domingo, 11 de outubro de 2015

“O que me levou a escrever foi o desgosto, a chateação”

Escritora “Na eleição, achei que era urgentíssimo mudar o governo, mas o povo brasileiro, que é desinformado porque deseducado, acabou reelegendo a Dilma”

ENTREVISTA LYA LUFT

Lya Luft bateu panela. Tomou o cuidado de escolher duas frigideiras sólidas, para poder protestar com convicção sem risco de arruiná-las, e postou-se na janela da sua cobertura na Avenida Nilo Peçanha. Protestou contra Dilma, contra a corrupção, contra tudo isso que está aí.

Na próxima terça-feira, dia 13, às 19h, na Livraria Cultura, a escritora recorre a armas mais persuasivas, mas não menos eloquentes, para manifestar seu descontentamento com a atual situação do Brasil. No livro Paisagem Brasileira – Dor e Amor pelo Meu País (Editora Record, 111 páginas, R$ 35), Lya deixa de lado reflexões existenciais como as do livro Perdas & Ganhos (2003), que a transformou em best-seller nacional, e a ficção (seu último romance, O Tigre na Sombra, é de 2012) para dar vazão a um tipo de indignação difuso, mas nem por isso menos intenso ou genuíno, com relação ao ambiente político e econômico do país em 2015.

Lya define seu livro como “um comentário despretensioso de uma brasileira que não é perita no assunto”. Evita expor preferências partidárias, mas deixa claro que está alinhada ao perfil político do típico manifestante de classe média que foi às ruas nos protestos de março e agosto contra o governo: “Sendo uma democracia, precisamos também exercer o direito de manifestar nossa voz: de maneira ordenada e firme, sem violência, contrariando o espetáculo dessa ópera bufa que se desenrola nos grandes palcos da política, da economia, da nossa realidade – em cujo elenco personagens confiáveis são exceção”, escreve.

Todo esse ardor cívico, porém, contrasta com o momento de vida que a própria escritora, aos 77 anos, define como “alegre e sereno”, ao lado do atual companheiro, Vicente, e perto de filhos e netos. “Leio e escrevo, ou leio e não faço nada além de contemplar e sonhar. Alguma visita, amigos ou família, quietude e aconchego. Acho que estamos criando, juntos, a velhice com que eu sempre sonhei: ainda descobrindo a vida a cada dia”.

Placidez que ela voluntariamente interrompe de quando em quando para escrever – ou bater panelas.

Por que, em um momento tão instável, escrever sobre política?
Este livro não foi planejado, mas saiu, me deu vontade. Não é um livro técnico, é a visão de uma brasileira normal, espantada com o que está acontecendo. Resolvi dividir isso com meus leitores. Acho que não preciso falar só de famílias ou criar romances sobre dramas existenciais humanos. As coisas comigo acontecem assim, ao natural. A eleição da Dilma no ano passado, em grande parte devido a todas as inverdades da campanha, o dinheiro que foi empenhado nessa campanha... Uma série de coisas vinham me desgostando há muito tempo e me levaram a escrever o livro. Na última eleição, achei que era urgentíssimo mudar o governo, mas o povo brasileiro, que é desinformado porque deseducado, acabou reelegendo a Dilma. De modo geral, o que me levou a escrever foi o desgosto, a chateação com tudo o que está acontecendo. Levei um tempo para achar o tom em que ia escrever e acabei chegando ao tom natural, conversando com o leitor como se fosse um amigo imaginário.

O livro tem o tom dos seus textos na Veja. Esse exercício da crônica quinzenal a ajudou a se interessar mais sobre esse tipo de assunto?
Acho que sim. Na medida em que me dei conta de que a vida brasileira estava ficando mais complicada, mais cheia de conflito, mais inquietante, insatisfatória para mim e para um monte de gente, me deu vontade de também expressar esse sentimento na revista. Mas sempre com o mesmo espírito do livro. Não sou economista, não sou política. Escrevo como brasileira. E a reação dos leitores foi imediata. Dá muito mais retorno, neste momento, no Brasil, escrever sobre esses assuntos do que sobre família. As pessoas estão muito aflitas. Gostei de ter escrito o livro. É um livro simples, sem nenhuma ambição, mas eu me posiciono.

Qual foi a sua relação com política ao longo da vida? Falava-se em política na sua casa?Na casa dos meus pais, na minha casa com o Celso (Celso Luft, linguista, primeiro marido de Lya) e os nossos filhos, agora com o Vicente (Vicente Britto Pereira, engenheiro, atual marido da escritora) sempre se falou muito sobre política. Meu primeiro desgosto foi quando meu pai se candidatou (em Santa Cruz do Sul). Eu devia ter 11 ou 12 anos. Meu pai era da UDN, um advogado conhecido na cidade, e decidiu fazer uma campanha baseada na verdade, sem mentir ou fazer promessas que não conseguiria cumprir. O outro candidato fez justamente o contrário e acabou ganhando longe. Ele ficou muito chateado. Foi minha primeira visão de que a política era uma coisa de que eu não ia gostar muito. Mais tarde, quando me mudei para Porto Alegre para estudar, não me interessava tanto por política. Nunca fui muito ligada em partidos. Quando houve o golpe de 1964, já estava casada, com filhos pequenos, bastante alienada, mas sempre ajudando nossos amigos que eram cassados. Sempre fui contra qualquer ditadura, qualquer extrema direita. Na universidade, participava da juventude católica, mas nunca fui muito envolvida. Quando fui morar no Rio, casada com o Hélio Pellegrino (psicanalista, segundo marido de Lya) que era super de esquerda, fundador do PT, havia reuniões lá em casa, com Antonio Candido, Helio Bicudo... Eu sempre olhava de longe, achava que estavam todos iludidos, que era uma ilusão. Eu tinha uma posição que era pela justiça social, pela liberdade, pelas oportunidades. Neste momento, mais do que nunca, me incomoda o que fizeram com aquele ideal daquela turma de homens justos. Acho que, tirando a ditadura, este é o período mais triste dos meus já longos 77 anos (recém-completados, em setembro). Estou contente por ter escrito o livro. Pode não dar em nada, mas é, digamos assim, a minha posição diante do que está acontecendo.

A senhora participou das manifestações contra o governo Dilma?
Hoje em dia, para trajetos maiores, uso bengala. Houve um dia em que eu disse: vou com minha bengalinha. Almocei com meus filhos e netos, e todo mundo foi para a manifestação, mas eu me permiti não ir porque acabaria tendo que caminhar muito. Eu já dou minhas “bengaladas” na Veja de 15 em 15 dias. Então não fui, mas gostaria de ter ido. Acho que a gente deveria estar protestando muito mais, de uma maneira pacifica, ordeira, mas as pessoas estão tão descrentes que nem têm ânimo. Como nosso governo virou um mercado persa, um balcão de negociação, não tenho muita esperança de que mude tão cedo. Era preciso alguém que tivesse a confiança do povo, mas eu não credito. Tomara que apareça.




A senhora conheceu pessoalmente Dilma aqui em Porto Alegre?
Não, não conheci, mas não tenho nada contra a Dilma, pessoalmente. Acho apenas que é a pessoa errada no lugar errado. Ela fez uma montanha de trapalhadas e não soube se cercar de pessoas que pudessem dar um bom conselho.

No livro, a senhora fala sobre o valor da democracia. Qual seria a forma mais democrática para enfrentar essa crise política?
Acho que a Dilma tinha que sair e deveria haver novas eleições. Não sei nem se isso é factível, porque não entendo as regras da política. Cada dia que ela fica, tudo piora.

Mesmo tendo sido eleita há tão pouco tempo?
Sim, porque acho que o povo errou, o povo se enganou. Não sei se houve fraude ou não, mas nenhuma das promessas de campanha foi cumprida. O castelo de cartas desmoronou. Então acho que seria muito legítimo uma nova eleição.

É a favor do impeachment?
Não sei se impeachment. O legal seria que ela dissesse: “Ó, boa noite, vou pra casa”. Acho que Dilma chegou no limite. Pelo menos para uma brasileira comum como eu, a impressão que fica é de que ela faz uma coisa e desfaz. Escreve, reescreve, rasga, bota fora, muda de ideia. Isso dá um sentimento de insegurança muito grande.

Outra pessoa no governo poderia reverter a crise?
Reverter, não digo. Mas acho que outra pessoa, rodeada de outras pessoas, poderia primeiro recuperar um pouco a confiança. E aí começar a fazer as reformas. Mas vai levar muito tempo para tirar o Brasil do buraco. Sou uma pessoa muito otimista, mas com o Brasil não estou nada esperançosa. Todo mundo quer cargo, PMDB negociando mais cargos. Isso é triste. Nesta hora em que o país está “nas vascas da agonia”, todo mundo só quer saber de mais cargos.

As prisões da Operação Lava-Jato têm revelado muita corrupção também na sociedade civil.
Nunca achei que somos santos e que só o governo é corrupto, nem que no governo não exista gente honesta. O Brasil tem funcionado na base da corrupção, desde as pequenas coisas. Se o lado corrupto do Brasil vencer e acabar com a Lava-Jato, então isso tudo vai continuar. Temos que instigar mais, no Brasil inteiro, o sentimento da honra. Pode ser impressão minha, mas quando eu era mais jovem parecia haver mais pudor. Nos últimos anos, a sacanagem se tornou generalizada. Até na Volkswagen. E a gente achando que os alemães eram tão corretos... Todo mundo tem seu lado bandalha. Uns mais, outros menos.

A senhora afirma no livro ser contra as cotas nas universidades. Por quê?
Não acredito muito. Sempre me dá a impressão de que o melhor era proporcionar estudo de qualidade para todos, pobres, pretos, pardos, amarelos. As cotas não dignificam a pessoa. Tenho dois netos que têm sangue negro direto e poderiam ter usado as cotas, mas não quiseram. Entraram na universidade pelo próprio mérito.

Mas provavelmente estudaram em escola particular.
Sim, mas por que todos não podem estudar em uma boa escola pública? Lembra quando havia a escola pública? Quando era uma honra estudar no Julinho? Acho que todos deveriam ter escola pública de qualidade.

Como um jovem que não teve essa oportunidade poderia ser atendido agora?
O governo deve dar bolsa para quem não pode estudar. Que deem bolsa. Isso seria mais honroso. Sou contra cotas.

Em alguns momentos, no livro, percebe-se certa nostalgia: da escola de antigamente, da cidade pequena. A senhora se considera nostálgica?
Não sou muito nostálgica. Pelo contrário. Mas sou muito ligada às coisas da minha infância. Fui muito formada pela coisas da minha família. Era uma cidade do interior, pequena, e de modo geral havia respeito. Respeito pelos professores, pelos pais. Hoje parece haver uma certa ausência de valores. Cada vez mais parece ridículo ou excêntrico falar em valores, em modelos, em ideal.

Na sua ficção, por outro lado, as família são disfuncionais, e as personagens se rebelam contra elas.
É verdade, mas minha família real era completamente diferente. Meu pai era uma pessoa muito bacana. Havia muito respeito com os empregados. Havia afeto, carinho, respeito pelas pessoas. Com hierarquia. Precisa haver hierarquia dentro de casa, alguém tem que decidir, dar o voto de Minerva. Meu pai era exigente, e eu detestava escola, só gostava de ficar em casa lendo, mas havia alegria, sentimento de pertença. Quando existem alguns limites, você se sente melhor, se sente mais encaixado no mundo. A criança que não tem limites fica muito louca.

E como a senhora explica que as famílias da sua ficção sejam tão atormentadas?
A gente nasce com uma bagagem psíquica muito forte. E a minha sempre foi a de levantar a ponta do tapete e espiar o que tem embaixo, morrendo de medo, porque sempre fui uma criança muito medrosa. Meu primeiro irmãozinho morreu antes de eu nascer, então fui uma criança extremamente cuidada, o que não é muito bom, muito protegida. Não ia na casa dos outros brincar, e meus irmãos são bem mais novos. Então vivia no meio dos adultos. Minha única qualidade era ter muita imaginação, porque racionalmente nunca fui boa. Via aquela tia que tinha ódio da outra, mas quando se encontravam eram simpaticíssimas, achava maravilhoso esse mundo de dissimulações. Não era nada grave, ninguém se matou, mas o que existe no convívio humano. Sempre fui fascinada pelo lado avesso, o que está por trás do espelho. Nasci com esse viés. A grande influência da minha literatura são os contos de fadas, e o que existe nos contos de fadas é o “belo sinistro”.

A senhora tem planos de voltar à ficção em breve?
O vento sopra quando quer. E eu acredito que algum dia vem. Fico muito sentada sem fazer nada. Aquilo que o Freud chamava de “atenção flutuante”, que digo que é minha falsa vagabundagem lírica. Temos uma casinha em Gramado onde fico horas olhando para o mato, sem fazer nada. E sei quando as coisas estão se fazendo dentro de mim. Tenho pensado muito em uma mulher que está vindo por um corredor, e a mulher do espelho sai e vem ao encontro dela. Vai sair disso algum dia um romance. Nunca sento e penso “agora vou escrever sobre isso”. De repente tenho uma história que me fascina tanto que começo a escrever.

Onde a senhora encontra a beleza?
O que me encanta é a natureza. Fui criada em uma casa grande, com muita árvore. Quando acordo cedo, tem nevoeiro, então você vê as copas das árvores emergindo. É de uma beleza de chorar. Outras vezes está chovendo. Outro dia tirei umas fotos com as gotas de chuva na janela. É uma coisa que me comove muito. Nas pessoas, é a tristeza ou alegria delas. Posso estar na sala com as pessoas e não saber depois o que vestiam. Mas o olhar, a expressão, a alma, é o que fica para mim. Não observo para coletar material. Parto do princípio de que está dentro de mim. Se serve para um romance, na hora certa vai aparecer. Vivo muito a minha imaginação e meu inconsciente. Tudo que vi, vivi, sonhei, me falaram, imaginei, fica no fundo da gente, como aquela lamazinha no fundo do aquário. Quando um personagem me fascina tanto que dá vontade de escrever, é como se pegasse um lápis e tudo emerge.

A natureza humana.

É o mistério de tudo. Tudo muito esquisito, muito estranho. Eu fico horas sem fazer nada. A minha cocaína é a contemplação.

“Entre todas as crises, graves e profundas ou rápidas e logo resolvidas, esta nos desmoraliza especialmente. Pois, em muitos aspectos, nos coloca entre os piores do mundo, nós que éramos o futuro. Indústria, serviços e comércio estão em queda livre. Logo a agricultura os acompanhará. Em lugar de multidões consumindo na ilusão de terem saído da miséria ou da pobreza, vemos milhares de desempregados, de inadimplentes, de angustiados e revoltados, que não sabem a quem recorrer, pois seus líderes se entregaram à dança dos corruptos, dos desinteressados ou dos incompetentes, que se prolongou tempo demais. - Trecho de “Paisagem Brasileira”-
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claudia.laitano@zerohora.com.br
Reportagem POR CLÁUDIA LAITANO
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4866836.xml&template=3898.dwt&edition=27624&section=3605

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