A fala é de 2011, durante a Conferência do Estoril daquele ano. Em um papo sobre segurança, o escritor moçambicano Mia Couto -- um dos meus preferidos e vencedor do Prêmio Camões
(2013), o mais importante da língua portuguesa -- leu esse texto
(escrito para a ocasião) que tem muito, mas muito a ver com várias das
coisas que queremos passar aqui no PdH.
Enfim. Melhor que
ficar explicando malucamente, mais fácil é assistir ao vídeo -- fique
tranquilo, ele fala português -- com pouco mais de 5 minutinhos.
Há,
também, a transcrição completa logo abaixo. Se não conseguir ver o
vídeo, vale a leitura dessa fala fantástica e potente demais para os
dias de hoje (os grifos são nossos):
Bom, nada mais inseguro do que um escritor numa conferência sobre segurança, um escritor que se sente um pouco solitário porque foi o único convidado nesta e na anterior edição. Preciso de um abrigo, preciso de um refúgio. É um texto que vou ler... o presidente tinha dito que eu devia falar espontaneamente. Não sou capaz em sete minutos.
Eu escrevi este texto que vou ler e chama-se Murar o Medo.
Murar o Medo
O medo foi um dos meus
primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas,
aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando
chegaram, já era para me guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas.
Nem
sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e
realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os
desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as
crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e
conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse
velho engano de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos.
Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que
eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da
fronteira da minha língua, da minha cultura e do meu território.
O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei
a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a
audácia de ser eu mesmo. No horizonte, vislumbravam-se mais muros do
que estradas.
Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há, neste mundo, mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.
No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting
internacional. Os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas
que lutavam pela independência e um ateu barbudo com um nome alemão.
Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando
morreu o medo.
Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os
ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis e Carl Marx, o ateu
barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência. O preço dessa
construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente
africano. Em nome da luta contra o comunismo, cometeram-se as mais
indizíveis barbaridades.
Em nome da segurança mundial, foram
colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários
de toda a história. A mais grave dessa longa herança de intervenção
externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os
outros pelos seus próprios fracassos.
A Guerra Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou,
inventando rapidamente outras geografias do medo: a Oriente e a
Ocidente e, por que se trata de entidades demoníacas, não bastam os
seculares meios de governação. Precisamos de intervenção com
legitimidade divina.
O que era ideologia passou a ser crença. O
que era política, tornou-se religião. O que era religião, passou a ser
estratégia de poder.
Para fabricar armas, é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos, é imperioso sustentar fantasmas.
A
manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão
de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o
que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas, precisamos de mais
polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para
enfrentarmos as ameaças globais, precisamos de mais exércitos, mais
serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.
Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo
desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de outro lado,
aprendemos a chamar de “eles”. Aos adversários políticos e militares
juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que
se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e
a humanidade, imprevisível.
Vivemos como cidadãos, e
como espécie, em permanente situação de emergência. Como em qualquer
outro estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a
privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa. Todas
essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas, como por
exemplo, estas: por que motivo a crise financeira não atingiu a
indústria do armamento? Por que motivo se gastou, apenas no ano passado,
um trilhão e meio de dólares em armamento militar? Por que razão os que
hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas
venderam ao regime do coronel Kadafi? Por que motivo se realizam mais
seminários sobre segurança do que sobre justiça? Se queremos resolver e
não apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças
bem reais e urgentes.
Há uma arma de destruição massiva que está
sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o
pretexto da guerra.
Essa arma chama-se fome.
Em pleno século
XXI, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a
fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em
armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do
nosso tempo.
Mencionarei ainda uma outra silenciada violência: em
todo o mundo, uma em cada três mulheres foi -- ou será -- vítima de
violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que,
sobre uma grande parte do nosso planeta, pesa uma condenação antecipada
pelo fato simples de serem mulheres.
A nossa indignação,
porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em
soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda, deixamos
de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As
questões de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos
outros e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de
coerência, nem de ética nem de legalidade.
É sintomático que a
única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A
Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das
invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores.
Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que
vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns
trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção.
Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar.
Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas
não há hoje, no mundo um muro, que separe os que têm medo dos que não
têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do
norte, do ocidente e do oriente. Citarei Eduardo Galiano acerca disto, que é o medo global, e dizer:
"Os
que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm
medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo
da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da
falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras.
E, se calhar, acrescento agora eu: há quem tenha medo que o medo acabe.
----------------------
Fonte: http://www.papodehomem.com.br/mia-couto-ha-quem-tenha-medo-que-o-medo-acabe/ acesso 01/10/2015.
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário