André Singer, em sua sala na Universidade de São Paulo (USP). / Fernando Cavalcanti
Ex-porta voz de Lula diz que desfecho da crise definirá destino do país por muito tempo
As crises política e econômica vividas por Dilma Rousseff poderiam ser explicadas por um ditado: a presidenta cutucou onças com vara curta. A análise é feita pelo professor de ciência política da USP, André Singer, em seu novo artigo, publicado na revista Novos Estudos, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
No trabalho, ao qual o ex-porta-voz do Governo Lula se dedicou por um ano e meio, ele diz que com a intenção de acelerar o lulismo
(que ele define como a política implementada pelo ex-presidente que
atraiu o apoio dos mais pobres ao PT sem entrar em atrito com os mais
ricos) por meio do “ativismo estatal” Rousseff trouxe para si muitos
inimigos. Enquanto a própria presidenta faz mea culpa sobre sua
política econômica do primeiro mandato e corre para tentar equilibrar
as contas públicas, Singer a defende. Diz que a presidenta foi ousada ao
abrir confronto aberto com os bancos e ao insistir para manter os juros
baixos e a política de pleno emprego. Para ele, o problema é que essas
medidas não foram apoiadas por uma mobilização dos trabalhadores que as
sustentasse. É a conjunção desses fatores que ajudam, segundo o
professor, a explicar a situação atual. Para reconquistar o apoio do
mercado, a presidenta acabou adotando uma política de ajuste fiscal que, para Singer, foi um erro.
Expoente da esquerda do PT e alinhado às críticas do partido ao
ministro da Fazenda, Joaquim Levy, ele faz um apelo: defende um acordo
mínimo entre PT, PMDB e PSDB para evitar que a crise política ponha em
risco "30 anos de construção democrática e social". Do seu desfecho,
diz, dependerá o futuro do Brasil e da esquerda por muito tempo.
Pergunta. Quais diferenças entre os Governos Lula e
Dilma que a levaram a essa crise, já que a presidenta colocou em
prática, de certa forma, uma política de continuidade no primeiro
mandato?
Resposta. A presidenta Dilma optou por um caminho de
confronto aberto. Fez uma aliança estreita com o setor industrial da
burguesia, enquanto abria um confronto explícito com o setor financeiro.
A regra de ouro do lulismo, que é fazer as mudanças sem
confronto, não foi seguida por ela. Dilma optou por explicitar o
conflito, o que ficou muito claro em 2012, no discurso que ela fez no Primeiro de Maio, em que disse que os bancos seguem uma lógica perversa [de lucro]. Antes disso, já havia existido um confronto aberto entre a Federação Brasileira dos Bancos e o ministro Guido Mantega, da Fazenda.
O curioso é que a sociedade brasileira parece que esqueceu isso. Eu
diria que até a própria esquerda esqueceu. Eu tenho sido muito crítico
da atual política econômica que Dilma escolheu, mas acho importante
registrar que ela vem depois de um período de muita coragem política,
muita ousadia.
A segunda diferença importante é que o presidente Lula, de modo geral, governou em um período que se chama de boom das commodities.
E ele aproveitou isso excepcionalmente bem para fazer uma política de
retomada do crescimento com redução da pobreza. No período que vai
começar em 2008, com a crise financeira internacional, ele é obrigado a
fazer algumas modificações e as faz com grande êxito, apelando para o
setor público, para os bancos públicos, para redução de impostos. Assim,
consegue fazer com que a economia brasileira volte a crescer
rapidamente em 2010. A presidenta pega um período muito diferente, que é
o começo de uma segunda onda de crise que vai resultar em uma
estagnação que ninguém sabe quando vai parar. Acaba havendo uma situação
de semi-paralisia da economia mundial, diante da qual ela tenta fazer o
país crescer por meio da reindustrialização, o que é uma opção
tipicamente desenvolvimentista. Nesse sentido, ela foi uma continuidade
da política econômica de Lula, mas uma continuidade que tentou, por
assim dizer, acelerar o lulismo.
P. Na sua leitura, o confronto aberto de Dilma era
com o capital financeiro, com os bancos. Mas a classe industrial, que
foi beneficiada pela política desenvolvimentista, rompeu com ela em dado
momento. Por quais motivos?
R. Ao final do segundo Governo Lula estava
nitidamente posta uma aliança entre a classe trabalhadora organizada e o
setor industrial. Isso se reflete claramente em um acordo que foi feito
entre a Fiesp, a CUT e a Força Sindical em maio de 2011, quando elas lançam um documento comum.
Todas as principais reivindicações que estavam neste documento foram
cumpridas pela presidenta: redução dos juros, desvalorização do real,
favorecimento do produto nacional, combate ao capital especulativo,
política industrial, desoneração da folha de pagamento... Mas por volta
do final de 2012, a burguesia industrial começa a se afastar, apesar de
todas as reivindicações terem sido atendidas.
O porquê disso é a pergunta central do meu artigo. Não há uma
resposta clara, por enquanto. Mas há uma série de hipóteses, que podem
ser na realidade complementares.
O PT está sendo obrigado a sustentar uma política para a qual não foi consultado e que nega seus princípios fundamentais
Uma delas é que já há um certo envolvimento estrutural entre
atividades industriais e as atividades financeiras e a própria burguesia
industrial também tem interesses financeiros. Outra é que a burguesia
industrial também está bastante relacionada com o capital internacional,
que a partir de um certo momento passou a reagir muito mal às
políticas, porque toda a força do Governo foi em tentar conter os juros.
Uma terceira hipótese é que a política desenvolvimentista teve o
efeito de uma redução do desemprego que se estabilizou em uma situação
de pleno emprego no primeiro mandato da presidenta. Isso se traduz em um aumento da renda dos trabalhadores, que em boa medida é obtida por meio de um aumento de greves.
O professor [de sociologia da USP] Ruy Braga mostrou que 2012 e 2013
foram anos de muitas greves. Greves levam a concessões salariais e a um
aumento do custo do trabalho. Começamos a ver nitidamente, a partir de
2012, lideranças empresariais dizendo que com este custo do trabalho no
Brasil a indústria brasileira não é competitiva e, portanto, é preciso
fazer alguma coisa para modificar isso. O que se pode fazer para
modificar isso é produzir desemprego, que é a forma clássica de reduzir o
custo do trabalho. No momento em que esta questão entra em cena, o
confronto entre o interesse dos trabalhadores e das lideranças
empresariais é total e a unidade que havia se desfaz. Lentamente, vemos
os empresários industriais passando para o lado da coalizão rentista,
formada originalmente pelo setor financeiro e pela classe média
tradicional, se alinhando em torno das ideias de ajuste recessivo ao
qual nós vamos finalmente chegar [neste ano].
Há ainda uma última hipótese [para o rompimento]: tem havido uma
queda na taxa de lucro a partir de 2012. Evidentemente que envolvida
nessa questão da queda da taxa de lucro está o fato de que a economia
parou de crescer.
P. Você menciona a influência dos protestos de 2013 neste quadro. Como ela se deu?
R. Nas manifestações de 2013, esse recuo [da classe industrial] ainda não estava claro,
provavelmente ainda estava em processo. As manifestações tenderam a
apressar essa mudança de posição. O que ocorreu ali foi um episódio
completamente inesperado, é preciso que se diga. Alguns aspectos eram
previsíveis, como, por exemplo, o aumento das tensões urbanas. O lulismo
foi mais bem-sucedido em modificar as condições de vida em áreas muito
pobres do que nos grandes centros urbanos, onde isso custa mais caro.
Mas não era previsível que essas tensões fossem ocasionar uma entrada em
cena de setores da classe média, do centro e de direita. A entrada
desses setores acelerou esse processo de conformação de uma frente única
antilulista, que reuniu toda a burguesia e a classe média tradicional.
Neste aspecto específico, junho de 2013 foi o ensaio geral do que está
acontecendo hoje.
P. E como se explica esse sequestro de uma manifestação de esquerda por setores mais conservadores?
R. Ela não chegou, na minha opinião, a ser
sequestrada pelos setores mais conservadores. A manifestação começa como
expressão dessas tensões que eu manifestei anteriormente e puxadas pela
esquerda, mas acaba servindo como uma janela de oportunidade para
setores que estavam desejosos de se manifestar ao centro e à direita
desde 2005, mas que nunca tinham conseguido espaço para ir à rua. Eles
pegaram carona, usaram as manifestações de esquerda como se fossem a
expressão de uma insatisfação geral.
Em parte, isso se explica pela entrada no Brasil das redes sociais
como fator de mobilização. A gente não estava preparado para isso, mas
de alguma forma já havia acontecido na Primavera Árabe. Elas conduzem aquilo que um antigo autor aqui da USP [Georges Gurvitch]
chamava de ‘correntes livres do psiquismo coletivo’ de uma maneira
subterrânea, que quem não está nas redes não percebe. Vai criando uma
onda que, de repente, emerge.
P. Outros países que também tiveram ondas de
insatisfação, como a Espanha e a Grécia, por exemplo, viram o surgimento
de partidos de esquerda. No Brasil, o movimento de esquerda que foi
para as ruas em um primeiro momento não se organizou. Por quê?
R. O sentido dessas manifestações é completamente
diferente, porque são histórias nacionais inteiramente distintas. Na
Espanha e na Grécia, as manifestações eram orientadas para esquerda
contra as políticas de austeridade. Aqui no Brasil você tinha o
contrário. Havia um processo de um Governo já de 12 anos buscando manter
uma política de redistribuição de renda. É uma política de
redistribuição de renda lenta, porque ela pretendia ser sem confronto,
porém contínua, num país de enormes desigualdades sociais.
Em junho de 2013 há duas tendências totalmente opostas. Tem a
primeira fase, que são manifestações de esquerda que querem uma
radicalização do lulismo, com mais investimentos públicos nas
áreas sociais, sobretudo educação, saúde e transporte. Depois você tem
protestos contra essa política. Alguns mais radicais, de direita, que a
rejeitam por completo e querem revogar o lulismo. E outros de setores do centro, de uma classe média que ou não foi contemplada pelo lulismo
ou que se sente relativamente prejudicada por ele, e que é muito
influenciada pelas denúncias de corrupção que se avolumam desde o
Mensalão. Essa camada tem a percepção de que essa política do lulismo não é suficientemente moderna. Isso é uma tradução do que vem propondo Marina Silva:
'vamos modernizar a política brasileira, vamos transformá-la numa
política mais transparente, mais participativa, com maior planejamento'.
No caso de junho de 2013, e isso talvez seja o singular, nem sequer se
pode dizer qual foi a orientação do movimento. Não teve uma orientação.
Foram várias e antagônicas.
Já hoje, o que nós estamos vivendo é uma enorme pressão contra o
Governo que fez essa política de redistribuição lenta da renda, mas que
também, paradoxalmente, resolveu adotar de uma hora para outra a
política econômica do adversário. Fez o inverso do que disse que faria
na campanha. E mesmo tendo adotado esta política econômica, continua
sendo objeto de intensa pressão da direita, que gostaria de eliminar por
completo essa alternativa do cenário brasileiro. Veja como é complexo. O
Brasil teve nos últimos 12 anos uma política moderada, porém à
esquerda. O que está agora em questão é se isso vai continuar, se sofreu
uma interrupção e pode voltar, ou se isso vai ser, digamos, escanteado
por muito tempo.
P. Mas a política atual já não se tornou conservadora?
R. Ela já mudou. O que nós não sabemos é qual a duração disso. E é claro que o que está em curso é uma virada conservadora,
do ponto de vista da política do Governo e também do crescimento de
setores de direita. Porém, o Governo continua sendo de forças da centro
esquerda. Ele está, neste momento, tentando manejar uma situação
extremamente difícil. Essa mudança causou uma recessão no país, o
Governo ficou muito impopular, está com uma base parlamentar muito
fragmentada, ameaçado de impeachment.
Estamos vivendo no Brasil uma crise política séria e o desfecho dela
vai determinar o rumo [do Brasil] provavelmente por um bom tempo.
P. E por que houve essa mudança em relação ao que se dizia na campanha?
R. A minha interpretação é que isso foi feito para
recuperar a confiança da burguesia. Se adotou uma política de ajuste
fiscal que vinha sendo exigida pela burguesia em bloco e que, ao meu
ver, foi um grande erro. O ajuste fiscal provocou essa recessão profunda
que nós estamos vivendo e que vai prosseguir no ano que vem. Começam a
se viver no Brasil enormes custos sociais. Parecidos com os da Europa,
porém em um país com muito menos proteção social e de muito maior
desigualdade. Portanto, com consequências ainda mais graves. Foi um
grande erro ter feito esse ajuste, embora eu compreenda que a motivação
tenha sido recuperar pontes com a burguesia, sem a qual talvez seja
muito difícil gerenciar um país capitalista. Mas, se o custo era esse e o
risco era esse que nós estamos vendo, talvez o melhor fosse fazer uma
política mais moderada. Ou seja, não fazer essas concessões e tentar
desenhar uma política a qual fosse possível somar suficiente força de
setores sociais para tentar atravessar esse período difícil da economia
mundial em condições melhores.
P. No artigo você fala que faltou essa mobilização
da classe trabalhadora antes, para sustentar o desenvolvimentismo do
primeiro mandato.
R. Para fazer essa política mais aberta, de
confronto, Dilma teria que ter simultaneamente organizado setores da
sociedade que estivessem dispostos a apoiá-la. É flagrante como ao não
fazer isso se gerou um vácuo em torno dessa política que explica até
mesmo o fato dela ter sido pouco conhecida. Essa política foi feita de
tal maneira que a sociedade não percebeu que ela estava acontecendo.
P. Por que não houve esse diálogo?
R. Não sei responder. O que se pode constatar é que
faltou mesmo um cuidado com a política e faltou tirar todas as
consequências daquilo que se estava fazendo. Como eu disse, era uma
política corajosa, audaz. Mas para isso você precisa reunir forças que
possam sustentar uma ação desse tipo.
P. O Lula não teria cometido esse erro?
R. A política do presidente Lula foi a de sempre
buscar saídas que não passassem pelo confronto. Talvez se possa dizer
que, de novo, isso esteja em curso. Ele está tentando resolver esta crise bem complicada, sem nenhum tipo de radicalização.
P. O PT criou um conselho de notáveis
para analisar a situação do partido e orientá-lo a sair da crise,
considerada grave. Você foi convidado a fazer parte. Por que não
aceitou?
R. Fiquei muito honrado com o convite, continuo no
PT, mas me parece que eu ajudo mais com as análises que eu tenho tentado
fazer fora do conselho do que participando dele.
Estamos vivendo no Brasil uma crise política séria e o desfecho dela vai determinar o rumo [do Brasil] provavelmente por um bom tempo
Mas eu acho que a situação do PT neste momento é, sim, muito difícil.
O partido está sendo obrigado a sustentar uma política para a qual não
foi consultado e que nega seus princípios fundamentais. O PT mudou muito nos últimos 12, 15 anos,
mas foi fundado para defender os interesses dos trabalhadores. E esta
política é contrária aos interesses dos trabalhadores. Ter que apoiar
essa política cria uma situação muito difícil. Por outro lado, o partido
é de fato o principal partido do Governo e não pode abandonar a
presidenta. Então, o que eu tenho defendido é que ele precisa
requalificar a sua relação com a Presidência da República, mostrando que
é fundamental que o partido passe a ser ouvido e tenha uma voz ativa
nas decisões a serem tomadas.
As denúncias da Operação Lava Jato
também são muito graves e o PT não está conseguindo apresentar
respostas a contento para elas. É verdade que essa operação pode ter uma
série de problemas tanto em relação a garantia dos direitos individuais
quanto a uma certa seletividade das investigações, uma vez que existem
vários partidos investigados e o peso maior recai sempre sobre o PT. Mas
o partido tem que dar respostas porque estas denúncias não param de
surgir e a opinião pública fica tremendamente impactada por ela. Precisa
apresentar uma narrativa mais completa do que possivelmente aconteceu
ou afastar temporariamente os que estão sendo indicados.
P. A esquerda formou a Frente Povo Sem Medo com o objetivo de tentar forçar o Governo a mudar as políticas de austeridade. Como vê isso?
R. Acho que a formação desta frente, assim como a
formação da Frente Brasil Popular, algumas semanas atrás, são tentativas
extremamente importantes da esquerda de encontrar uma forma de
enfrentar esta situação adversa unida. A história mostra que se não
houver mobilização, não haverá possibilidade de defender as conquistas.
Trata-se de uma mobilização defensiva. Naquele momento de 2012, 2013
poderia ser uma mobilização ofensiva, que não foi feita. Infelizmente a
retomada da política de 2012 agora não é possível. Mas interromper esse
processo e propor uma saída de médio prazo, mais equilibrada, eu acho
possível.
P. Você já citou a necessidade de uma aliança entre diversas correntes políticas. Acha que isso é possível?
R. Tenho falado sobre a possibilidade de um acordo
mínimo em função da situação ter ficado muito grave no Brasil. O que
está em questão são 30 anos de construção democrática e social. Essa
proposta de impeachment, que infelizmente está crescendo na sociedade, é uma proposta golpista e a democracia brasileira vai pagar um preço alto
se isso acabar acontecendo porque não há nenhum motivo justificável
para levantar essa tese. Está se procurando um pretexto para interromper
o mandato dela como se o Brasil fosse um Parlamentarismo. Seria um
retrocesso dentro de uma construção democrática que é talvez a principal
conquista que a sociedade brasileira obteve nesses 30 anos.
Em segundo lugar, nós estamos nesse processo de crise econômica, a
mais grave desde o começo dos anos 90. Quando você não tem uma
estabilidade política, os agentes econômicos não sabem a que se ater. É
preciso parar esse processo. É preciso criar um horizonte de médio prazo
em que você possa primeiro afastar esta aventura golpista e depois
dizer que se completará um ciclo X de diminuição da atividade econômica e
partir de um ponto Y se retomará lentamente o crescimento brasileiro.
Isso precisa ser negociado. Seria maduro que o Brasil negociasse isso.
Nós temos consolidados três maiores partidos que são PT, PSDB e PMDB. Essas lideranças poderiam ser chamadas pela presidenta de forma a tentar estabelecer uma negociação.
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Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/10/politica/1444431979_853273.html
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