buscamos um fator, ficamos como a presidente, que quis explicar o nazismo pelo Tratado de Versalhes. Macri vem do empresariado. Me consulta... quer dizer, me escuta. Assim como Scioli e Massa. Mas não têm a formação de um político de raça. São pessoas que entraram na política tarde. Um era esportista, outro era empresário. Os políticos tiveram o confronto dos [anos] 70 e a corrupção dos [anos] 90. Sou dos poucos que não enriqueceram, que não vivem em Puerto Madero, alugo este apartamento. Mas não pela virtude da honestidade. Nunca me interessou o dinheiro. Esse é um problema dos argentinos, a admiração pelo rico. Isso é a decadência. É um cara que fez do egoísmo e da ambição o motivo da sua vida. O que ocorre é que esse rico não pode conduzir a sociedade. Há países onde o poder político está acima da riqueza. Mas aqui os ricos são tão grosseiros que acham que podem conduzir o país.

O próximo presidente argentino, Scioli ou Macri, será rico. É um problema?

Bárbaro: Eu falo de obcecados. Néstor [Kirchner] era um que achava que o poder... O poder que para Alfonsín estava dentro da urna, para Néstor estava na caixa-forte. A quantidade de dinheiro era poder para Néstor.

Achou estranho que Cristina não se candidatou a nada para proteger-se judicialmente, uma tese da oposição?

Bárbaro: Cristina tem tanta arrogância, que não pode estar num lugar sem mandar em alguém. Se na vida alguém não tem coerência, não é o dinheiro que a dará.
MAURICIO MACRI
Atual prefeito de Buenos Aires - candidato de oposição ao governo Cristina Kirchner
Ficou em 2º lugar no primeiro turno das eleições presidenciais argentinas

É verdade que Macri o convidou para entrar no partido dele?

Bárbaro: Porque eu sou peronista. Eu respeito Macri. Hoje parece o mais democrático deles. O mais conservador? Sim. Mas o autoritarismo está à direita do conservadorismo econômico. Macri está à esquerda de Cristina, sem dúvida.

O senhor votaria hoje em Macri?

Bárbaro: Sim, claro.

Sendo peronista?

Bárbaro: Sim, claro.

A fidelidade não é parte indissociável do peronismo?

Bárbaro: Eu tenho fidelidade às ideias, não aos homens. Fieis aos homens são os cachorros. Não sou um cachorro. O que me dói é que degradem o peronismo e convertam o peronismo nessa imundície. Era minha causa nobre e a usaram para lucrar. Meus principais inimigos são os que destroem o peronismo. Os que não são peronistas não me atingem. Hoje o peronismo é uma marca de hambúrguer. Se colocada numa almôndega, vende. Usam a memória porque não são capazes de ser eles mesmos.

Peronistas mais velhos costumam dizer que votarão em Scioli porque é o candidato peronista, não importa o que diga?

Bárbaro: Isso é um traço imbecil de quem pensa que política e futebol são o mesmo. É uma desvalorização, é perda de liberdade, não se pode tomar com seriedade. Eu voto com o que penso. Minha lealdade é a ideia. O resto é futebol. É o jogador que era do rival, é comprado pelo meu clube e hoje é meu amigo. Isso é decadência. Não há gente com vontade de transcender. A política é a construção daqueles dispostos a superar seu egoísmo por algo melhor. Não há. 
CRISTINA KIRCHNER
Julio Bárbaro diz sobre ela:
"Ela não tem nada o que dizer. O vazio dura pouco... Cristina sem o cargo não é ninguém."

Que imagem Cristina deixará?

Bárbaro: A pesquisas são pagas. Passará a história sem pena nem glória. Menem saiu por cima e depois se diluiu. Ela não tem nada o que dizer. O vazio dura pouco.

Ela poderia voltar em 2019, como se fala?

Bárbaro: Por favor... Só dizer isso é não entender nada da vida, não só da política.

Se Scioli ganha, não o permitiria?

Bárbaro: Há dois tipos de poder. O do cargo e o da consciência. Mujica sai e todos vamos entrevistá-lo, pois há um poder da consciência. Sanguinetti também. São homens que têm conteúdo. Cristina, sem o cargo, não é ninguém.

Néstor também não?

Bárbaro: Também não.

A "década ganha" então não é nada?

Bárbaro: Houve um crescimento da economia mundial. Não foram eles. O que sobrou de Menem? Eu lembro que ia à televisão representando Néstor. Se falava com carinho do menemismo, as pessoas se despedem com ternura, mas para que saiam logo. Cristina, em dois anos, não saberemos quem será. É gente que não pode viver na solidão, adoece. São a mera expressão da ambição. Muita gente é estúpida. Em todo o mundo, o que vamos fazer. A estupidez é parte da vida. Tenho um amigo que diz "Deus deve gostar muito dos imbecis, pois os reproduz em grande quantidade". O que tem a ver 2001...

Muitos dizem que passaram fome, que o país implodiu.

Bárbaro: Disso nos tiraram Duhalde e Lavagna, não Néstor. Duhalde e Néstor estiveram nessa mesa juntos. Quando chegou estava tudo consertado.

Os meios críticos ao kirchnerismo pressionam por uma aproximação entre Massa e Macri. Não é medo de que Scioli ganhe em primeiro turno?

Bárbaro: Hoje, 60% da sociedade odeia tanto o governo que para ela daria na mesma se ganhasse Macri ou Massa. A diferença entre eles é pouca, ambos são democráticos. Scioli chega perto de ser democrático, mas precisaria dizer quem é. Cristina, quando fala, me dá vergonha, ponto.

N O T A

[ 1 ] – Menemismo, kirchnerismo e peronismo:o peronismo, movimento de traços populistas, tem servido de guarda-chuva para correntes lideradas por políticos carismáticos que dominam a política argentina nas últimas décadas, no caso, Carlos Menem e Néstor Kirchner. Para saber mais sobre o kirchnerismo e a situação atual da Argentina, clique aqui.

Fonte: ESTADÃO.COM.BR – Internacional– 25 de outubro de 2015 – 03h00 – Internet: clique aqui.

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