Marcio Tavares D'amaral*
O
mundo pede emoção e inteligência
Essa
expressão, tão comum, não parece conter toda uma atitude diante do mundo.
“Quer
um café?”
“Não
faço questão. Como você quiser.”
Ora,
não é difícil saber se queremos tomar o café que alguém nos oferece. A
incapacidade de decidir sobre coisa tão simples pode indicar algo maior do que
uma hesitação. Pode ser indiferença. Anemia afetiva. Medo de se comprometer.
Essa bem pode estar sendo nossa atitude, hoje, diante do mundo. Passiva. Que
deixa correr. E isso é perigoso. O mundo pede emoção e inteligência. Espera que
façamos questão dele. Eis a questão.
Questionar
é uma posição diante do mundo e da vida que pode ter-se inventado na Grécia
muito antiga, por volta do século VI a. C. Antes, nos tempos homéricos, a
natureza, os humanos, os deuses, os animais andavam misturados, e talvez não
fosse necessário pô-los em questão. O que é um centauro? É mistura de cavalo e
homem. E uma semideusa? O resultado do amor entre uma deusa e um homem. E uma
ninfa? O encontro do divino com a água. Sempre compostos. Uma coisa e outra.
Não ou bem uma, ou bem outra. As duas. Só mais tarde, no século VI a. C.,
veio-se a criar a atitude que acabou sendo a nossa: “E pode? O que é deusa? O
que é homem? O que é água? Cada uma sendo o que é, e só aquilo (veio a se
chamar mais tarde “essência”), a mistura é possível? Não é. Ela destrói a
unidade. E fazemos questão da unidade. Não abrimos mão dela. Fazemos questão do
Ser”. Para nós, ocidentais, em cujas terras o sol todos os dias vem morrer, os
noturnos, foi aí que se criou a metade grega do nosso DNA. Foi a partir desse
momento que questionar se tornou uma obrigação do espírito. Na seguinte
sequência: “Faço questão de que você venha tomar um café comigo. Não abro mão.”
Só por isso, porque não abrimos mão, podemos, depois, pôr em questão todas as
coisas, inclusive porque não abrimos mão. Antes de tudo, é preciso não abrir
mão. Não deixar para lá. Não ser indiferente diante de nada do mundo e da vida.
Nem mesmo de um modesto café. Essa é a mais básica das nossas atitudes de
origem. É uma ética. É amorosa.
Vamos
revisitar o velho Sócrates. Ele fez questão. Todos os dias, chovesse ou fizesse
sol. Era capaz de questionar a chuva e o sol eles mesmos. Porque amava a vida,
e não era indiferente a nada que a afetasse. Não era assunto dele (é a outra
metade do nosso DNA, de que ele não participa) que Deus mandasse o sol e a
chuva sobre justos e injustos. Diante dessa afirmação, talvez perguntasse: O
que é justiça? Provavelmente também: O que é Deus? Perguntava porque não queria
abrir mão. Fazia questão de tudo, por isso podia questionar. No dia em que
estava para morrer, condenado pela cidade de Atenas, conversou com os
discípulos sobre a morte. O que é a morte? Sem medo. Fazia questão de morrer.
Não chegou a dizer “a irmã morte”, a que muito mais tarde São Francisco haveria
de sorrir. Mas também esteve sereno e à espera. Viria decerto ela, o fim de
todas as questões. Até lá, porém, perguntar era viver. E viver é essencial.
Morrer também. E fazer questão de um como do outro é um respeitoso amor.
Shakespeare
também soube dessas coisas. “Ser ou não ser, eis a questão”, além de um bom
verso com excelente efeito dramático, quer dizer: é preciso resolver isso, o
príncipe não pode suportar por mais tempo a indecisão. Depois houve outros usos
para a palavra “questão”, parte essencial da nossa história. Por exemplo: a
Igreja católica no renascimento francamente violava a sua essência original,
vendendo indulgências. O monge agostiniano Martinho Lutero pôs essa prática em
questão. Fez questão da pureza originária da Igreja, que seu mestre Agostinho
encarnara. Fundou, sobre esse questionamento, a dissidência protestante. E
mudou o mundo. Outro exemplo, perverso: os antissemitismos europeus sentiam-se
incomodados com a presença dos judeus no mundo. Os judeus carregam sua cultura
incansavelmente, há 20 séculos, desde a diáspora do século I. Têm nela sua
identidade. Fazem questão dela, ganham o direito de pô-la em questão. E irritam
quem não faz tanta questão de nada. A esses os judeus incomodam, porque
questionam infatigavelmente. Criou-se para esse incômodo a “questão judaica”.
Não era questão nenhuma. Era uma sentença. Deu no que deu. Fazer questão, até
uma dessas, falsa, nunca é sem consequências. Nessa atitude se jogam a vida e a
morte.
Agora
está em moda ter horror da política. Má ideia. Não que os políticos
frequentemente não motivem repulsa e raiva. Mas esses sentimentos deviam,
justamente, pô-los em questão. Deveríamos fazer questão da política. Ela é
essencial aos povos da terra. Há no entanto, em número alarmantemente grande,
os que não estão nem aí: “Política? Passo. Não faço questão.”
Melhor
fazer. Há um mundo pendurado aí, que pode naufragar. Melhor fazer.
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* Colunista do jornal O Globo
Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/nao-faco-questao-17866448 24/10/2015
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* Colunista do jornal O Globo
Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/nao-faco-questao-17866448 24/10/2015
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