Anselmo Borges*
Sobre os dias 1 e 2 de Novembro, dias dos mortos e da pergunta essencial.
1- É bem possível que, para se perceber uma sociedade, mais importante do
que saber como é que nela se vive é saber como é que nela se morre e se trata a
morte. Facto é que as nossas sociedades desenvolvidas, tecnocientíficas, do
primado do ter sobre o ser, da eficácia, da vertigem do poder, do tempo digital
e da aceleração, são as primeiras na história a fazer da morte tabu. Mais:
assentam a sua realidade no tabu; para serem o que são, têm de fazer da morte
tabu.
2-O que se passou? Nos princípios do século XX, o filósofo Max Scheler,
reflectindo sobre o recalcamento da morte na sociedade europeia, foi
encontrá-lo na modernidade, quando se deu uma estrutura diferente de
experiência, centrada nos impulsos do trabalho, do domínio e do lucro. O homem
moderno já não frui de Deus e a própria natureza já não é a terra natal
acolhedora, que provoca admiração e espanto, mas tão-só o espaço da
possibilidade de manifestação da subjectividade dominadora, como diz o soberano
"penso, logo existo" de Descartes. Desde então, tudo fica sujeito ao
cálculo, ao útil, ao funcional. Ora, se tudo é submetido ao útil e mecânico,
orientado para o poder e ter sempre mais, já não há lugar para os outros
valores. Num mundo matematizado e calculável, em que "é real o que é
calculável", o homem moderno, centrado no activismo, pretendeu superar a
angústia da morte através do domínio sem limites, de tal modo que o que fica é
o progresso ilimitado, sem finalidade nem sentido humanos. O progresso, em que
o progredir pelo progredir é o seu próprio sentido, transformou-se no
substituto da vida eterna. Este homem, mediante os impulsos do trabalho, do
lucro e do prazer sem limites, fica narcotizado quanto ao pensamento da morte.
Na agitação constante, que tem em si mesma a sua finalidade e que se concentra
no divertissement pascaliano, o homem moderno europeu julgou encontrar o
remédio para a ideia da morte. Mas esse remédio é ilusório, pois, agora, a
morte, em vez de aparecer como "o preenchimento necessário de um sentido
vital", é poder e brutalidade sem sentido. O homem tradicional vivia face
à morte com certa naturalidade e até familiaridade. O homem moderno, ao
contrário, como vive como se não tivesse de morrer, como já não sabe "que
tem de morrer a sua própria morte", quando esta aparece, só lhe pode
aparecer como uma catástrofe. Vive no dia-a-dia, até que, subitamente, já não
há mais um novo dia.
3- Este nosso universo tem 13 700 milhões de anos. Quase 14 000 milhões de
anos! Tanto foi o tempo que demorou o processo até chegar a um existente que
não só sabe mas sabe que sabe e sobretudo sabe que não sabe ilimitadamente e,
por isso, pergunta. Um animal que é racional, falante, simbolizante, artista,
moral... sepultante. Neste gigantesco processo da evolução, o aparecimento dos
primeiros túmulos e dos rituais funerários é o sinal característico e decisivo
da presença do ser humano no mundo. Pela primeira vez, está no tempo alguém que
é consciência do tempo, portanto, da inevitabilidade de morrer e que
simultaneamente recusa a aniquilação definitiva. É a consciência da morte que
revela a emergência do radicalmente novo, a passagem do pré-humano ao humano,
de "algo" a "alguém".
4- A morte é impensável em si mesma. Quando pensamos nela, é sempre no
abismo do impensável que mergulhamos. Só por ilusão de linguagem é que dizemos,
diante do cadáver do pai, da mãe, da mulher, do amigo: ele (ela) está aqui
morto (morta). Na realidade, ele ou ela não está ali: o que falta é
precisamente ele ou ela. E ninguém leva o pai ou a mãe, o filho, o amigo, à
"última morada", para enterrá-los ou cremá-los. Como não tem sentido
dizer que eles estão no cemitério e que vamos lá visitá-los. Nos cemitérios,
com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém. Então, porque é que a sua
violação é uma profanação execranda? O que há verdadeiramente nos cemitérios?
Naquele espaço sagrado, do silêncio recolhido, está, paradoxalmente, a fonte da
linguagem enquanto espaço da abertura e da pergunta. O que há nos cemitérios é
um infinito ponto de interrogação: "O que é o homem?" A morte e o seu
pensamento abrem a condição humana ao desconhecido, à Transcendência
inominável, que apela e que invocamos.
5- Com o tabu da morte apagaram-se as perguntas últimas e primeiras,
metafísicas, e também a ética e a moral. Porque é a consciência do limite na
morte que derruba as vaidades, que obriga a perguntar ilimitadamente e nos dá a
distinção do justo e do injusto, do que verdadeiramente vale e do que não vale,
da "existência autêntica" e da "existência inautêntica"
(Heidegger). Percebe-se então que as nossas sociedades, da banalidade rasante,
niilistas, tenham feito da morte tabu, o último tabu. Agora, vale tudo, porque
nada vale. E é o espectáculo que se sabe e se vê!
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* Colunista do JN
* Colunista do JN
Fonte: http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/a-morte-o-ultimo-tabu-4863945.html - 31/10/2015
Imagem : Edvard Munch,The Sick Child 1885
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